Nasceu em Ponta Delgada. Conte-nos como era a sua família e como foi a sua infância e adolescência?
Nasci em 1938 numa família da classe média. A minha mãe era doméstica. O meu pai trabalhava no Diário dos Açores. Naquele tempo, a mulher trabalhava nas lides da casa e de ajuda aos filhos, o que, no meu caso, foi muito bom. A minha mãe e o meu pai tinham o curso médio de 4ª classe, mas era a minha avó, uma mulher muito inteligente, que nos ajudava a fazer os trabalhos escolares. Apesar de ter na altura 70 anos ainda se recordava de todas as coisas do seu tempo. Como era filha única a professora falou com o meu bisavô para que ela pudesse ir para a escola mas ele não quis, mas mesmo assim a minha avó ficou sempre com muito saber.
A minha mãe quando casou ficou na casa da minha avó e foi lá que fomos criados. Naquela casa era uma comunidade, o lugar onde eu vi sempre os meus tios e os parentes mais próximos. Era um centro de convívio, através do qual eu tentei sempre contribuir o mais que pude através da minha vida. Ia completar sete anos, quando comecei a frequentar a Escola de São José, no campo de São Francisco em Ponta Delgada, que à época era considerada a universidade primária de Ponta Delgada pelo perfil dos professores que tinha. De facto, ali não só ocorriam alunos da freguesia de São José mas também da Matriz e de outros lugares pela qualidade dos professores que ali ensinavam. Muitos colegas eram de fora da cidade, porque os pais tinham meios financeiros para pagar os quartos onde viviam. Até nisso eu tive sorte. Tive bons professores que foram os primeiros a abrir o caminho da minha vida. O meu tio trabalhava no Correio dos Açores, portanto, na minha casa não se dispensava o jornal. Isso, parecendo que não, transmitia um aspecto cultural e de envolvimento na vida que também nos transmitia a nós, a mim e às minhas irmãs, um gosto pela leitura e pela vida cultural. Nesta época, eu já tinha uma ideia muito afirmativa do que era estar num jornal e foi com isso que ultrapassei a escola primária e fui para o Liceu, que foi a minha grande casa de ensino, também pela convivência que tive com os meus colegas. No Liceu éramos poucos. O número de alunos não ultrapassava os 500. A minha turma do primeiro ano era mista.
Posso dizer que foi com muitas dificuldades que os meus pais nos mandaram para o Liceu, porque naquela época a vida era complicada. A minha mãe dizia: Não quero que nenhum de vocês sirva um patrão. Ela entendia que era com os estudos que nós podíamos alcançar que podíamos ser autónomos e livres. O meu pai era mais doce nestes aspectos. A minha mãe era mais firme.
Acha que as crianças daquela época tinham mais maturidade e responsabilidade, até porque, como disse, muitos colegas seus saíram das freguesias para a cidade com pouca idade e a residir fora de casa para estudar?
Sim. Havia responsabilidade e maturidade. Eles tornaram-se maduros por si próprios porque tinham que enfrentar a vida. Não havia casas de acolhimento. Só mais tarde é que apareceu a Casa do Estudante, que foi formada por uma senhora ligada aos movimentos sociais e da Igreja, para receber alunos da ilha e de outras ilhas. A maioria estava em quartos alugados – a minha mulher é exemplo disso -, e só aos fins-de-semana é que recebiam os mantimentos. A minha mulher só veio um ano depois do ano em que queria vir para o Liceu. Porquê? Porque naquele tempo a 4ª classe não era obrigatória e sim a 3ª classe. Como não havia um grande número de professores e os lugares eram preenchidos por regentes escolares, mas os regentes não podiam dar a 4ª classe e preparar os alunos para o exame. Por isso, os alunos tinham de esperar. Por isso, é que havia uma diferença de idade entre mim e outros colegas, até mais velhos, mas não por não saberem mas sim por falta de professores.
Que momentos lhe marcaram no Liceu?
