Maroiços e Companhia Limitada.
Partilha-se o meu artigo de opinião publicado hoje (17/10/2019) no jornal Diário Insular em resposta a um artigo também aí publicado no dia 15/10/2019 com o título “Delenda est lusitana res” da autoria do Dr. Manuel Tomás.
Sempre que surge qualquer informação sobre a presença pré-portuguesa nos Açores há gente que aparenta ficar completamente desnorteada e aturdida. Acho que não vale a pena tal agitação, porque essa questão já está suficientemente sólida para que seja revertida com meras opiniões.
Numa análise intelectualmente honesta e objetiva, não se podem neste momento misturar factos da ilha do Pico, com factos da ilha Terceira, da ilha do Corvo, da ilha de São Miguel, ou outra ilha qualquer, porque isso constitui-se”criação de ruído” para desvalorizar informação. As informações científicas são muito díspares entre ilhas. Muito menos se devem misturar posições antagónicas de diferentes autores. Cada um é responsável pelo que diz.
Essa temática tem de facto o seu quê de anedótico, especialmente por parecer inusitada e por aparecerem várias pessoas a interpretar as mesmas coisas com lógicas distintas. Por outro lado há uma confusão sistemática de algumas pessoas com os conceitos de hipótese e de conclusão.
A anedota é tão grande, que há uns que se riem de quem coloca hipóteses, e os que têm dados, riem-se dos primeiros. De facto o riso pode ser generalizado e até há quem diga que faz bem à saúde. Será escusado irmos para as igrejas esclarecer o povo sobre essa temática porque isso não é objeto de religião mas sim, de ciência.
Por outro lado será escusado evocar a história para explicar o que parece ser pré-história (muita gente deveria saber a diferença). Será escusado acusar de negligência quem defende o esclarecimento dessa questão, quer seja da ciência ou de uma autarquia, porque o obscurantismo fica do lado de quem se opõe a uma aprofundamento científico de uma questão. A etnografia não é uma ciência, é um método que se usa para ouvir um grupo social, nada mais. Ciência é outra coisa.
Sobre os maroiços do Pico só há um trabalho científico associado a uma investigação arqueológica no interior de um maroiço. Havendo outros poderíamos colocar em causa alguns resultados já conseguidos, e não tenho qualquer dúvida, que o aprofundamento científico dessa temática produziria resultados mais fortes e objetivos. Por acaso até já existe outro novo trabalho científico, mas não sobre maroiços, e que aponta para a confirmação das hipóteses iniciais do trabalho feito no maroiço.
Quando alguém diz que “Meu pai, quando era criança, na década de trinta do século passado, andou adaptando o maroiço, onde hoje mora a empresa Estraga Ferro, com os seus sete irmãos, a irmã ficava em casa, no Valverde”, poderíamos dizer que aqui existe algo que faz estremecer hipóteses e põe em causa resultados, mas se analisarmos bem, verificamos que também produz algum riso. O autor não é testemunha do facto, como tal, nem pode falar do seu testemunho, para que possa concluir seja o que for sobre o maroiço que cita. Isso porque se tivesse sido testemunha disso, teria algo como 98 anos no mínimo, o que não é o caso. Por outro lado, não parece que o autor fosse filho de uma criança, porque isso implicava que também ele era no mínimo criança. Se isso não bastasse, a ciência e a história não se constroem com testemunhos de crianças que na fase adulta relatam coisas a outra criança.
Vamos então aos factos exclusivos da ilha do Pico:
É verdade que existe nessa ilha pelo menos um maroiço com corredor interno e câmara. Conclusão: Esse maroiço não é um monte de pedra, mas uma construção planeada. Há montes de pedra, ditos maroiços, em praticamente todas as ilhas dos Açores, mas alguns do Pico são muito diferentes e só por isso podemos dizer que temos em Valverde uma construção planeada que parece ser única no arquipélago. Isso é objetivo e qualquer um pode confirmar, ao contrário do depoimento de uma criança que diz ter construído maroiços nos anos trinta do século XX.
É verdade que foram datados pedaços de carvão de uma fogueira aparentemente feita no interior desse maroiço. O resultado obtido diz que essa fogueira ou fogueiras foram aí feitas entre os anos de 1450 e 1500. Conclusão: Se a construção planeada que anteriormente se referiu é dessa época, então, essa terá sido das primeiras construções feita na ilha do Pico. Quem discorda dos resultados, pega em pedacinhos de carvão que ainda existem e data de novo em laboratório creditado.
Como se explica isso? Podemos arranjar imensas hipóteses, mas aquela que poderia assentar na possibilidade de alguém ter encontrado carvão de uma fogueira antiga na ilha do Pico, e tê-lo transportado religiosamente para o interior de um maroiço, parece-me disparatada, logo, aceitar que a fogueira foi feita dentro do maroiço é a mais racional. Se só houvesse aí carvão, ainda estaria em aberto a hipótese do transporte, mas junto com isso ainda existiam anzois de ferro, conchas, pedacinhos de ossos e materiais líticos trabalhados.
Parece haver nesse estudo algumas indefinições de cronologias com estes resultados: É verdade. Por isso é que é importante analisar mais.
Em termos de hipótese esse maroiço pode ser pré-português? Claro que sim, até porque outro trabalho independente, realizado por cerca de uma dezena de investigadores de vários países, na Lagoa do Peixinho na ilha do Pico, prova que aí houve criação de gado e queima de madeira há pelo menos 1100 anos, ou seja, antes de Portugal ser uma nação. A grande questão aqui poderia ser “Como existia gado e queima intencional de madeira no Pico, sem ter existido aí gente?”. Claro que esses investigadores se riem da explicação etnográfica.
Essa data não chega “aos lusitanos” para que se possa gritar que estão a retirar o cunho lusitânico a esse maroiço. O cunho português está em vias de cair, é verdade, mas o lusitânico acho que ainda ninguém lhe tocou. O cunho lusitânico, de um povo Ibérico, pré-romano, de origem indo-europeia, ainda ninguém é capaz de pôr em causa. Há perda patrimonial nisso? Claro que não. As estruturas continuam as ser portuguesas em termos de posse.
Misturar coisas ditas por pessoas distintas acerca do mesmo objeto de análise não é claramente objetivo, e transformar conceptualmente um “Monumento” num monte de pedra, é uma desvalorização do património que é nosso e que se tiver sido construído por outro povo que não aqueles que estão nas raízes do nosso, significa apenas que somos guardiões de um pouco do património da humanidade. Isso para mim não se constitui nenhum problema identitário.
Fotografias do interior de um maroiço estudado, captadas por Nera Stelliger.