sobre a História das Flores e Corvo e uma primeira viagem ao grupo ocidental

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retirado de chrónicaçores uma circum-navegação vol 3

disponível em https://blog.lusofonias.net/chronicacores-uma-circum-navegacao-vol-3-parte-ii-2010-2018/

 

 

CRÓNICA 134 – A MINHA VISÃO DAS FLORES E CORVO (AÇORES) 31 agosto 2013

134.1. FLORES:

majestoso nascer do sol em santa cruz das flores

Situa-se a 30º 54’ de longitude oeste, e a 39º 25’ de latitude norte. Tem 143 km2 de superfície, 17 km de comprimento e 12,5 km de largura. A superfície da ilha é repartida por dois municípios – de Santa Cruz das Flores e de Lajes das Flores. A ilha, junto com a Ilha do Corvo, foram o Grupo Ocidental do arquipélago dos Açores. A 26 de maio de 2009, foi classificada pela UNESCO como Reserva da Biosfera.

Os principais centros populacionais são as vilas de Santa Cruz das Flores e das Lajes das Flores. Dispõe de um aérodromo ou pequeno aeroporto onde opera a SATA Açores, com ligações aéreas regular com a Horta, Lajes (Terceira), Ponta Delgada e Corvo. Entre julho a agosto, a Atlanticoline assegura (de forma bem mais irregular do que o previsto nos horários oficiais) as ligações marítimas de passageiros e viaturas entre o porto da vila das Lajes das Flores (via Horta) com as restantes ilhas. Assegura ainda o transporte regular de passageiros entre as vilas das Lajes e Santa Cruz das Flores e a Vila do Corvo.

1.2. CORVO

A Ilha do Corvo é a mais pequena e a mais setentrional do arquipélago dos Açores. Localiza-se no Grupo Ocidental, a 6 milhas náuticas a norte da Ilha das Flores. Situa-se a 39º 40’ latitude norte e 31° 05’ de longitude oeste. Ocupa uma superfície total de 17,12 km2, com 6,5 km de comprimento por 4 km de largura. A Vila do Corvo, única povoação da ilha, é sede do município do mesmo nome. Em 1987, as funções dos órgãos de freguesia foram assumidas pelos correspondentes órgãos municipais. Na ilha teriam sido descobertas cerca de uma centena de hipogeus (estruturas de terra cavadas na rocha primitivamente usadas como sepulturas há dois mil anos), incluindo algumas na cratera e aguarda-se o seu posterior estudo. A primeira citação desta ilha surge em 1351 no Atlas Médici como Ilha Dos Corvos Marinhos e em 1375 no mapa Catalão surge já distinta das Flores. Diogo de Teive, navegador português, tê-la-á descoberto oficialmente em 1452 ao regressar da Terra Nova. Quanto ao nome teve vários em diversos mapas: Ilha Dos Corvos Marinhos, Ilhas Floreiras, Ilha do Farol, Ilha Nova das Flores, Ilha de Santa Iria, Ilhéu das Flores, Ilha da Estátua, Ilha do Farol, Ilha Negra, Ilha de São Tomás, Ilha do Marco. Começou a ser habitada com um grupo de 30 pessoas lideradas por Antão Vaz de Azevedo da Ilha Terceira, e posteriormente um outro grupo da Terceira (família Barcelos) mas ambos abandonaram a Ilha.

Em 1548 Gonçalo de Sousa donatário das Flores e do Corvo foi autorizado a mandar escravos de Santo Antão (Cabo Verde) como agricultores e criadores de gado.

A primeira Igreja data de 1570 e a partir de 1580 juntaram-se os colonos das Flores, sendo a sua primeira paróquia estabelecida em 1647 e a sua primeira administração civil data de 1832.

Quando os navegadores portugueses aportaram pela primeira vez à pequena Ilha do Corvo, nos Açores, em meados do século XV, encontraram ali uma intrigante estátua de pedra, representando um cavaleiro com traços caraterísticos do norte de África.[1] Este episódio, despercebido a gerações de portugueses, iludido pelos manuais escolares, constitui um ponto de partida fulcral para a grande interrogação: quem descobriu pela primeira vez os Açores? Sabendo-se das diferenças qualitativas, não só etimológicas, entre “descobrimento”, “descoberta” ou “avistamento”, importa conhecer as diferentes etapas que fizeram da gesta das Descobertas Marítimas do Renascimento mais uma consequência do que antecedência gerada no zero dos saberes e da ignorância total sobre rotas oceânicas e capacidades náuticas epocais.

Não existem provas científicas de que os Açores sejam o remanescente do mítico Continente da Atlântida que, outrora, teria sido o berço de uma próspera e culta civilização, entretanto desaparecida nas profundezas do oceano. Curiosamente, no livro de banda desenhada, O Enigma da Atlântida de Blake e Mortimer, a Ilha de S. Miguel é uma das portas de saída da Atlântida. Mesmo que os Atlantes tenham algum dia habitado nos Açores, não foram descobertos, até à data, quaisquer vestígios arqueológicos.

Falta explorar as insondáveis profundezas dos seus mares. Mesmo aí é dúbio que algo possa ser encontrado e que sucessivos milhares de tremores e erupções submarinas não tenham escondido para sempre ou destruído totalmente. Pelos exemplos da violência dos tremores e erupções dos últimos quinhentos anos, dificilmente será crível que um dia se possam deparar com artefactos ou restos civilizacionais da Atlântida perdida que apenas encontrou eco nos escritos de Platão.

Através dos tempos, a Atlântida foi sempre motivo de cogitações e explorações fantásticas. Não faltaram, mais recentemente, escritores, jornalistas ou romancistas e mesmo cineastas, que chegaram a reconstituir, com um esforço de imaginação, a arquitetura, o traçado e os materiais de construção da capital da Atlântida. Confabularam o vestuário, o modo de vida da população; a sua economia, as suas classes sociais, a sua religião, os seus deuses e demónios; os seus imperadores; as suas orgias, a beleza estranha da soberana desse reino submerso. Especulações e nada mais. Platão tem sido submetido a uma das mais ferozes análises críticas, na tentativa de descobrir mais algum pormenor que conduza à localização da misteriosa Atlântida. Quiseram alguns geógrafos e historiadores ver na narrativa do filósofo grego uma alusão poética a um muito antigo conhecimento da America. O facto não é tão extraordinário como pode parecer à primeira vista, se considerarmos o arrojo marinheiro dos fenícios, e se juntarmos as recentes travessias do Atlântico por navegadores solitários em frágeis embarcações.

Partida do cais do porto da casa no corvo Alvorecer na ilha do corvo

O historiador Pausanias diria mais tarde (150 AC)

“Existia em pleno oceano, longe, e a oeste, um grupo de ilhas habitadas por homens de pele vermelha e cabelos como crinas de cavalo”.

Narrativa extraordinária pois. Ou pura imaginação que, coincidentemente, iria encontrar eco na realidade descoberta 1600 anos depois?

Plutarco, entre os anos 40 e 120 DC, escrevia

“Existem a oeste, no oceano, na mesma latitude da Grã-Bretanha, diversas ilhas atrás das quais se estende um vasto continente. Essas ilhas caraterizam-se pelo fato de que o sol aí brilha ininterruptamente durante trinta dias. A noite, o astro recolher-se-ia cerca de uma hora, mas mesmo nessas alturas, a obscuridade não seria total, porque o horizonte, a ocidente, ficava sempre iluminado por um crepúsculo”.

Plutarco descrevia, sem dúvida, terras próximas do círculo polar. O continente referido, só poderia ser a América. Juntem-se essas narrativas à hipótese de que, muito antes de Cristo, já os Açores e a Madeira terem sido explorados pelos fenícios, e não acharemos tão improvável o facto de que o Novo Mundo fosse conhecido na antiguidade.

A Atlântida não seria, então, o continente sul-americano? O poderoso reino a que se referia Platão não seria o império dos astecas? Convirá referir que é mais aquilo que desconhecemos do que o que sabemos sobre grandes civilizações da antiguidade. Muitas delas sumidas misteriosamente. Extintas dum momento para o outro, sem qualquer razão aparente, para além de colisões de meteoritos, aquecimentos globais ou outras causas por desvendar. As viagens de Fenícios e Cartagineses tiveram grande importância na Antiguidade para fins comerciais. As que poderiam ter levado a um reconhecimento dos Açores, foram a circum-navegação do continente africano, de Oriente para Ocidente, a mando do faraó Necho em finais do séc. VII a.C. e a viagem do cartaginês Annone, que perto do fim do século V a.C., abriu as velas de Cartago rumo ao Atlântico, ultrapassou as Colunas de Hércules (Gibraltar) e chegou ao Golfo da Guiné.

É curioso que as únicas referências ao conhecimento dos Açores, anteriores à chegada dos Portugueses, sejam fenícias e ambas relativas à Ilha do Corvo. Como eu dizia nos anos 70 num dos seus programas de rádio em Macau “Todas as coincidências têm uma causa matematicamente provável”. Neste caso podem existir também causas cientificamente prováveis. Fazendo fé na historiografia antiga, a probabilidade de os fenícios terem chegado aos Açores, é elevada.

Humboldt refere no “Examen Critique” que em 1749, uma tempestade violenta teria abalado as fundações de um edifício parcialmente submerso na ilha do Corvo.

No fim da borrasca descobriu-se, entre as ruínas, um vaso contendo moedas de ouro e cobre que foram levadas para um convento, e das quais nove foram preservadas e enviadas ao padre Enrique Flores, em Madrid, que as cedeu a J. Podolyn da Academia de Ciências de Estocolmo.

Algumas moedas apresentavam a figura de um cavalo por inteiro, outras apresentavam somente a cabeça desse animal.

Alguns peritos afirmaram com suficiente grau de certeza que se tratava de duas moedas fenícias do norte de África (da antiga colónia grega de Cirene ou Cirena [em grego Κυρήνη, Kurene] na atual Líbia, a mais antiga e mais importante das cinco cidades gregas da região). As restantes sete eram moedas cartaginesas.

A primeira publicação de caráter científico referindo aquelas moedas do Corvo deve-se a Johann Frans Podolyn, um numismata sueco que publicou em 1778 uma notícia intitulada Algumas anotações sobre as viagens dos antigos, derivadas de várias moedas cartaginesas e cirenaicas que foram encontradas em 1749 numa das ilhas dos Açores

Naquele artigo, Podolyn afirma que em 1749, depois de vários dias de mar tempestuoso de oeste, que expôs parte da fundação das ruínas de um edifício de pedra numa praia da ilha do Corvo, foi descoberto um vaso de barro negro, quebrado, contendo no seu interior um grande número de moedas desconhecidas que foram levadas para um convento (provavelmente o convento franciscano de S. Boaventura, em Santa Cruz das Flores) a partir do qual foram distribuídas.

Parte das moedas foi enviada para Lisboa e daí para Madrid ao padre Enrique Flórez de Setién y Huidobro (*1701 – †1773), da Ordem de Santo Agostinho, que foi um conhecido historiador e numismata espanhol, à época o mais conhecido numismata ibérico.