Eu tive coisas boas no Liceu. Bons colegas. Passamos a conhecer-nos no Liceu, nas festas que se fazia, e isso foi criando uma amizade e uma confraternização que ainda hoje nós recordamos. Foi por isso, que quando completamos 50 anos de ensino no Liceu, criamos a Associação dos Antigos Alunos do Liceu para chamar as pessoas e recriar o Liceu com os antigos e com os novos. Conseguiu-se. Hoje as coisas estão um pouco paradas. Eu também não tenho muitas forças como tinha. Recordo também os bons professores que tive, intelectuais. Ensinavam para além dos compêndios, como foi o caso do Dr. João Bernardo Oliveira Rodrigues, Dr. Ruy Galvão de Carvalho, Dr. Armando Cortes- Rodrigues, Dr. José de Almeida Pavão. Eram pessoas que devido ao seu conhecimento davam-nos muito a conhecer do que os livros não continham, mas que eles entendiam ser necessário para que tivéssemos uma formação completa para os que cá ficaram e para os que daqui saíram para as universidades.
Eram homens que tinham pensamento…
Sim, o pensamento da época. Na altura dizia-se que quem conseguia ultrapassar a ponta da doca ia buscar outros horizontes. Felizmente, muitos deles regressaram, fizeram escola porque conseguiram desenvolver as suas artes e o seu saber. Mas outros também se destacaram no exterior, e cito o Dr. Alexandre Linhares Furtado, quem é uma figura internacional na Medicina. Praticamente os alunos do Liceu assumiram os grandes lugares na vida pública, na Junta Geral, na Câmara Municipal, entre outros. Naquele tempo como as coisas eram muito reduzidas, reduzidas a uma autonomia que nos asfixiava, mas eles com o sentido de açorianidade que tinham fizeram implementar desenvolvimento, dentro dos organismos onde trabalhavam. A Junta Geral tinha sectores dirigia, como, por exemplo, a Educação e Cultura, Comunicações, a Economia no respeita à parte da Lavoura. Enfim, tinha um estatuto mas não tinham era dinheiro para desenvolver todos os projectos, até chegarmos ao 25 de Abril e depois termos os órgãos próprios de Governo.
Ingressou no Magistério primário?
Ingressei no Magistério porque os meus pais não tinham capacidade financeira para ir para a Universidade. Eu queria estudar História mas a universidade era uma coisa distante, longe, muito longe para nós. Ou íamos para a escola do Magistério ou ingressávamos em serviços públicos ou casas bancárias, comerciais e industriais. Ficávamos por aqui e com os conhecimentos que tínhamos. Repito, tivemos muito bons conhecimentos para nos podermos adaptar às circunstâncias da vida.
O Magistério era a continuidade do Liceu dentro da mesma escola e de continuidade e de aproximação aos próprios professores porque nos trava como futuros professores, de gente que ia abrir uma campo de cultura e de aprendizagem às futuras gerações. Os professores do magistério eram também recrutados pelo Liceu, porque não havendo cursos superiores, foram criadas as escolas do magistério para serem pagas com os orçamentos da Junta Geral.
O Governo criava mas descentralizava as competências, como muitas vezes se faz hoje?
Isso mesmo. Era só descentralizar. Era a asfixia profunda. Em relação ao ensino, notávamos que essa asfixia era asfixiante mesmo, porque estando o ensino a cargo das câmaras, estas faziam das tripas coração para poder ter poder de comprar o material didáctico necessário, o material de limpeza e pagar o pessoal auxiliar.
