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É urgente a confiança
Um amigo próximo, há dias, disse-me:
– Continua a escrever para o jornal…talvez ganhes um tacho!
Ri-me, porque conheço a sua vocação para ironizar e provocar. No entanto, estas palavras deram-me para refletir e, como se vê, até originaram o tema para o presente texto.
A desconfiança relativamente a quem tem cidadania ativa é grande. Talvez seja este o motivo pelo qual haja tanto receio da exposição e da participação ativa numa comunidade tão pequena e que dá origem à falta da chamada “massa crítica”. Não se acredita no interesse genuíno em contribuir, em servir a comunidade, dado que, infelizmente, a realidade tem mostrado que há talvez mais casos em que prevalece o interesse pessoal do que o coletivo.
Não acontece só na política, como aludiu o meu amigo no seu comentário. A palavra “tacho” remete-nos logo para a percepção enraizada do exercício grosseiro e desonesto da política e do uso que dela se faz em proveito próprio e dos seus. Estranho sempre que se dá parabéns, ao invés de “bom trabalho”, a quem assume a responsabilidade de um cargo público, confirmando-se esta forma de encarar a investidura em funções públicas como uma vitória pessoal, a aceitação de lugares que dão acesso a privilégios e sinecuras que vêm com o poder. Em democracias evoluídas, o exercício da governação é assumido com espírito de missão que se aceita com humildade, em consonância com princípios inequívocos de ética e de dever, com abnegação pessoal, a fim de ser útil à sociedade e à construção do bem comum.
Estando este espírito em falta, facilmente surge a desconfiança que corrói toda a estrutura que deveria manter saudáveis os elos sociais.
Durante a pandemia, pensei que poderíamos ter assimilado bem esta lição, a de que precisávamos de confiar uns nos outros mais do que nunca para sobreviver. Até nos atos quotidianos mais banais, como o de comprar pão, confiando que todo o processo de confeção até ao ato de entrega ao domicílio seguia todas as normas de saúde pública em vigor para impedir que o vírus se alastrasse. Só que não. Não só a desconfiança aumentou como as razões para se avolumar quase que nos impedem de sobreviver. É perguntar a qualquer pessoa que se encontra às compras no supermercado o que pensa da inflação. Já ninguém acredita que a guerra é a causa do custo de vida. Começou por ser, mas a ganância ultrapassou os seus efeitos.
Quem nos defende destas investidas em todas as frentes? Desde os alimentos essenciais até à habitação, passando pelos serviços de toda a ordem, é possível acreditar que está tudo relacionado com a escassez de obra-prima ( a Ucrânia, de repente, tornou-se na maior fonte mundial de todos os alimentos) e com o aumento dos fertilizantes, das rações e da energia? Como se explica o aumento substancial de produtos originários da nossa própria região? E porquê os preços inatingíveis das rendas e das casas que inexplicavelmente são vendidas todos os dias nesta terra? Interrogo-me como é que, numa ilha com cerca de 150 mil habitantes, tanta casa se vende a preços a rondar, e até acima, de um milhão? Quem são estes proprietários e a origem da sua riqueza, na região com maior índice de pobreza, e quem são estes compradores? Há assim tantos habitantes a mudarem de casa, numa roda viva, todos os dias? Como explicar rendas de habitação exorbitantes, a maioria das vezes sem condições para tal, a não ser pela ganância? E principalmente: como explicar que não haja intervenção governamental para regular esta especulação desenfreada, de tal modo que está a tornar impossível o sustento das nossas famílias? Sendo o especulador um golpista, por que razão o regime jurídico penal não o criminaliza? Por onde anda a justiça? A fiscalização?
O paradigma da atribuição dos apoios pontuais à pobreza não serve. Precisamos de regulação e de intervenções estruturais que garantem no tempo uma vida digna e de confiança no futuro para todos.
Não temos na Assembleia Regional representantes com carisma e de natureza apaixonada, com um discurso mobilizador, como diria Lobo Antunes, comentar-se-ia acerca da maioria deles que “estão mortos atrás dos olhos”; não temos uma comunicação social desinquieta, aguerrida, e com condições para fazer reportagens, a fundo, no terreno; não temos uma sociedade com hábitos de escrutínio cívico entranhados que procurem respostas a tantas questões. Desconfia-se à boca pequena, até dos que ousam atirar a pedra perscrutadora ao charco…
Durante a última semana, o Ministro das Finanças anunciou, com grandes loas a si próprio, os “lucros” do Estado que atingiram níveis nunca vistos. Nenhuma palavra proferiu sobre a realidade muito diferente em que o país vive. A insensibilidade do ministro só tem comparação à frieza com que os bancos divulgam os seus lucros, enquanto o país, feito de gente real, pobre, depauperada, explorada, engana a fome, fatalmente resignada. Ainda há dias, um trabalhador da CP em greve dizia na televisão esta afirmação lapidar: “Para eles há prémios se atingirem os objetivos, mas os objetivos saem do corpo dos trabalhadores que não recebem nada!”
O governo desconfia dos trabalhadores e de quem lhes confiou o voto. Exige-lhes a hora extraordinária, subtraída à família, a meta a atingir, o resultado a comprovar, a papelada a apresentar, o corpo suado, a mente exangue. As greves em tantos sectores, a nível nacional, comprovam que faltam as mais elementares condições, geradoras de coesão, de prosperidade e de confiança. Falta a palavra, que já foi de honra. Ficou a contradição, a mentira, a conveniente falta de memória.
Por estes dias, até a hierarquia da Igreja, último reduto para tanta gente, é desamparo, motivo de descrença e insensibilidade. Adivinha-se referências irremediavelmente estilhaçadas…
Não é, então, a confiança a base do pacto social? Não será este o valor que garante a coesão de uma democracia?
Na região, a paz social parece maior, mas a revolta é talvez calada. Calada pelo peso da costumada pobreza, pelo medo da represália, pelo cansaço, pela indiferença da incultura e – cá está – pelo receio da exposição. “Quer tacho”, “que venha fazer melhor”, “sempre foi assim” são frases recorrentes, dirigidas a quem se ergue para questionar.
Resistimos a uma pandemia. Sobreviveremos a uma crise de saúde social e moral? Só lhe chama crise económica quem desconhece a fome de tudo.
É tão urgente “multiplicar” os elos de confiança como as “searas”. “É urgente um barco no mar”- escreveu, noutros tempos, Eugénio de Andrade.