Desconhece-se o número de moedas existente no vaso e quantas foram enviadas para Lisboa. O Padre Flórez recebeu nove (9) moedas, depois por ele descritas e estudadas. As moedas recebidas em Madrid eram: duas moedas cartaginesas de ouro, cinco moedas, cartaginesas, de cobre e duas moedas cirenaicas, também de cobre. O padre Flórez cedeu as moedas a Podolyn quando este visitou Madrid em 1761, dizendo-lhe que as moedas “representavam todos os tipos encontrados no Corvo” e que eram as mais bem preservadas da coleção. Na notícia publicada, acompanhada por imagem das moedas, Podolyn afirma que as mesmas, com exceção das de ouro, não são raras, sendo apenas notável o sítio onde foram encontradas, já que não se conhece notícia da presença de cartagineses nos Açores, embora seja possível ligar essa presença à famosa estátua equestre e inscrição que teria sido encontrada no Corvo à época do povoamento.

Faria e Sousa na sua História de Portugal relata esta estátua citando-a como possivelmente de origem chinesa, o que levou mais tarde esse alegado inventor da história, Gavin Menzies, a usar a mesma como “prova” da descoberta chinesa dos Açores antes dos Portugueses. Este Menzies que dizem ser uma fraude, ao contrário desse inventonas que é o loquaz e ótimo comunicador José Hermano Saraiva que se serve de qualquer facto autêntico para criar uma novela com laivos históricos.

É relatado por André Thevet, um francês do século XVI, que um descendente mourisco ou judaico encontrara uma inscrição com carateres hebraicos numa gruta de S. Miguel, durante os Descobrimentos, mas não foi capaz de a ler, alguns supuseram tratar-se de carateres fenícios. Em 1976, nesta mesma ilha, haveria de ser desenterrado um amuleto com inscrições de uma escrita fenícia tardia, entre os séculos VII e IX da era cristã. A maior parte dos historiadores continua a negar validade a esta afirmação, o que não a impede, porém, de ser verídica. No século XVI, Génébrand referiu-se à existência dum túmulo com inscrição hebraica em S. Miguel, Açores. Trata-se na realidade de carateres fenícios de Canaã erroneamente qualificados de hebraicos pela semelhança entre o alfabeto dos cananeus e o dos antigos hebreus. O texto decifrado permitiu a Manasseh ben Israel, sábio hebreu do século XVII ler a inscrição como “Mektabel Suai, filho de Matadiel” (de acordo com Pierre Carnac em “A Atlântida de Cristóvão Colombo”).

Damião de Góis escreveu na “Crónica do Sereníssimo Príncipe Dom João” que quando os portugueses chegaram à remota ilha encontraram uma estátua equestre no cume noroeste da serra, no centro da ilha, colocada sobre um pedestal quadrado.

No seu cume, que parecia servir de marco aos navegantes, estava o vulto de um homem grande de pedra, montado num cavalo sem sela. Era uma estátua profética, construída, não se sabe por quem, a partir de um único bloco de pedra e representava um homem, de cabeça descoberta, mas tapado por uma espécie de manto. As faces do rosto e outras partes estavam sumidas, cavadas e quase gastas pelo tempo e supõe-se que pela erosão dos elementos. Sobre as crinas do cavalo, o qual tinha uma perna dobrada e outra levantada, estava a mão esquerda do homem, enquanto o braço direito estava estendido e com os dedos da mão encolhidos. Só o indicador continuava aberto e apontava para o poente ou noroeste, para as regiões onde o sol se oculta, a grande terra dos bacalhaus, a América ou o Brasil, terras que ainda não tinham sido descobertas pela civilização ocidental. O rei Dom Manuel I teria mandado a Duarte d’Armas que fizesse um desenho da estátua e ordenado o seu transporte para a corte de Lisboa, mas só viria a receber pedaços do monumento, nomeadamente, a cabeça, e o braço e mão direitos, e parte do cavalo. Estas peças teriam sido guardadas no palácio real, tendo-se perdido o seu rasto a partir daqui. Na base – deixada no Corvo – existiriam algumas letras numa escrita desconhecida que foram copiadas em 1529 por Pedro da Fonseca, mas cujo teor ninguém conseguiu até hoje identificar.

Cavaleiro de basalto

A respeito do artigo Quem construiu a estátua da ilha do Corvo? (Super n.º 128 de dezº 2008), convém ter em atenção o que se segue.

O autor invoca uma série de testemunhas. De nenhuma delas há um testemunho direto, porque só se sabe o que disse Damião de Góis. O Dr. Gaspar Frutuoso, bem como Frei Diogo das Chagas e outros, limitou-se a copiar o que escreveu o cronista, que apenas deve ter ouvido a história, porque se percebe pelo relato que o próprio não chegou a ver os despojos do achado. O basalto é uma pedra muito difícil de esculpir. Seria quase impossível conseguir pormenores que fizessem o cavaleiro parecer-se a um magrebino. O que aliás contrasta com o que diz Frutuoso do que afirmavam os naturais das Flores e Corvo: que a estátua “estava carcomida, com as faces do rosto e outras partes do corpo sumidas e quase gastadas”.

Quanto às letras gravadas na rocha, estariam em lugar tão inacessível que teria sido necessário descer por cordas quem lhes tirou o molde. Como teria sido então possível o trabalho de as esculpir? E por que razão, sendo este episódio do tempo de D. Manuel, o conta Damião de Góis na Crónica do Príncipe D. João? Aliás, o célebre humanista não era um historiador, mas um cronista. O seu pouco rigor chegou mesmo a causar-lhe complicações com a justiça real. Que dizer das moedas achadas nas ruínas de uma casa? Que, se existiram, foram para lá levadas depois do povoamento. Das inscrições numa gruta muito grande em S. Miguel, basta dizer que nunca se encontrou a gruta sequer. E, quanto aos carateres em pedra nas Quatro Ribeiras, quase todas as pessoas que os viram afirmam ser uma formação natural. Quem quer crer nos fenícios diz apenas que “talvez” … Quanto ao saber marítimo dos fenícios, não consta que tenham sido mais do que bons marinheiros de cabotagem. Os portugueses foram os primeiros a ser capazes de navegar sem terra à vista. Os próprios viquingues chegaram à Gronelândia fazendo escala nas ilhas Faroe e na Islândia, já então habitadas. E, da Islândia à Gronelândia (300 km), com boa visibilidade viaja-se sempre tendo a terra como referência: até meio caminho continua a ver-se a Islândia, daí para diante já se avista a Gronelândia. Daniel de Sá, Maia, S. Miguel, Açores

Diria ainda o cético Daniel de Sá a este respeito (jornal Público 20 julho 2008):

“…há outra novidade nas livrarias, que versa sobre uma famosa estátua que teria sido encontrada na ilha do Corvo pelos primeiros povoadores. Prova irrefutável de que por ali andaram cartagineses muito antes de Cristo calcorrear a Galileia. Falou dela Damião de Góis, que a descreve em pormenor, mas não a viu. Como convém nestes casos, não ficou nem um pedacinho da escultura, que teria sido levada para a corte no tempo de D. Manuel. Nem qualquer marca na ilha. E também desapareceram as moedas cartaginesas encontradas lá nos finais do século XVIII. Desaparecimentos deste tipo dão sempre jeito para uma história revista e aumentada.”

Já o célebre historiador e estudioso de fenómenos esotéricos, Joaquim Fernandes (um brilhante aluno que foi meu antigo colega de liceu, Faculdade de Letras da Universidade do Porto,[2]) responderá assim a Daniel de Sá:

“…. Pretendera beliscar uma dupla credibilidade: a de Damião de Góis, que descreve com algum detalhe, o episódio da estátua equestre encontrada pelos portugueses na ilha do Corvo, e o historiador no papel de autor do romance O cavaleiro da Ilha do Corvo, que embora em tons de ficção, fá-lo com a segurança e credibilidade que lhe confere uma investigação documental de centenas de referências bibliográficas, de Aristóteles à pesquisa atual, disponível no final do citado livro.

Desde o arquiteto Duarte d’Armas, que el-rei mandou ao Corvo fazer o desenho da estátua, aos pedreiros enviados ao ilhéu com a incumbência de trazerem o monólito para Lisboa, passando pelo donatário Pedro da Fonseca, que em 1529, se deslocou ao Corvo para recuperar uma legenda em carateres não-latinos descoberta no sopé onde antes existira a estátua do cavaleiro com “traços africanos”, seguindo a descrição de Góis.

E o mapa dos irmãos Pizzigani, de 1367, que confirma a tradição árabe das estátuas marco no centro do Atlântico?

Ou seja, o autor da Crónica do Príncipe D. João é digno de crédito para descrever a chegada do primeiro rinoceronte a Lisboa; mas já não serve quando relata a chegada ao Paço dos destroços do monumento, que a imperícia dos pedreiros provocara….

Quatro séculos passados persistem aqueles que minimizando a integridade de Damião de Góis, tentam fazer da História um livro fechado:”

Sei-o, por experiência própria, que sempre que se quer alterar o que ao longo dos séculos vem passando por História, um enorme coro se levanta a defender a versão e o status quo. Faz parte da mente humana recusar aceitar novos factos, provas ou teorias, que contradigam aquilo em que se acredita desde a idade de formação intelectual. O primeiro romance do investigador Joaquim Fernandes, “O cavaleiro da ilha do Corvo”, promete criar polémica, ao sugerir que os navegadores da Antiguidade terão conhecido os Açores muitos séculos antes de os portugueses ali terem chegado. (Jornal de Notícias 6/6/2008):

Na base da tese defendida no livro, alicerçada em anos a fio de investigações, encontra-se um dado para muitos desconhecido: quando os navegadores portugueses chegaram à ilha do Corvo, nos Açores, em meados do século XV, encontraram ali uma intrigante estátua de pedra, representando um cavaleiro com traços caraterísticos do norte de África. A existência do referido monumento até poderia ser uma simples lenda não fosse dar-se o caso de o relato da sua descoberta ter sido escrito pelo grande humanista português dos Descobrimentos Damião de Góis, cuja “obra e crédito são dificilmente questionáveis”, adianta Joaquim Fernandes. Obra de ficção que, segundo o autor, “não deixa de ser também um ensaio histórico”. “O cavaleiro da ilha do Corvo” levanta questões várias (“e se a tal lenda de um tal cavaleiro em pedra que aponta, do mais alto cume da ilha, em direção às Américas fosse apenas uma tentativa de insinuar a descoberta por outros povos do que Colombo definirá de Novo Mundo?”, questiona o autor) numa trama conspirativa destinada a relançar o debate em torno dos Descobrimentos. “O livro defende, em suma, a plausibilidade da hipótese da navegação no Atlântico mil anos antes de os portugueses darem início à sua aventura marítima “, explica o especialista no estudo do imaginário português. O docente da Universidade Fernando Pessoa, no Porto, tem outros projetos que aguardam publicação. O primeiro, intitulado “Poesia e o Céu”, é uma revisão da poesia portuguesa de todos os tempos, inspirada pelos astros. Igualmente ambicioso é o volume “O livro dos portugueses esquecidos”: em mais de meio milhar de páginas, Fernandes recorda a vida de 300 figuras nacionais dos séculos XVI a XIX que, devido a perseguições várias, se viram obrigadas a procurar refúgio noutros países, nos quais atingiram relevo em áreas tão distintas. Desde José Carlos de Almeida, o fundador da Sociedade Francesa de Física, ao Padre António de Andrade, o primeiro europeu a chegar ao Tibete, há biografias para todos os gostos. Do seu conjunto extrai-se a ideia de “um país que sempre conviveu mal com a diferença, exibindo sinais de uma intolerância, sobretudo política e religiosa, que se revelou catastrófica para o seu desenvolvimento, ao dispensar um número avultado de talentos”. A lista poderia ser ainda mais vasta se incluísse figuras como Damião de Góis ou Pedro Nunes, que abandonaram o país nas mesmas circunstâncias dos restantes biografados, mas o organizador da antologia entendeu privilegiar figuras que, apesar da sua valia, foram esquecidas com o decorrer dos anos. Para investigar esta autêntica ‘fuga de cérebros’, Joaquim Fernandes recorreu a enciclopédias e dicionários, mas também jornais e publicações científicas, surpreendendo-se com a quantidade de ‘estrangeirados’ que Portugal foi acumulando ao longo dos anos. “Boa parte dessa elite foi enriquecer sociedades como a alemã ou a holandesa”, lamenta o autor. Quando os navegadores portugueses aportaram pela primeira vez à pequena ilha do Corvo, nos Açores, em meados do século XV, encontraram ali uma intrigante estátua de pedra, representando um cavaleiro com traços caraterísticos do norte de África. Este episódio, despercebido a gerações de portugueses, iludido pelos manuais escolares, constitui um ponto de partida fulcral para a grande interrogação: quem descobriu pela primeira vez os Açores? Sabendo-se das diferenças qualitativas, não só etimológicas, entre “descobrimento”, “descoberta” ou “avistamento”, importa conhecer as diferentes etapas que fizeram da gesta das Descobertas Marítimas do Renascimento mais uma consequência do que antecedência gerada no zero dos saberes e da ignorância total sobre rotas oceânicas e capacidades náuticas epocais. (in RTP Açores Comunidades de 13/6/2009)

