Paula Cabral · Cadeia de Ponta Delgada condenada ao esquecimento

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Artigo de hoje no CA.
Cadeia de Ponta Delgada condenada ao esquecimento
“- A sra. professora não tenha medo. Somos seres humanos como a senhora.”
Estas foram as palavras que me marcaram logo no primeiro dia em que entrei no Estabelecimento Prisional de Ponta Delgada, incumbida de dar aulas a uma turma de reclusos que pretendiam completar o 3° ciclo.
Há treze anos, logo no primeiro ano em que fui colocada na Secundária Antero de Quental, escola que cumpre um protocolo na educação com o referido estabelecimento, foi-me dada uma distribuição de serviço que incluía lecionar Português aos alunos matriculados da cadeia.
Como é evidente, a tarefa assustou-me e procurei saber, junto de quem já lá tinha estado, como era o ambiente. A resposta foi, digamos, icónica: “Sentes-te mais segura na cadeia do que na sala de aula duma escola regular!”.
A medo, e com a angústia que me atormenta desde sempre, lá me apresentei no primeiro dia.
Bati à porta, passei pela receção, onde tive de deixar o telemóvel, fui revistada, bem como a minha pasta, e lá segui o guarda para a sala destinada à lecionação dos presos.
Era uma escada de pedra de lavoura estreita, íngreme. As paredes altas, húmidas. Sentia o frio de um edifício velho, degradado, medonho pelo destino que lhe fora dado: privar da liberdade seres humanos que se perderam nos enredos da existência. Serão os mais fortes ou os mais fracos? Que histórias de vida terão aquelas paredes testemunhado durante gerações? Guardariam segredos inconfessáveis de toda uma sociedade? Erros irremediáveis, arrependimentos genuínos, transtornos da mente e da alma? Paredes grossas de lava seculares condenavam à dimensão de escória um cortejo de gente esmagada na sua dimensão humana. O purgatório terreno.
O sobressalto daquela subida nunca me abandonou durante todo aquele ano e mesmo depois. O barulho metálico das portas de ferro que se fechavam atrás de mim. As vozes dos reclusos mais exaltadas que ecoavam no desconforto daquele edifício sem réstia de acolhimento. Não imagino o que poderá ser a falta de liberdade por muitos anos, muito menos em condições tão lúgubres como as que pude presenciar.
Tinha quatro alunos na sala, vigiada à porta por um guarda prisional. O que se revelou mais falador percebeu o meu desconforto e acolheu-me com aquela frase que nunca esqueci. Agradeci o reparo, que precisava ouvir, e desculpei-me. O preconceito é também uma forma de prisão.
Viria a ser o meu melhor aluno. Participativo, curioso, perspicaz na interpretação, competente a aprender, mas, a meio do ano, teve de abandonar a escola, sendo transferido para a cadeia da Madeira. Mais uma condenação acrescida, pois ainda me confessou a dor de se afastar da mulher e dos filhos. Um recluso só veio à primeira aula e outro, mais jovem, órfão de pai e mãe, criado no orfanato, era irrequieto, não se concentrava, ia e vinha, consoante a disposição, até que desistiu, acusado pelos outros de “traficar” as canetas e as borrachas da escola nas trocas que faziam entre os reclusos. Acabei só com um aluno, sempre assíduo. Nunca me esqueci dele. Sempre bem educado, mas muito nervoso. Tremia às vezes, tinha dificuldade em expressar-se, mas com vontade de alcançar o seu objetivo. Tinha servido o Exército português na guerra da Bósnia e era claramente um homem traumatizado. Noutras circunstâncias, seria um doente psiquiátrico numa instituição para o efeito ou numa ala psiquiátrica de uma cadeia, digna deste nome. Todavia, estava ali, esquecido pela família e pelo sistema. Esperava há tempos uma resposta para sair em liberdade condicional do advogado que lhe fora atribuído pelo Estado, mas não sabia quando o veria. Fosse rico, nem ali estaria.
Nunca soube do destino de nenhum deles. O que farão agora, se recuperaram as suas vidas, se emigraram, se continuam na ilha, se terão voltado àquele lugar.
Eu não quis mais voltar no ano seguinte, porque não conseguia. Não poderia arrastar aquela angústia comigo sempre que dali saía, revoltada pelas condições desumanas daquele lugar, havia catorze homens na mesma cela – diziam eles -, incomodada por saber a indiferença dos responsáveis e da sociedade, impotente pelos fracos recursos no domínio da reabilitação, pelo esquecimento a que eram condenados. Mesmo ali, no centro da cidade. No centro do nosso olhar. Ninguém quer ver nem saber. Só se aponta o dedo para acusar quem nunca ajudas teve. Porque muitos têm culpa de ser pobres, têm culpa de reincidir nos crimes, têm culpa das perturbações mentais… e, por isso, têm de regressar ao tempo das masmorras medievais.
Li, na semana passada, que a Força Aérea pede 45 mil euros para transportar os reclusos em sobrelotação na cadeia de Ponta Delgada para o continente. O mesmo é dizer que o Estado português cobra a si próprio uma conta para resolver um problema da sua responsabilidade e que até agora não resolveu. O GRA limita-se a assistir, não mostrando provas da eventual pressão que é urgente fazer numa área, fora do domínio da autonomia, mas que afeta os mais elementares direitos humanos de portugueses dos Açores.
O silêncio e a acomodação a que se assiste sobre este assunto são a prova do que referi. São os esquecidos, os desvalidos da vida, desprovidos da liberdade e de voz, que ali se encontram.
As desigualdades sociais, afinal, fazem cair a máscara ou a venda à justiça, supostamente cega, para não pesar nos pratos da balança a importância social dos julgados.
Nos casos dos Ricardos Salgados desta vida, são os criminosos que se fazem de esquecidos e a sua riqueza, pobreza dos que espoliaram, paga a liberdade eternamente prerrogada.
Os políticos já aprenderam também que o esquecimento compensa.
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José Viegas

fogo….
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