A partir de 1960 já era obrigatório a 4ª classe. Isso começou em 1958 com um despacho do pai do nosso actual Presidente da República, Dr. Baltazar Rebelo de Sousa. Era Subsecretário de Estado da Educação. Depois, por volta de 1968-69 houve um alargamento do ciclo complementar, era mais duas classes integradas no ensino, antiga 6ª classe, que dava a possibilidade de os alunos poderem entrar nos cursos industriais. Depois criou-se as escolas preparatórias, o que foi um grande salto. Mas o que notámos, é que a Junta Geral pagava os vencimentos e as câmaras os investimentos, mas muitas vezes as câmaras não tinham dinheiro. Na altura, o Engº Deodato Magalhães que estava na Junta Geral queria obrigar o Governo a pagar os custos da Educação, por isso é que os complementares levaram mais tempo a avançar em São Miguel. Chegou a dizer que não dava cabimento de verba e como não dava os professores deixaram de fazer os concursos e ficavam professores agregados em substituição dos lugares que eram para concurso. Dois anos depois, houve um grande entendimento já na era do Professor Marcelo Caetano, mas foi com o Dr. Veiga Simão que se conseguiu que o Governo assumisse o compromisso do pagamento da Educação em relação aos professores o que deu um outro fôlego para o que foi feito dentro das escolas. Na altura, era tudo muito limitado.
Esteve na Direcção Escolar. Foi uma nomeação política?
Dez anos depois de começar a exercer a profissão de professor fui chamado para Adjunto Escolar. Foi uma nomeação política, por nomeação directa do Ministro. E foi uma coisa que sempre me atormentou, porque antes de mim um director e um adjunto foram pura e simplesmente, por situações que nunca entendi, foram alvos de um inquérito, deixaram o lugar e foram para a sua escola. Isso é a desvantagem da nomeação de ser por via política. Os nomes eram levados por pessoas influentes que levam o nosso nome ao Ministro. Quando fui para a Direcção escolar fiquei satisfeito. Por coisas do destino, proporcionaram-me dentro do ensino exercer vários cargos que me ajudaram na carreira. Eu fui delegado escolar, eu estive na campanha nacional de Educação de adultos, fui dos primeiros professores que dirigiu a missão cultural. Também tive a sorte de haver um director-geral, Dr. José Gomes Bastos, que produziu um despacho em que todas as pessoas que tivessem sido nomeadas, tanto adjuntos como directores, tinham de sujeitar-se a um curso de formação. Eu fui fazer esse curso para manter o lugar ou para ocupar uma vaga que viesse a estar a concurso. É curioso que um dos meus colegas foi reprovado, o que prova que tinha regras para que a pessoa ocupasse o cargo com habilitação.
A meio da minha carreira, já com 43 anos, abriu-se um concurso para inspectores de ensino, chamados inspectores-orientadores. Fiz várias provas e testes psicotécnicos e entrevistas, passei e fui fazer o curso. Estive um ano em Lisboa, um ano crucial (1973-74) e apanhei o 25 de Abril. Os meus professores eram de um conhecimento profundo e pretendia-se dar uma volta no ensino. Alguns deles, com o 25 de Abril, foram ocupar os lugares-chave e de destaque no Ministério da Educação. Uns diziam que tínhamos sido o último reduto da ditadura de Salazar.
Como viu o 25 de Abril? O que sentiu?
Eu estava numa pensão em Lisboa. Uma colega minha, que morava por ali perto, bateu à porta às sete da manhã para nos contar que estava a haver uma revolução. Eu vivia na Avenida da República, perto do monumento dos combatentes na zona universitárias, e por vezes de manhã havia pancaria entre polícia e estudantes, e eu pensei que era mais uma situação dessas. Mas não foi. Ouvimos na rádio o que se estava a passar, fomos aos supermercado e ficamos em casa como era indicado. Já no dia 26 de Abril ainda fomos alguns alunos, mas ali se definiram os campos ideológicos. A comunicação era sempre boa mas ali já estava o posicionamento político. Depois fizemos o estágio mas já era complicado, porque os professores não mandavam nada e os alunos mandavam tudo. Um grande turbilhão. Vim para São Miguel. A minha mulher tinha ficado cá com os nossos quatro filhos. Eu tinha um subsídio de 3 mil escudos, mas que não dava, e ela com sacrifício ainda me mandava coisas, mas felizmente correu bem.
O seu regresso à ilha é também numa altura conturbada?