Quem foram os construtores da Estátua da Ilha do Corvo?

Esta surpreendente revelação tem sido regularmente refutada pela historiografia mais conservadora, que a tem crismado de “rumor”, “lenda” ou mesmo “fraude”. Mas, existe uma fonte autorizada – de entre outras de diversa natureza – por muitos silenciada ou ignorada ao longo dos séculos. Quem a forneceu à posteridade tem obra e crédito dificilmente questionáveis: Damião de Góis (1502-1574), o grande humanista português do Renascimento, que descreve, com algum detalhe, no capítulo IX da sua Crónica do Príncipe D. João, escrita em 1567, as circunstâncias em que o inesperado monumento – “antigualha mui notável”, assim lhe chama o cronista – foi achado no noroeste da pequena ilha, a que os mareantes chamam “Ilha do Marco”. Quando? “Nos nossos dias”, afirma o cronista régio, na mesma crónica, ou seja, no seu tempo de vida, provavelmente entre os finais do século XV e os inícios de XVI, no decurso do reinado de D. Manuel I e durante as primeiras tentativas de colonização da ilha do Corvo. O que era, então, esse insólito e inesperado “monumento”? “Uma estátua de pedra posta sobre uma laje, que era um homem em cima de um cavalo em osso, e o homem vestido de uma capa de bedém, sem barrete, com uma mão na crina do cavalo, e o braço direito estendido, e os dedos da mão encolhidos, salvo o dedo segundo, a que os latinos chamam índex, com que apontava contra o poente. Esta imagem, que toda saía maciça da mesma laje, mandou el-rei D. Manuel tirar pelo natural, por um seu criado debuxador, que se chamava Duarte d’Armas; e depois que viu o debuxo, mandou um homem engenhoso, natural da cidade do Porto, que andara muito em França e Itália, que fosse a esta ilha, para, com aparelhos que levou, tirar aquela antigualha; o qual quando dela tornou, disse a el-rei que a achara desfeita de uma tormenta, que fizera o inverno passado. Mas a verdade foi que a quebraram por mau azo; e trouxeram pedaços dela, a saber: a cabeça do homem e o braço direito com a mão, e uma perna, e a cabeça do cavalo, e uma mão que estava dobrada, e levantada, e um pedaço de uma perna; o que tudo esteve na guarda-roupa de el-rei alguns dias, mas o que depois se fez destas coisas, ou onde puseram, eu não o pude saber”. O cronista pormenoriza ainda que, “em 1529, o donatário Pêro da Fonseca, das ilhas das Flores e do Corvo, “soube dos moradores que na rocha, abaixo donde estivera a estátua, estavam entalhadas na mesma pedra da rocha uma letras; e por o lugar ser perigoso para se poder ir onde o letreiro está, fez abaixar alguns homens por cordas bem atadas, os quais imprimiram as letras, que ainda a antiguidade de todo não tinha cegas, em cera que para isso levaram (sublinhado nosso); contudo as que trouxeram impressas na cera eram já mui gastas, e quase sem forma, assim que por serem tais, ou porventura por na companhia não haver pessoa que tivesse conhecimento mais que de letras latinas, e este imperfeito, nem um dos que ali se achavam presentes soube dar razão, nem do que as letras diziam, nem ainda puderam conhecer que letras fossem”.

Rumores lendários ou testemunhos factuais?

Quais as testemunhas documentalmente identificadas, sem equívocos, diretamente envolvidas no episódio histórico em torno da chamada Estátua Equestre da Ilha do Corvo? Num primeiro grupo podemos incluir: D. Manuel I, 14º rei de Portugal; Duarte d’Armas, arquiteto e desenhador da Corte, autor do debuxo do monumento; um mestre pedreiro, natural do Porto, incumbido pelo rei da missão de desmontar e transportar o monumento para Lisboa; Damião de Góis, moço de câmara, cronista régio e guarda-mor da Torre do Tombo; Frutuoso de Góis, guarda-roupa do referido soberano e irmão mais velho do anterior; Pedro da Fonseca, donatário das ilhas das Flores e do Corvo, em 1529. Acrescentemos a estes um segundo grupo de outros presumíveis testemunhos, embora não referenciados nos documentos, como Antão Vaz Teixeira, colono da primeira vaga de ocupação da ilha (entre 1508 e 1515); os irmãos de apelido Barcelos, depois de 1515, na segunda tentativa de povoamento do Corvo, talvez os mesmos que alertaram Pedro da Fonseca, em 1529, e os que acompanharam o capitão da ilha ao local da laje para copiar a legenda da estátua. Finalmente, um terceiro núcleo de individualidades, mais ou menos coevos dos protagonistas da fase da recuperação da legenda, como sejam o Dr. Gaspar Frutuoso, o primeiro historiador açoriano, contemporâneo de Damião de Góis, ainda que um pouco mais novo que este; Fr. Diogo das Chagas, escritor, que confirma a presença do donatário Pedro da Fonseca, na ilha do Corvo, em 1529; o Dr. Luís da Guarda, corregedor dos Açores entre 1548 e 1552, referenciado por Gaspar Frutuoso como tendo sido uma das pessoas ( “ou outro seu propínquo antecessor”, supõe o historiador) que “pretenderam alcançar o segredo daquela antiguidade”, que, segundo os naturais das ilhas das Flores e do Corvo, ainda de acordo com Gaspar Frutuoso, “estava carcomida, com as faces do rosto e outras partes sumidas, cavadas e quase gastadas, do muito tempo que tudo gaste consome”. Embora Damião de Góis nos informe, textualmente, “em nossos dias se achou”, não aponta uma data. Sugere, quando muito, que a descoberta dessa “antigualha assaz antiga” – como ele a descreve – é contemporânea dele, do seu tempo. O facto de ter sido D. Manuel I a mandar investigar e a recolher o monumento aumenta essa probabilidade. Mas não é impossível que a informação tenha chegado antes à Corte portuguesa. É nesse conhecimento anterior a D. Manuel e Damião de Góis que se funda a tese da estátua do Corvo como elemento decisivo e impulsionador das explorações portuguesas de longa distância. Se o monumento existiu, de facto, quem poderia tê-lo construído? Para o cronista régio e arquivista da Torre do Tombo, “esta gente que veio ter a esta ilha e nela deixou esta memória poderia ser da Noruega, Gótica, Suécia ou Islândia”, divergindo assim da hipótese fenícia ou cartaginesa defendida pelo seu contemporâneo açoriano Gaspar Frutuoso. Recorde-se que o jovem Damião entrou ao serviço do Rei Venturoso com apenas nove anos de idade, fazendo companhia ao seu irmão mais velho, Frutuoso, guarda-roupa do soberano no Paço da Ribeira. Damião teve mestres de várias disciplinas, como mandava a refinada educação palaciana da época, começando como pajem da lança, servindo o rei à mesa. Passou também a estudar música, para satisfação do rei, um refinado melómano, estivesse em despacho ou na sesta. Mais tarde, foi moço de câmara, um lugar de intimidade no protocolo régio, sendo dos poucos que se permitia entrar na régia presença em pelote, que, ao contrário do que se possa pensar, era uma capa forrada de peles. Rezam as crónicas que segurava o bacio do penteador, enquanto o irmão Frutuoso penteava D. Manuel I… Temos, pois, reunido um séquito de testemunhos diretos, muito próximos, além dos indiretos, cuja concordância confere algum peso qualitativo à presunção da existência de facto do dito monumento, porventura perdidos os seus destroços entre as brumas da memória e das ruínas humanas.

Recorde-se que o jovem Damião entrou ao serviço do Rei Venturoso com apenas nove anos de idade, fazendo companhia ao seu irmão mais velho, Frutuoso, guarda-roupa do soberano no Paço da Ribeira. Damião teve mestres de várias disciplinas, como mandava a refinada educação palaciana da época, começando como pajem da lança, servindo o rei à mesa. Passou também a estudar música, para satisfação do rei, um refinado melómano, estivesse em despacho ou na sesta. Mais tarde, foi moço de Câmara, um lugar de intimidade no protocolo régio, sendo dos poucos que se permitia entrar na régia presença em pelote, que, ao contrário do que se possa pensar, era uma capa forrada de peles. Rezam as crónicas, que segurava o bacio do penteador, enquanto o irmão Frutuoso penteava D. Manuel I… Temos, pois, reunido um séquito de testemunhos diretos, muito próximos, além dos indiretos, cuja concordância confere algum peso qualitativo à presunção da existência de facto do dito monumento, porventura perdidos os seus destroços entre as brumas da memória e das ruínas humanas.

Em 1587, o Corvo foi saqueado e as suas casas queimadas pelos corsários ingleses, que haviam atacado as Lajes das Flores. No ano de 1632, a ilha sofreu duas tentativas de desembarque de piratas da Barbaria, no atual cais Porto da Casa, que era apenas uma baía. Duzentos corvinos usaram tudo ao seu dispor para repelir os atacantes que acabaram por desistir com baixas. A imagem de Nossa Senhora do Rosário foi colocada na Canada da Rocha e diz a lenda que ela protegeu a população das balas disparadas.

No séc. XVIII, com a chegada dos barcos baleeiros norte-americanos à Ilha das Flores para recrutar tripulação e arpoadores, uma vez que os corvinos eram apreciados pela sua coragem, iniciou-se uma estreita relação com a América do Norte, que passou desde então a ser o destino de eleição para a emigração corvina e de onde chegaram praticamente todas as novidades à ilha, a qual manteve durante muito tempo uma relação mais estreita com Boston do que com Lisboa. A emigração clandestina era uma constante da vida da ilha, apesar dos esforços repressivos das autoridades portuguesas, preocupadas com a fuga ao serviço militar obrigatório e com a perda de mão-de-obra. Os corvinos pagavam um pesadíssimo tributo aos capitães do donatário. Manuel Tomás de Avelar foi o chefe da ndelegação de corvinos que foi a Angra do Heroísmo fazer a petição, despertando, pela sua sabedoria e maneiras, o espanto da liderança liberal da Regência de Angra. Mouzinho da Silveira, impressionado pela quase escravidão em que vivia o povo do Corvo, obrigado a comer pão de junca para poder pagar o tributo a que se encontrava obrigado, propôs a redução para a metade, do pagamento em trigo e anulou o pagamento em dinheiro, fazendo assim a felicidade dos corvinos. A impressão foi tal que Mouzinho da Silveira, hoje homenageado como patrono da Escola Básica Integrada do Corvo, anos depois escreveria no seu testamento que gostaria de estar sepultado na ilha, “cercado de gente que na minha vida se atreveu a ser agradecida”.

MOUZINHO DA SILVEIRA

O decreto, datado de 14 de maio de 1832, e assinado em Ponta Delgada por D. Pedro IV, reduziu à metade (20 moios) o pagamento em trigo que os corvinos faziam a Pedro José Caupers, então donatário da Coroa, e eliminou o pagamento em dinheiro de 80 000 réis. Em contrapartida, a Coroa assumiu indemnizar o donatário. O tributo apenas foi completamente abolido em 1835.

Pedro IV de Portugal elevou a povoação do Corvo à categoria de vila e sede de concelho (20 de junho de 1832). O decreto determinou que a nova vila se chamasse Vila do Corvo, e não Vila Nova como por vezes aparece grafado.

Antes disso, esteve sob jurisdição de Santa Cruz das Flores, sendo uma das freguesias daquele concelho. Atualmente o dia 20 de junho é feriado municipal.

134.3.1. FLORES E CORVO UMA VIAGEM, 26 agosto 2013

Da cama vejo o Corvo, um rochedo em formato de bota medieval, pontos brancos no sopé, no tacão, ilha inviável na teimosia dos habitantes. Da varanda vejo uma baleia decepada no átrio do Museu da Fábrica da Baleia (que ainda não abriu na antiga fábrica de retalhar cetáceos). Santa Cruz das Flores tem cerca de 2 mil almas, uma vida pachorrenta neste bulício de verão. Nem imagino como será a longa invernia de mares alterosos, onde hoje há um espelho de água que me lembra a Baía de Díli, em frente a Lecidere, nos anos 70 do século passado…. Em volta só há mar até às Américas, que isto de Europa já nada tem. Se Galileu não o tivesse dito, a Terra podia ser plana, tão vasto e reto é o horizonte que se confunde com o oceano.

Parado no carro, à espera da minha cara-metade e dos seus remédios, à porta da Farmácia de Santa Cruz, vejo aproximar-se e parar, um simpático agente da autoridade numa viatura da Polícia Marítima, o qual, cortês, me chama à atenção, de que estou contra a mão.

O mesmo me acontecera em S Jorge. Estou sempre contra qualquer coisa. Já é mania. Analisadas as instalações e de darmos umas voltas pela urbe fomos almoçar ao Boston Super Hambúrguer, bom e barato 6.00€ PAX. Ao jantar fomos ao Restaurante Rosa (logo a seguir à Igreja) com comida aceitável por 11.00€.

Depois de uma ida à piscina e ao ginásio fomos repousar cedo. O sol pôs-se por detrás de nós, detrás dos montes, vieram as estrelas e os cagarros, o marulhar calmo das ondas, contrastando com os gritinhos quase infantis e divertidos destas aves, sobre a piscina iluminada.

Ao longe há cento e tal casas alumiadas no Corvo, e mais meia dúzia a meia encosta. Vi os faróis de um carro rumo à caldeira. Parece estar aqui tão perto, essa terra de lendas e povos antigos. A Ursa Maior apontava o caminho enquanto a Ursa Menor me atraía e me confundia entre as constelações Pégaso e Oríon, esquecido que estou de olhar os céus, nomes perdidos na memória de anos idos.

Este silêncio, esta paz, a gentileza das gentes. Ao jantar, no apinhado restaurante Rosa, os funcionários estavam preocupados pelo atraso em servirem-nos, por entre a confusão de terem de atender também duas mesas de 25 excursionistas doutra ilha. Uma terra com a dimensão pouco maior do que a Maia em São Miguel virada para o mar por todos os lados (e a atestá-lo a numerosa flotilha de barcos e barquinhos a toda a hora cruzando o canal para o Corvo), ilha esquecida pelos governos centrais e regionais (exceto agora em tempo de eleições e de alcatifar estradas e caminhos municipais).

Apetece fugir para aqui, apesar de não haver gelados em parte alguma, porque de acordo com o que me foi gentilmente explicado “esta terra é assim”.

Apetece fugir para aqui das guerras, da fome, dos governos que nos desgovernam e passar despercebido do mundo. Terra ideal para escrever como Roberto Mesquita e Pedro da Silveira fizeram, enquanto iam ao mar buscar laranjas. Amanhã vou ao Corvo…ver grutas e sonhar com golfinhos e baleias.

Da varanda continuo a ouvir a dança louca dos cagarros, cada um com seu cântico de guerra distinto….

Ao olhar o Corvo na lonjura parecia um botim, ou mais romanticamente, um navio à medida da Jangada de Pedra do Saramago à deriva no Atlântico Norte.

Se ao menos tivesse asas como os cagarros deixava-me ir mesmo sem lhes conhecer o alfabeto nem o sotaque dos seus constantes ralhos.

a fábrica da baleia, ora museu em santa cruz das flores NASCER DO SOL NAS FLORES aerodromo do corvo

134.3.2. COMO VI O CORVO EM 27 agosto 2013

Amanheceu mesmo em frente à janela da suíte e talvez pela primeira vez (desde que me lembro) vi o sol nascer sobre o mar, momento inolvidável de beleza e magia que iria marcar o resto do dia dedicado à viagem ao Corvo. Saímos com outras 12 pessoas num Zodiac, barco semirrígido, para uma viagem de pouco menos de 40 minutos (15 milhas) ao custo de 30 Euros por pessoa, com direito a ver grutas. O guia navegador, há 20 anos metido nisto, apoia a Universidade dos Açores e seus biólogos, e deu explicações detalhadas sobre cagarros, a pesca do atum e aspetos da vida marinha.

CALDEIRÃO DO CORVO

A viagem correu bem sem sobressaltos, mas se vislumbrarem os prometidos golfinhos nem baleias (cachalotes). Muito calor à chegada ao pequeno cais, o Porto da Casa, onde 3 carrinhas de 9 lugares nos esperavam para levarem os visitantes ao Caldeirão e suas lagoas, ponto obrigatório de visita dos turistas, a um custo de 5 euros por pessoa, creio eu. Ainda não chegara a névoa e via-se tudo bem. Muitas pessoas desligaram-se do grupo e foram caminhar pelos trilhos, monte acima, ou monte abaixo, descendo depois os 8 km a pé até à capital da ilha e única povoação.Perguntei ao motorista como era a vida no Corvo, face às noções que fui acumulando ao longo dos anos, sobre as suas privações, a sua pouca população (menos de 400 pessoas), as longas noites de invernia, mares de vagas de doze metros, semanas sem comunicação com o mundo exterior de barco ou avião (a fibra ótica está quase a chegar). O motorista disse que agora já não era tão mau como o fora até há alguns anos, pois as pessoas tinham meios para se abastecerem e fazerem face aos cortes de suprimentos causados pela falta de comunicações marítimas.O ilhéu que parece uma bota, onde as suas gentes se confinaram à outrora chamada Vila Nova do Corvo (hoje Vila do Corvo) sem ocupação efetiva da terra como local de moradia nas terras mais altas. A altitude do Caldeirão do Monte Gordo é de 300 metros, a sua crista fica a 600 metros, mas o Morro dos Homens atinge 718 m. Tem um diâmetro de 2 mil metros com pequenos lagos, dois ilhéus compridos e cinco ilhéus arredondados tendo-se formado há cerca de 1,5 milhões de anos. Na estrada de ascensão à Caldeira havia muito movimento para uma ilha tão pequena e despovoada: carrinhas de vaqueiros, pequenos tratores, moto-quatro conduzidas por idosos, jovens e até por uma mulher (a igualdade de género já chegou ao Corvo). Na vila vimos vários camiões e equipamento pesado de construção a indicar um surto de edificação bem necessário. A ilha aparenta muita pobreza, sujidade, falta de cuidado na manutenção e pintura dos velhos edifícios, nalguns dos quais se via o carabelho, fechadura típica que só recordo ter visto no distrito de Bragança (mais propriamente em Rio de Onor). Alguns edifícios mereciam ser recuperados, e mantidos nas suas estreitas canadas que lembram aldeias medievais, como aliás é a origem do Corvo, de casas quase encostadas umas às outras (mas com pequenas ou minúsculas passagens entre elas). A degradação do parque urbano habitacional, se bem que parcialmente explicado pela desertificação humana e emigração, carece de uma política mais proativa para a sua recuperação, pois no estado atual é um mau cartão de visitas da ilha. Vi muito (mas mesmo muito) lixo atirado para as ruas e para as canadas, por entre os prédios seculares, muito mais do que se esperava ver numa terra que ostenta modernos ecopontos com contentores ecológicos de separação de conteúdos. É necessário fazer campanhas de sensibilização de lixo. Outro mau cartaz para o turismo.

carabelho Degradação do parque habitacional do corvo

Ao lado da assustadoramente pequena pista do aeródromo, estavam, três moinhos a serem reconstruídos, dois caiados e outro mantido com a pedra original à vista. Qual não é o meu espanto ao ouvir chamar o meu nome (ó professor! Ó professor!) e deparar com o mestre carpinteiro José Moniz, da Lomba da Maia, e o mestre José Alberto, da Lombinha da Maia, os quais costumam fazer todos os trabalhos de manutenção da minha casa. O mundo é assaz pequeno. Fiquei satisfeito por encontrar conterrâneos[3], ali, tão longe de casa e observar o importante trabalho para que foram chamados por serem especialistas no restauro deste tipo de moinho de vela triangular, muito rara nos Açores. Uma excelente recuperação do património histórico. O resto da estadia no Corvo foi passado em curtos passeios a pé na pequena vila, entrecortado por um almoço na Traineira, único bar e restaurante em funcionamento na ilha naquela data, depois de outro mais moderno mesmo sobre a pista de aviação ter falido. A ementa com 4 alternativas e sobremesa foi económica, 8,50€ PAX. Muito calor preencheu esta estadia. Havendo ainda tempo antes de reembarcarmos para observar a manobra de carga de gado num navio que chegara de manhã com mantimentos. Curioso ver a vaca a ser transbordada. Dantes era bem pior e mais desconfortável para os animais…

Moinhos do Corvo, um ex-líbris

Porto da Casa transporte de gado atualmente e dantes

A viagem de regresso foi mais agitada, contra o vento, e ondulação mais forte com o semirrígido a bater bem na mareação. O momento alto surgiria na visita a pequenas enseadas, ilhotas e quedas de água espantosas em grutas. Senti-me verdadeiramente transportado para o cenário de Os Salteadores da Arca Perdida…

GRUTAS E ROCHAS NA COSTA DAS FLORES GRUTA NAS FLORES

Uma rocha furada em círculo evocava o dedo de deus na costa de Toledo no norte de São Jorge, mas havia outras peças da arquitetura da natureza com uma beleza que só ela consegue.