Quando chego cá começaram a aparecer os ecos da FLA . Foi num período terrível entre o 25 de Abril e o 25 de Novembro. Quando cá cheguei era tido como um comunista, achavam que tinham-me feito uma lavagem de cérebro em Lisboa, até porque como fui inspector durante dois anos e neste período levei professores a Lisboa para se inteirarem dos novos programas.
Sentiu na pele essa conotação política?
Sim, tive os meus problemas e também senti que acham que eu era do outro lado da barricada, ou seja do tempo de Salazar e de Marcelo Caetano. Aos 36 anos fui convidado para integra o órgão máximo da política distrital, a Acção Nacional e depois Acção Nacional Popular, e foi nesta altura que me lembro bem subscrevi a lista apara o Dr. João Bosco Mota Amaral, e outros, para deputados à Assembleia Constituinte. A minha situação foi complicada. Eu tive que exercer um certo equilíbrio. Na altura, o Governador Civil também se tinha colocado à parte porque sabia que as nossas listas eram contrárias. Para a FLA eu era um comprometido com o regime.
Chegou a Director Escolar….
Na altura, houve uma vacatura de lugar para Director Escolar, e já havia o Governo Regional no seu início e eu como tinha as condições para o lugar decidi avançar. A minha nomeação em 1977 ainda foi feita por Lisboa porque a Educação era ainda centralizada. Fiz o que pôde e fui sempre muito considerado pelos meus superiores, Direcção-Geral e Ministério da Educação. Tive sempre bons colaboradores, delegados pedagógicos e animadores pedagógicos, que eram os meus porta-vozes junto das escolas na dinamização e na ajuda com os professores para se adaptarem aos novos programas.
Chegou uma altura da sua vida que teve que definir-se politicamente?
Eu nunca me filiei em nenhum partido político enquanto estive na Educação, mas obedeci sempre àquilo que me pediram. Quando eu assumi as funções de Director Escolar foi no tempo do Dr. Reis Leite, o primeiro Secretário Regional, mas eu respondia perante Lisboa, porque Lisboa nunca quis descentralizar o poder da orientação pedagógica, que era uma orientação política mas isso não se via nos programas.
Lembro-me que enquanto Director Escolar tinha promovido uma acção de formação sobre introdução de novos programas mas começaram a dizer que era de comunistas. Eu então fui falar com o Dr. Reis Leite porque a Secretaria Regional não tinha meios para fazer os novos programas, ou ele aceitava aquela fase de iniciação dos programas ou então os professores dos Açores não tinham equivalência com parte nenhuma. Na altura, propus que o Dr. Reis Leite desse ordenassse para que fossem à formação os que quisessem e depois veremos o que vai acontecer. Ele deu o seu aval. Também lhe disse que tinha a nomeação de Director Escolar e que ia deixar a Inspecção, tendo ele me dito que precisava muito de mim para orientar o ensino, ao que respondi estar disponível para assegurar a orientação que a Secretaria quisesse, isto é, a Secretaria não o Ministério. Eu que era Inspector e estava destacado na Região como Director Escolar, requisitado, autorizou-me sempre ir às reuniões a Lisboa, trazia as recomendações e transmitia-as aos secretários, que resolviam como queriam. Uma das grandes dificuldades que o Dr. Reis Leite teve foi criar a Direcção regional de Orientação Pedagógica, porque Lisboa não queria, mas o Dr. Reis Leite disse sempre que quem mandava nos Açores era o Governo Regional. Conseguiu à força. As direcções escolares é que sempre tiveram autonomia para contactar o Secretário directamente, a parte pedagógica não.
Foi contado com os comunistas mas todos lhe conhecem simpatia pelo PSD/Açores?
Fui sempre conotado mas nunca fui comunista. Eu nunca disse a ninguém que era simpatizantes do Partido Social Democrata e só depois da minha aposentação é que me tornei militante. Quando eu fui nomeado Director Escolar, e fui sempre reconduzido até à minha aposentação, defendi sempre os princípios emanados da Terceira. Tive um convite de um Director Regional, já falecido, que queria que eu fosse seu adjunto, mas não aceitei para não deixar a minha família.