[interromperam-me os cagarros com os seus cânticos de velhas rezingonas, parece que falam ou ralham entre si, e depois surge sempre outro com um cântico diferente, antes de todos se calarem por instantes, e recomeçarem a agitada conversação…] Misturar uma queda de água sobre a entrada de uma gruta é de uma suprema beleza. Noutro caso, uma gruta aberta dos dois lados (quase que dava para o barco passar em ambas as entradas) a montanha descendo até ao nível do mar, interrompendo o maciço rochoso para se observar a água do mar de um azul-turquesa mais próprio dos Orientes exóticos e do Mar pacífico, criando uma enorme mancha turquesa à superfície e prolongando-se sob o mar. Havia formações rochosas com formato e feições de animais sempre com o pano de fundo do Corvo em forma de bota de um lado, e do outro a pipoca das Flores. Nessa tarde repetimos o jantar no restaurante Rosa, mas o preço já foi de 14.00€ PAX. As imagens falam melhor do que as palavras que perdi quando vi o segundo amanhecer no dia 28.

[1] http://www.rtp.pt/acores/comunidades/quem-chegou-pela-primeira-vez-aos-acoresos-povos-maritimos-da-antiguidade-e-as-navegacoes-no-atlantico-13-joaquim-fernandes_39890

[2] cofundador do Centro Transdisciplinar de Estudos da Consciência, (CTEC), da Universidade Fernando Pessoa, doutorou-se em História com uma tese sobre “O Imaginário Extraterrestre na Cultura Portuguesa – do fim da Modernidade até meados do século XIX”, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, a primeira da sua temática numa Academia portuguesa e europeia e editada sob o título “Moradas Celestes” (ed. Âncora Editora, 2014). Desde 1997 que tem promovido a realização de vários congressos internacionais subordinados ao título genérico de “Fronteiras da Ciência”, na Universidade Fernando Pessoa. Colaborou na organização da conferência “Ciência e Consciência” integrada no programa do “Porto 2001, Capital Europeia da Cultura”.Em 2008 publicou o seu primeiro romance histórico, “O Cavaleiro da Ilha do Corvo”, a que se seguiram os ensaios “O Grande Livro dos Portugueses Esquecidos”, “Mundos, Mitos e medos – O Céu na Poesia Portuguesa”. No mesmo ano, apresentou na RTP2 a série temática “Encontros Imediatos”, dedicada ao fenómeno OVNI em Portugal. Em 2010 escreveu em coautoria o guião do telefilme “A Noite do Fim do Mundo”, que retrata as reações em Portugal à aproximação do Cometa Halley, em 1910, integrado no ciclo dedicado ao Centenário da República Portuguesa programado pela RTP1. Para a RTP2, coordenou a série temática “Encontros Imediatos”, dedicada ao fenómeno OVNI em Portugal. Em 2014 publicou o seu segundo romance histórico “As Curandeiras Chinesas. Um motim que abalou a I República” (ed. Gradiva). Publicou em 2015 a obra “História Prodigiosa de Portugal. Mitos & Maravilhas”, que prossegue a linha de investigação da obra “História Prodigiosa de Portugal. Mitos & Maravilhas” (Quidnovi, 2012). O seu mais recente título “Portugal Insólito” foi dado à estampa pela editora Manuscrito (2016). Foi autor do guião e da apresentação do documentário “As Faces de Fátima”, produzido para o Canal História em 2017 e, no Porto Canal, coordenou a série “Conversas do Centenário” dedicada aos eventos aparicionais de Fátima. Está biografado no “Dicionário das Personalidades Portuenses do século XX” (Porto Editora, 2001).

[3] Apesar de não ser nativo dos Açores, senti-me irmanado de um açorianismo que me levava a considerar conterrâneo daqueles dois vizinhos. Era quase como ver familiares num país distante.

sobre a História da Ilha do Pico e uma viagem à ilha montanha

retirado de ChrónicAçores uma circum-navegação vol 2 2011 e em

chrónicaçores uma circum-navegação vol 3

disponível em https://blog.lusofonias.net/chronicacores-uma-circum-navegacao-vol-3-parte-ii-2010-2018/

 

CRÓNICA 74 A MAGIA E O MAGNETISMO DO PICO ATRAEM-ME, SERÁ AQUI O ABISMO? 09 09 09

74.1. A MAGIA E O MAGNETISMO DO PICO ATRAEM-ME

Isto das ilhas tem muito que se lhe diga, algumas pessoas estão de costas voltadas para o mar, como em S. Miguel, enquanto outras há que não vivem sem ele, como no Pico. Sei que é uma questão de tempo até começarem a zurzir nos forasteiros que ousam opinar sobre este arquipélago. Quando se perora sobre as nove filhas de Zeus urge não melindrar os interesses estabelecidos.

As visões críticas ou não conformadas aos cânones podem acarretar sérios riscos para a saúde mental dos seus autores. Vozes críticas ou arredadas dos estereótipos não abundam nem são benquistas. As elites dominantes e os poderes caciqueiros logo se insurgem. A ingratidão, vergonha e falta de patriotismo são epítetos comummente usados para denegrir os que ousam. Citam-se páginas relevantes da heroica gesta açoriana, com destaque para as guerras liberais e inúmeras desventuras de emigrantes que triunfaram. Surgem editorais e recensões violentas nos jornais locais. Os caixeiros-viajantes da cultura logo se arrogam o direito de defender a açorianidade ofendida. Tais declarações de repúdio raras vezes saem dos quatro cantos do arquipélago que falar dos Açores ainda não se tornou moda na grande capital do Império.

Foi isto que, por mais de uma vez, aconteceu ao meu amigo, o mal-amado escritor Cristóvão de Aguiar. Apodaram-no de tudo e mais alguma coisa, pois convém sempre ser mais papista que o papa. Em meios pequenos é consabida a tendência para apoucar aqueles que das leis do esquecimento se desembaraçaram, como diria o vate, enquanto o imperador e seu séquito distribuem viagens e mordomias. Terras pequenas, invejas grandes ou a reprodução literária do mote popular “a minha festa é maior que a tua”.

Para o comum dos mortais a vida prosseguiria o seu rumo, mas os Açores são uma réplica miniatural da corte lisboeta. As elites não perdoam aos que não comungam da verdade única com força de dogma. Cristóvão escreve com uma pluma incómoda. Reservou-se um papel de narrador que pensa, fala e escreve sem recorrer aos lugares comuns que tanto gáudio causam na população. Não reivindica verdades absolutas ou duradouras, limita-se a descrever o que sente e vê. Criaram-lhe a fama de irascível (quantas vezes com justas e fundadas razões?). Eu recebi “avisos amigos” para os perigos quando o convidara a estar na Lagoa em março – abril de 2009 para o 4º encontro açoriano da lusofonia. Congratulo-me que, relutantemente, Cristóvão tenha acedido. Ao longo de cinco meses trocamos correios eletrónicos e telefonemas criando uma amizade saudavelmente aberta e crítica. Estava eu carecido de aprender mais com este enigmático personagem que tantos cuidados incutia aos defensores da paz podre açoriana. Como acumulei milhas no cartão de viandante frequente aceitei a sua hospitalidade para uns curtos quatro ou cinco dias no Pico que Cristóvão assumiu como segunda pátria. Nove dias após partir de São Miguel Arcanjo na ilha mágica de regresso à ilha de São Miguel Arcanjo ainda reverberavam os encantos daquela.

Deixei a Lomba da Maia de noite pois nunca se sabe quando se encontram vacas, tratores e carros agrícolas ou, se pelo contrário, se viajará sem transtornos. O trânsito pela sete da manhã era constante. Bem distinto da calma que conheci à minha chegada em 2005. Parte do novo influxo de viaturas deve-se ao empreendimento da SCUT (via rápida sem custos para o utilizador) que avança, lentamente, da Ribeirinha para o Nordeste, desbastando montes, encurtando vales, quebrando rochas milenares, alterando definitivamente a pacata paisagem da costa norte imutável ao longo de gerações e melhorando, ao de leve, o traçado da estrada centenária.

Há quem sinta nostalgicamente que este progresso avassalador destruirá paisagens milenares intocadas, mas será um alívio para quem conduz do Nordeste à Ribeira Grande. Enquanto durar a construção é dinheiro vivo injetado nos locais por onde a estrada passa. A casa em frente à minha, está para vender há 4 anos, e foi alugada a trabalhadores das obras. Estes irão gastar mais energia da EDA, mais água dos SMAS, indo abastecer-se no minimercado local e no café da esquina…o circuito económico do desenvolvimento alastra-se até à conclusão da obra. Este é, afinal, o ciclo de quatro décadas que a Austrália inventou para ter uma economia sempre crescente.

Era apenas dia 27, mas no aeroporto concentravam-se já cinco voos neste final de férias de agosto, dois para Lisboa, um para o Porto, o do Pico e o das Flores. Apenas sete pessoas antecediam na fila de “check-in” quando os computadores avariaram. As filas pararam mais de 40 minutos e rapidamente cresceram. Mais de uma centena de pessoas. O ar era irrespirável com o calor e humidades próprios da época e do local. A habitual cortesia e hospitalidade dos operadores aéreos (SATA e TAP) para com os seus clientes e passageiros levou-os a nada comunicarem sobre o acontecido. Fizeram bem, pouparam preocupações aos passageiros sobre assuntos que lhes não diziam respeito. A turba acumulava-se incomodada naquela sala que bem podia ter sido retirada duma cena de “O Passageiro em trânsito”, opus magister, do Cristóvão de Aguiar.

As línguas entrecruzavam-se com os idioletos dos emigrados que não falam nem português nem inglês. Numa banda desenhada os olhares atónitos dos estrangeiros surgiriam acompanhados de balões com pontos de interrogação descomunais. O silêncio imperava nos altifalantes contrastando com o alvoroço dos candidatos a viajantes. O sistema sonoro do Aeroporto Papa Paulo II, Ponta Delgada, ainda é tão arcaico que ninguém consegue entender as mensagens por entre o alvoroço habitual. As pessoas movem-se, umas atrás das outras, num espírito cego do carneirismo em resposta a apelos imaginados ou anúncios que a SATA nunca fez…A partida prevista para as 08.30 aconteceu pelas 10.20. Avisara já o seu anfitrião cujo banho matinal nas Poças de São Roque do Pico estava irremediavelmente arruinado.

É sempre imponente ver o avião aproximar-se do cume da montanha do Pico, 2.351 m acima do nível do mar, o mais alto de Portugal e da dorsal mesoatlântica. Medido a partir da zona abissal contígua tem quase 5.000 m de altura. O vulcão é recente (750 mil anos), entrando em atividade pela última vez no séc. XVIII a sueste (São João). A Ilha estende-se por 447 km², 42 km de comprimento e 15,2 de largura. Não se sabe a data da sua descoberta, alvitrando-se que a sua colonização se terá iniciado por 1480, com gente oriunda da região norte de Portugal.

A importante vinha, que alterou a paisagem e a cultura ocidental da Ilha, foi classificada em 2004 Património da Humanidade pela UNESCO. Outra atividade da Ilha está patente no Museu dos Baleeiros, nas Lajes do Pico. A caça à Baleia, desenvolvida e influenciada pela presença norte-americana desde finais do século XVIII, está hoje transformada em viagens de observação destes cetáceos a que pomposamente se chama de “whale-watching” como se não houvesse equivalente lusófono.

A arquitetura típica é de casario simples, branco com blocos de lava preta, que espelha a origem vulcânica da Ilha. Lugares como Lajes, São Roque e Madalena, estão cheios de história e património, ou de encanto natural como a Gruta das Torres, as Furnas de Frei Matias ou o Arco do Cachorro. A Ilha oferece uma boa gastronomia baseada em peixe e marisco, sendo famosas as caldeiradas. A saborosa carne provém dos pastos abundantes e é afamado o queijo (de São João e do Arrife). Tudo regado pelo Vinho Verdelho.

Convirá recordar, para quem eventualmente não saiba, qual a gesta das gentes do Pico ao longo da conturbada história da ilha, que durante séculos foi considerada uma “quinta” da fidalguia da ilha do Faial. Comecemos pelas desgraças naturais

1562-1564 — Erupção vulcânica na Prainha do Norte –

Em 21 de setembro de 1562, após prolongado tremor de terra, que terá durado um “terço de hora”, acompanhado de grande estrondo, & logo em hum lago, & por cinco bocas arrebentou tal fogo, que delle, & de polme ardente correo huma ribeyra por espaço de huma légoa, até se meter no mar do Norte, & no mesmo mar formou, com entrada nelle de hum tiro de arcabuz, aquele grande caes de pedraria abrazada, […] e affirma o douto Fructuoso, que foi taõ grande o fogo, que todas as mais Ilhas Terceyras se allumiaraõ com elle, & até na de São Miguel fez da escura noyte claro dia”, diz o padre António Cordeiro na sua História Insulana das Ilhas a Portugal Sugeytas no Oceano Occidental (pág. 477 edição Prínceps).

1713-1714 — Um mau ano agrícola,

A que não foi alheio o ciclone tropical de 25 de setembro 1713, levou a que no Pico o povo comesse “socas e raízes” para sobreviver. Também uma epidemia de peste provocou milhares de mortos. No Pico terão morrido 5.000 pessoas e no Faial 500 entre as quais 49 religiosos dos conventos da Horta.

1718 — Erupção em Santa Luzia do Pico –

A 1 de fevereiro, pelas 6 da madrugada, ouviu-se uma “espantosa trovoada que encheu de terror os hortenses” e iniciou-se uma erupção vulcânica entre Bandeiras e Santa Luzia, surgindo torrentes de lava que rapidamente formaram um extenso mistério (de Santa Luzia) que penetrou mar adentro.

1720 — Erupção no Soldão, Lajes do Pico –

A 10 de julho iniciou-se por “dezasseis bocas nas faldas do Pico, por detrás do cabeço do Soldão” uma erupção que “inundou de fogo” perto de uma légua quadrada, consumindo terras e vinhedos e destruindo 30 casas “cujos moradores salvaram suas vidas fugindo precipitadamente”. A erupção foi precedida de numerosos sismos e perdurou até dezembro daquele ano.

1744 — Ciclone tropical causa grandes cheias

A 5 de outubro “caíram nestas ilhas copiosíssimas chuvas que inundaram as terras correndo em caudalosas ribeiras”. Na Prainha do Galeão (Pico) morreram 7 pessoas arrastadas ao mar; na Prainha do Norte (Pico) morreram 6 e outras 5 pereceram em São Roque.

1745-1746 — Mau ano agrícola

Provoca fome e emigração em massa – como resultado das cheias de 1744 e do mau ano agrícola que se seguiu, em 1746 faltaram os cereais, havendo fome generalizada. No Pico, o povo “recorreu a socas e raízes para manter a vida e faltando-lhe esse mísero alimento emigrou para as mais ilhas”. Em resultado da desnutrição grassavam as doenças, fazendo grande mortandade. Face a esta situação, por alvará régio foi autorizada a emigração para o Brasil, tendo partido pelo menos 1600 pessoas.

1757 — Grande terramoto de São Jorge –

Em 9 de julho de 1757 um dos mais violentos, senão o mais violento, dos terramotos de que há memória atingiu São Jorge causando destruição generalizada e formando muitas das atuais fajãs, entre elas a da Caldeira de Santo Cristo. O terramoto ficou conhecido na tradição popular pelo Mandado de Deus. Dos grandes deslizamentos resultou um maremoto que atingiu todo o Grupo Central. Pelo menos 1053 pessoas morreram em São Jorge e 11 no Pico. “O terramoto foi tal que a norte desta ilha, distância de 100 braças, pouco mais, se levantaram dezoito ilhotas, umas maiores que outras. Apareceram todas na manhã do dia 10 [de julho]. É navegável o mar entre as ditas, e a ilha. Nas Fajãs dos Vimes, São João e Cubres, se moveu a terra, voltando-se do centro para cima, de sorte que nelas não há sinal [de] onde houvesse edifício” …

1963 — Crise sísmica e erupção submarina frente a Santo Luzia, Pico

– Entre os dias 12 e 15 de dezembro um tremor vulcânico com foco ao largo do Cachorro, Santo Luzia, costa norte do Pico. O tremor foi contínuo nos dias 13 e 14 de dezembro. A 15, com bom tempo e boa visibilidade, pessoas do Faial e Pico avistaram “bolas ou nuvens de vapor” saindo do mar frente ao Cachorro. Não foi recolhido qualquer material e o fenómeno não voltou a ser avistado, não se registando quaisquer danos.

1973 — Crise sísmica no Pico e Faial –

A partir de 11 de outubro começaram a ser sentidos numerosos sismos nas ilhas do Pico, Faial e São Jorge, com destaque para a freguesia de São Mateus e o lugar da Terra do Pão, no Pico. A 23 de novembro, pelas 12 h 36 min registou-se um violento sismo (grau 7/8 da escala Wood-Neumann) com epicentro próximo a Santo António. O sismo provocou graves danos, com muitas casas parcialmente destruídas, muros caídos e estradas obstruídas, nas freguesias de Bandeiras, Santa Luzia, Santo António, e São Roque, na costa norte, São Mateus, na costa sul do Pico, e ainda nas freguesias de Conceição, Matriz e Flamengos, no Faial.

1998 — Sismo de 9 de julho, Faial, Pico e São Jorge

– Pelas 5:19 da madrugada um sismo de magnitude 5,6 na escala de Richter com epicentro a NNE da ilha do Faial provocou destruição generalizada nas freguesias de Ribeirinha, Pedro Miguel, Salão e Cedros no Faial e fortes danos em Castelo Branco (Lombega), Flamengos e Praia do Almoxarife, também no Faial. Também atingidas foram várias localidades da ilha do Pico. No extremo oeste de São Jorge (Rosais) o sismo provocou grandes desabamentos de falésias costeiras. Morreram 8 pessoas, no Faial. Ficaram desalojadas 1700 pessoas.

Para que os primeiros colonos cultivassem as terras foi necessário desbastar densos arvoredos que proporcionavam matéria-prima para exportação e para construção naval (cedro). O cultivo de cereais, sobretudo o trigo, e a criação de gado foram as atividades predominantes. A produção de pastel e a sua industrialização para exportação destinada a tinturaria também desempenhou um papel relevante na economia do arquipélago. Esta atingiu o auge quando a cana-de-açúcar (sem grandes resultados económicos) e o trigo entraram em decadência.

No século XVII, as matérias-primas tintureiras foram substituídas pelo linho e laranjas. Foi introduzido o milho, para melhoria alimentar da população e apoio à pecuária. A exportação de laranjas surgiu no século XVIII, quando foi introduzida a cultura da batata. Em finais de Setecentos, regista-se o início de uma expressiva e emblemática atividade económica açoriana: a caça ao cachalote. No séc. XVIII, os Açores já tinham uma população suficientemente grande para que a Coroa incentivasse a emigração para terras brasileiras. No ano de 1460 foi concedida a Álvaro Ornelas, capitão donatário da ilha da Madeira, a carta de primeiro capitão-donatário do Pico, cabendo-lhe a responsabilidade pelo seu povoamento. Nunca demonstrou interesse pela ilha, sabendo-a inóspita e por viver na Madeira.

Houve duas abordagens à ilha, uma pelo lado sul, Lajes em 1460, e outra pelo lado norte, São Roque, em 1470. A zona oeste continuou totalmente desabitada, coberta por um manto de lava onde não existia qualquer terra cultivável, nem corria água que permitisse abastecer quem lá se quisesse instalar. Entre São Mateus e Santa Luzia não havia qualquer ribeira. O flamengo Jos Dutra, capitão donatário do Faial, pediu à coroa portuguesa a carta de capitão donatário para o Pico, que foi concedida em 1482, tornando-se assim, no seu segundo donatário. Dutra organizou o primeiro grupo de povoadores, em São Mateus.

Reza a história que Frei Pedro Gigante, primeiro pároco da ilha, plantou as primeiras videiras no lugar de Silveira, vindas da Madeira dizem uns, ou de Chipre dizem outros. Há relatos que dizem que a plantação de vinhas se estendeu para sul (Santa Bárbara) e norte (Prainha do Norte). A comunidade do Faial iniciou o ciclo do vinho verdelho, plantando bacelos de vinha nas rochas de lava, tendo obtido bons resultados com boas parreiras e uvas de qualidade. Os habitantes trabalharam arduamente e à força de barra de ferro e marrões, quebraram a lava, abriram covas onde colocaram terra para plantar vinha obtendo um vinho muito bom e de grande teor alcoólico. A plantação das vinhas era feita a partir da costa desabrigada, estando sujeitas ao rossio de água salgada entre os meses de abril e junho. Para combater o problema e amanhar a lava retirada para a plantação dos bacelos, assistiu-se a outra tarefa gigantesca: a construção de muros de pedra solta com um metro de altura. Tendo em conta a orientação predominante dos rossios do mar foram-se construindo paredes com cinquenta metros de comprido, paralelas umas às outras, distando entre si dois a três metros, terminando junto a uma vereda transversal, a servidão. A área entre duas servidões paralelas e contíguas chamava-se “Jarrão”. Em cada canada construíram muros transversais, “traveses” que distavam entre si cinco metros e em que de um dos lados não chegava à parede da canada, dando lugar a uma passagem, a “bocaina” sendo colocadas em posições alternadas para maior proteção dos ventos. O espaço na canada entre dois “traveses” contíguos chamava-se curral.

Produziam-se mais de duas mil pipas de vinho por ano no final do séc. XVI. A produção foi crescendo. Relatos do clero afirmaram, exageradamente, que a produção chegou às trinta mil pipas. É nesta época áurea que os proprietários, quase todos do Faial, constroem os seus solares junto à costa, verdadeiras casas de veraneio, com armazéns, lagares e alambiques. Foram construídos em todos eles poços de maré para fazer face à falta de água. Também se construíram poços de maré em lugares públicos, para permitir à população o abastecimento de água, nomeadamente no verão. A tarefa não era fácil pois as casas situavam-se acima das áreas das vinhas e distantes da costa onde se situavam os poços. Neste período construíram-se pequenos portos ou embarcadouros, junto aos locais onde o vinho era produzido. Para lá chegar foi necessário aplanar as rochas para levar o vinho, a essas construções chamaram-lhes “rola-pipas”.

A quase totalidade do vinho produzido era transportada para o Faial em pequenos barcos, até ao fim do verão, aproveitando os mares calmos. Ali ficavam armazenados até à exportação para o norte da Europa, Índias Ocidentais, América do Norte ou Brasil. Uma das mais importantes casas do Faial na exportação do vinho do Pico, foi “De Sobradello & Co”. No séc. XIX a casa Dabney foi outro grande exportador do vinho e a que mais contribuiu para que o vinho fosse pago a um preço mais justo para o produtor. Em 1852 um pó branco cobriu totalmente as uvas, desde a floração até à maturação, destruindo-as inteiramente e alastrando a todas as vinhas. A produção caiu para uma centena de pipas. As casas ricas do Faial, cuja fonte de rendimento era o vinho, viram-se obrigadas a vender as vinhas ao desbarato. Passou-se do pequeno latifúndio para o minifúndio. Os trabalhadores perderam os rendimentos ficando sem dinheiro para comprar os cereais do Faial, para a sua alimentação. Assim, se empreendeu nova proeza, a de desmanchar terras, partindo e separando a pedra, fazendo pequenas hortas e serrados, onde se cultivava milho, batata, inhame, etc. Amontoou-se a pedra de forma organizada em enormes “maroiços”, autênticos monumentos num rendilhado de paredes.

Diz Susana Goulart Costa da Universidade dos Açores

http://www.inventario.iacultura.pt/pico/s-roque/historia.html

Da década de 1480 até meados do século seguinte, o crescimento populacional terá decorrido num ritmo positivo. Nos finais do século XV, surge nas Lajes o primeiro município e em meados do século XVI, a norte da ilha, S. Roque. Em 1542, os habitantes pedem ao rei D. João III a criação da segunda vila, apresentando-lhe a “opressão que os moradores das freguezias de nossa Senhora d’Ajuda e de São Roque da ilha do Pico da banda do norte recebiam em ser mal providos de justiça por os ditos lugares serem longe da vila das Lages de cuja jurisdição eram e o caminho ser muito mau de montanha e serra aspera e se faziam muitos males e roubos em suas terra por a justiça da dita vila não poder a isso acudir a tempo…”

Nos finais do século XVI, a população era de 3432, no final da centúria seguinte eram 8720 com aumento relevante em São Roque. Do século XVI para o XVII, surgem cinco novas freguesias, quatro no novo município: Santa Luzia, Santo António, Santo Amaro e Bandeiras. Em 1871, São Roque possui 6674 pessoas, Lajes 9733 pessoas e a Madalena 9025. Importante foi o contributo de povoadores de origem portuguesa, que provavelmente já estiveram na Madeira ou na Terceira… A primeira zona habitada foi a das Lajes, a sul. A origem metropolitana dos primeiros povoadores foi determinante na organização da sociedade, transplantando-se a organização social reinol: uma pequena nobreza, que se distingue pela posse de terras; uma forte presença do clero secular e regular (franciscanos); e um terceiro grupo, de mercadores, artífices, trabalhadores rurais e artesãos.

Há presença de judeus, comprovada nas Lajes nos inícios do século XVI e na Madalena, no século XIX; e de escravos para o trabalho rural e doméstico. Ao longo do tempo foram-se misturando com a população, deixando de constituir um grupo identificável. Desta amálgama se formou o caráter picoense, descrito por António Lourenço da Silveira Macedo, na obra História das Quatro Ilhas que formam o Distrito da Horta, de 1871: “São os picoenses geralmente dotados d’uma indole pacifica, laboriosos, engenhosos e robustos, sobretudo as mulheres, que muito ajudam os homens nos trabalhos rurais”.

Na Regeneração, as reformas na contribuição predial geraram levantamentos populares protagonizados por mulheres. Perante estes “barulhos”, o poder central enviou uma esquadra do continente para acalmar os levantamentos femininos na Candelária e na Madalena. Na segunda metade do século XIX, o cultivo de laranjas, maçãs, pêssegos e figos (estes últimos na produção de aguardente) tornou-se uma importante alternativa. Tornou-se hábito diário a deslocação de picoenses para o Faial para venda da fruta. A criação de gado foi uma importante atividade, exercida desde a descoberta da ilha. Antes do povoamento, as pastagens foram utilizadas para a criação de gado, exploradas por habitantes do Faial e da Terceira. As caraterísticas da orla marítima explicam a reduzida faina piscatória, mera atividade de subsistência, mais representativa na Madalena e Santo Amaro. No séc. XIX há uma efetiva exploração marítima, com a caça à baleia e assim se formou a imagem do baleeiro, associada como caraterística tradicional da Ilha do Pico.

74.2. SOBRE O PICO…

A respeito desta recente paixão pelo Pico a Rosário Girão compilara os seguintes textos que enviara numa partilha literária incomum:

“Sopraram sobre a ilha os ventos da mudança, seguidos de pássaros metálicos que têm pousado para as bandas das Lajes; mas o iate arrimado ao Porto de Pipas prolonga o cirandar periclitante dos barcos do Pico através do Arquipélago. São ousados e de pouca segurança técnica, os iates, e mesmo assim raramente enjeitam carga. Têm mastros e motor, […]. Navegam num passado recente igual ao meu presente e resistem às leis ditadas por senhores engravatados em gabinetes sem horizontes.” (GARCIA, José Martins, O Medo, Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura, Coleção Gaivota 25, 1982, pp. 11-12).

“A montanha, pano de fundo de variado colorido, caprichava no moldar das nuvens. No inverno cobria-se de neve até aos baldios. E em raras tardes límpidas de verão, anilava-se de encontro à abobada. Muita gente jurava ter avistado em madrugadas serenas uma coluna de fumo a emergir da cratera, embora os mais sábios falassem dum vulcão extinto e remetessem para um passado efetivamente findo os grandes arrotos de lava.” (GARCIA, José Martins, A Fome. Lisboa, Edições Salamandra, col. “Garajau”, 2ª edição, 1978, p. 12).

“Pela primeira vez reparei na ameaça instalada no cimo do Pico. A montanha não era essencialmente a beleza, como certas fotografias nos davam a entender. Era, sim, um rosto autoritário, guardando o segredo da próxima erupção. Metia medo sob a luz leitosa das manhãs. Vivíamos, no Pico, de costas voltadas para a montanha. Vista do Faial, cara a cara, a montanha parecia uma permanente ameaça. Talvez por medo inconsciente se falasse tanto dos fins dos tempos. […] E contudo, na tarde límpida, o cume anilado do Pico parecia sorrir, bondoso. Deus e o Diabo podiam bem revezar-se no comando dos nossos destinos, consoante as flutuações do segredo da montanha.” (GARCIA, José Martins, Contrabando original. Lisboa, Edições Salamandra, col. “Garajau”, 1997, 2ª edição, pp. 85-86).

“Ao dobrarem, já com umas duas horas a navegar, o Castelete, do lado leste da vila, que domina, surge-lhes, para além do casario dos povoados, a majestade assombrosa da Montanha, toda branca de neve que a cobre, sempre a mudar de aspeto enquanto deixando para trás as Lajes com sua fidalguia de pataco, atravessam a longa Baía da Vila, passam, ao largo, pelo porto de S. João queijeiro, adiante pela Terra do Pão, depois pela afamada Baía da Prainha do Galeão, a seguir abicam à lendária Ponta de Santa Catarina, não sei se também chamada Ponta do Espartel, com isto entram em águas de S. Mateus, o grosso da freguesia um tanto arredada mais para o interior, aqui a Montanha, de que se não avista o cume, como que se torna uma inimaginável mole a querer sobre ela se abater e esmagá-la, e logo estão a entrar no porto.

O pequeno porto de S. Mateus. […]. Foram. No céu limpo de nuvens havia sol. Na terra calor. Viria só dele, do Sol, ou também refletido pelo colosso da Montanha com o Sol entretanto aquecida?” (MELO, José Dias de, A montanha cobria-se de negro. Ponta Delgada, Ver Açor, Lda, 2008, pp. 143-144-170).

“Era um lastro de mistério:

pedra ardida

preta e roxa.

Mas o homem, esse tal

Fernão Alvres Evangelho

e os que vieram após,

com seu saber de flamengos,

‘Vai ou racha’ – portugueses,

e hábeis mãos de italianos,

dos tufos fizeram terra

e, sem milagre nenhum,

semeando e aplantando

multiplicaram por mil

as sementes e as estacas

na casca daquele invento,

para as covas e os tonéis. […]

Antes, e continuando

sem mais nomes sobre os feitos,

direi que feito o milagre

(e cá me torna a palavra!)

de mudar em terra pedras,

o Picaroto (assim mesmo)

desceu às praias do mar,

que são negrume, calhau,

fez-se à água, navegou-a,

foi de ilha em ilha, passou

para lá dos pegos delas:

longes de longes nos olhos

e mais nos calos das mãos: […]

… E não acabo – não posso! –

a conta dos contos idos,

mais d’agora e que hão de vir,

desta gente picarota

feita de lava e salmouras,

mole na fala, de ferro

nos arriscos do trabalho.

Não posso, não há palavras! […]”

(Cf. SILVEIRA, Pedro da, fui ao mar buscar laranjas 1, “Diário de Bordo”, “Costeando o Pico”, pp. 167-168-169).

Esta era, aliás, a história que já aprendera em visitas anteriores. Levantei a viatura de aluguer no aeroporto do Pico, depois de ter tomado um café (a “italiana” habitual) de sabor indistinto num bar pachorrento como as vacas picoenses, enquanto me ajustava ao calor e humidade. Metemo-nos a caminho por essas boas estradas que a ilha do Pico tem. Fazem inveja às restantes ilhas, pois nenhuma foi bafejada com tanta reta asfaltada. A maior terá mais de nove quilómetros…Apesar de ter estado, apenas por duas vezes, na ilha senti que esta era uma velha conhecida e o mapa continuou guardado na pasta dos documentos.

Fomos almoçar ao Clube Naval de São Roque com um bom serviço de “buffet” ao preço de sete euros e café incluído. O Cristóvão de Aguiar proclamou-se guia e levou-nos às Lajes do Pico onde se celebrava mais uma “Semana dos Baleeiros” normalmente após a “Semana do Mar” na Horta. Tive de mudar a anterior opinião sobre as Lajes logo que visitamos o que resta das muralhas do forte (ora reconstruídas e aproveitadas como espaço turístico) e o Centro de Artes e Ciências do Mar (instalado na antiga fábrica da baleia SIBIL, equipamento industrial que se dedicou à transformação dos grandes cetáceos em óleos e farinhas). Havia lá uma moderna livraria, a única digna desse nome nas ilhas do triângulo. Nela encontramos inúmeros livros para acrescentar à coleção de autores açorianos. A surpresa foi ver o último livro deste autor “a CHRÓNICAÇORES”, incluído na “literatura açoriana”. Em amena cavaqueira dizia o Cristóvão que tinha conseguido algo que eu almejava, ver alguém a ler um livro seu. Foi então que a jovem funcionária, Cláudia de sua graça, declarou que tinha adquirido o livro “CHRÓNICAÇORES: uma circum-navegação” e estava a lê-lo em casa. Aproveitei para autografar outra cópia, com o ego exultante por estar ao lado dum célebre autor e ser eu a autografar o primeiro volume da pretensiosa trilogia. Claro está que após este incidente, as Lajes do Pico pareceram mais bonitas, mais soalheiras e convidativas do que nas visitas anteriores.

Vi ainda a expansão do Museu instalado nas três casas originais de botes do século XIX. Este Museu dos Baleeiros é o único na Europa. Além de expor uma interessante coleção de “scrimshaw” tem uma pequena biblioteca com documentos, mapas, cópias de livros de bordo e ainda uma “tenda de ferreiro” onde é possível aprender como eram fabricados diversos utensílios metálicos usados na caça da baleia. Sentamo-nos numa esplanada na marginal a dessedentarmo-nos enquanto se punha a conversa em dia, antes de subirmos ao Alto da Rocha do Canto da Baía para visitar a “Cabana do Pai Tomás”. Satisfiz assim a curiosidade de visitar a casa de Dias de Melo. Nas viagens anteriores ainda não conhecia o autor. Ali, espartanamente vivera, numa casa pequena e humilde, ora telhada de novo. O desconforto de uma minúscula casa de banho exterior no piso térreo. Em cima, o autor dormia, comia e escrevia. Do pátio exterior avistava-se a imensa mancha de Mar Oceano ponteada pelo pequeno farol da Calheta de Nesquim que serviria de inspiração a tantos dos seus livros.

Em linguagem cinematográfica chama-se a isto um “fast-forward” em que se rebobina a imagem e se passa adiante. Após 4 dias e cinco noites de convívio intenso e aprendizagem ilimitada na ilha do Pico, estava já em posição de aceitar que Cristóvão tinha razão ao afirmar o que afirmava sobre a literatura açoriana… Depois de ler quase todas as obras de Dias de Melo, salvavam-se as baleias, outro livro mais intimista como “À Boquinha da Noite (2001) e pouco mais. Li e detestei “O Menino deixou de ser menino” (1995) e “Pena dela, saudades de mim” (1994) dum neorrealismo primário e básico que nada tem a ver com os livros mais antigos sobre os baleeiros.

Onésimo como croniqueiro tinha as inúmeras piadas que sempre o caraterizaram, beneficiando da fama e do apoio das instâncias oficiais e da clique local. Nesta se incluem nomes menores da literatura local que se adoram e veneram mutuamente. Daniel de Sá tem talvez como uma das suas melhores obras, a novela “O Pastor das Casas Mortas” e obras mais antigas (sobretudo “Ilha grande fechada” (1992) embora os seus livros sejam curtos. Excluía a obra religiosa por razões óbvias, não a podia apreciar. Ressalvava bons textos que surgiram, nos últimos anos, em livros ou guias de turismo como “Santa Maria Ilha-Mãe”, “S. Miguel, a ilha esculpida” e outro sobre a Terceira. Entretanto, já lera outros poetas e escritores açorianos espantosos de quem poucos falavam. Martins Garcia era um deles…O problema é que sem querer metera-me (e aos Colóquios) numa toca de lobos de interesse esconsos e panelinhas em que pontificam menos valias. Ora bem, a minha autocrítica ao fim de 4 dias perante o Cristóvão, escritor maldito e malquisto nas hostes açorianas, era a seguinte: embandeirara eu em arco, louvando exageradamente, adjetivando em excesso e elevando aos píncaros Dias de Melo, João de Melo, Onésimo de Almeida, Daniel de Sá e Cristóvão de Aguiar, sem conhecer os restantes e sem separar o trigo do joio. Gostava do Cristóvão, do Daniel e do Onésimo. De todos era amigo, mas existiam outros autores para desvendar. De dezenas já lidas e folheadas a maioria não tinha a tal qualidade de que Cristóvão tanto falava. Sendo um forasteiro deixara-se iludir pela açorianidade, pela beleza narrativa das ilhas e de seus costumes ancestrais. Embalara-se no canto das suas sereias. “O Pastor das Casas Mortas” fora já traduzido por mim para inglês, a que, em breve, se seguirá a tradução para castelhano. Dias de Melo até para japonês já fora traduzido. Cristóvão ainda não. Nem outros escritores e poetas que o mereciam. Um crime de lesa literatura. Iria eu concentrar os esforços dos colóquios para os editar no Brasil e traduzi-los. Teria de ler os restantes para apreciar a sua universalidade, além da matriz açoriana que a todos permeia. Sabia agora que incorrera juntamente com Zélia Borges, Dina Ferreira e Rosário Girão, numa possível falácia de tomar a nuvem por Juno e louvaminhado em excesso os autores que os colóquios divulgaram. Teriam de ser mais parcos nos encómios sob pena de descredibilizar os colóquios que tão prontamente se ergueram como paladinos da literatura de matriz açoriana. Dias de Melo e Daniel de Sá já têm a editora VerAçor a traduzi-los e divulgá-los em vários quadrantes, falta agora fazer o mesmo para Cristóvão de Aguiar, um escritor universal com uma vastíssima obra.

Em Bragança no 8º Colóquio iria iniciar uma campanha para o traduzir (Bulgária, no futuro Roménia, Polónia, Eslovénia). No Brasil tentaria quem o quisesse editar. Iria tentar a editora Almedina, no Brasil, para apresentar no 5º Encontro da Lusofonia, edições de “Tabuada do Tempo” e de “Torga Lavrador das Letras” do Cristóvão de Aguiar. A Almedina deveria editar no Brasil estes e outros livros pois não há direitos de editora para a maior parte deles. Se pudesse concentrar esforços talvez conseguisse algo até março – abril 2010.

Regresso à narrativa, de novo, à ilha para contar que além de ter visto as lagoas todas com mais calma, ficara assustado com a eutrofização delas (exceção feita à do Capitão). Na Lagoa seguinte, a do Peixinho além de umas trinta vacas se dessedentarem havia um autotanque de agricultores a retirar a parca água que restava. Como havia seca os agricultores tinham de lá ir abastecer-se. Com umas boas chuvadas tudo voltava ao normal. Não acredito, pois, a eutrofização não se deve resolver com umas chuvadas. Fico triste. As autoridades deveriam preservar as lagoas para turista ver. Andam tão empenhados em aumentar o número de turistas e esquecem-se que nem todos vão escalar a mais alta montanha de Portugal. Infelizmente, dias depois, era anunciado que os lavradores poderiam retirar água da Lagoa do Capitão.

lagoa do paul Antes (2007) e depois (2009)

Foi lá que fotografei uma das minhas melhores imagens de 35 anos de fotografia.

Faltava apenas ver duas coisas, e uma delas não a consegui encontrar apesar de ter perguntado aos locais: a Furna de Frei Matias. Andei em círculos e em ziguezague por estradas de terra e de asfalto, segui as placas indicativas e as orientações, mas faltou encontrar uma placa azul que seria o “Abre-te Sésamo” para me levar ao local que todos garantem merecer visita obrigatória. Na última manhã abdiquei doutras atividades para fazer mais uma tentativa, mas apenas consumira gasolina e anidrido carbónico sem resultados. Mais aturdido fiquei ao ver totalmente seca a mais bela de todas: a do Paul, mirrada, sem as manifestações espontâneas de árvores endémicas como espigos-de-cedro (Arceuthobium Azorica) nas suas margens e onde dantes havia água pastavam agora uns três cavalos. Podem os leitores seguir viagem através de excertos da bíblia dos que mal sabem ler ou não têm tempo ou disposição para o fazer, a Reader’s Digest:

http://www.seleccoes.pt/Viver/Lazer/detalhe.asp?tipo=detalhe&ID=303

No Pico, entra-se por duas portas: o cais da Madalena e o aeroporto. A mais antiga e ainda a melhor entrada é a marítima, utilizando os novos barcos, as “lanchas” ou “cruzeiros” – o do Canal e o das Ilhas -, e fazendo a travessia do canal entre o Faial e o Pico. Desde os mais remotos tempos do povoamento, pelo lugar dos Ilhéus – o Ilhéu em Pé e o Ilhéu Deitado – se partia ou chegava. Hoje continua a navegar-se neste canal, por onde circulam 300 000 passageiros anualmente, quando as duas ilhas apenas somam pouco mais de 30 000 habitantes.

Antigamente, quando havia passageiros para atravessar o canal, faziam sinais na costa com um lençol branco e, do Faial, partia a lancha, pois no Pico não havia condições de manter a embarcação em segurança por falta de porto. Os portos do Pico são uma realidade construída no pós-25 de abril.

De carro, para norte, pode sair da Madalena por dois caminhos: o que passa pelo interior da vila e o outro, junto à costa, acompanhante de uma paisagem ao lado de salgueiros e araucárias (na Formosinha) enormes. Se for pelo caminho do mar, pare no Cachorro; se for pela estrada regional, desça o ramal do aeroporto. Uma autêntica “boca do inferno” onde a lava se precipitou no mar e fez uma obra de arte de arcos e buracos aterradores, sinais inequívocos da origem vulcânica das ilhas.

Junto à costa, com o aeroporto à direita, ao lado de pinheiros que recobriram extensas áreas de lava escorrida, “mistérios”, encontram-se duas pequenas povoações, o Lajido e os Arcos, totalmente recuperadas e reconstruídas, que trazem à memória antigos trabalhos nas vinhas e na apanha dos figos para a aguardente, e que, tal como outra vasta zona, estão incluídas na Paisagem Protegida da Vinha do Pico e em fase de classificação pela UNESCO como património cultural da Humanidade.

Afastando-se do mar em direção a Santa Luzia, visite um projeto de absoluta vida natural, recuperação de casas abandonadas, organização natural do ideal de vida. Leve umas imagens desta fantástica ilha, dos negros das casas de pedra, dos verdes de incensos e faias. Os caminhos do Pico são viagens, trajetórias de íntimo contacto com a Natureza, o verdadeiro monumento da ilha. Ao chegar ao cais do Pico, na vila de S. Roque, é absolutamente obrigatório embrenhar-se pela aventura gigantesca do homem do Pico – a gesta da baleação. A caça à baleia terminou, mas a recordação perdurará na memória destas gentes.

Visite o Museu Industrial da Baleia, no cais onde centenas e centenas de baleias foram transformadas, observe o Convento de S. Pedro de Alcântara, saia da estrada principal e percorra a costa de S. Roque, volte à estrada em S. Miguel Arcanjo, e por entre pinheiros, faias, incensos, acácias e criptomérias, desça pelo mistério da Prainha do Norte (parque florestal). Contemple a paisagem, o silêncio cortado pelo cantar dos garajaus e gaivotas, com S. Jorge ali em frente, merendar e descansar em tamanho conforto ambiental é privilégio possível. Santo Amaro espera mais à frente. Aqui se construíram os barcos, traineiras, as lanchas da travessia do canal e tantos outros barcos.

Hoje não existe a indústria de construção naval, mas desenvolve-se outra atividade de grande qualidade – a escola de artesanato. No percurso rumo à ponta da ilha, poder-se-á desfrutar no Miradouro da Terra Alta, de uma estonteante vertigem de altitude sobranceira ao mar, sempre com S. Jorge de sentinela esguia e amiga. É altura para demandar a Calheta de Nesquim e, no Alto da Rocha encontrar a “cabana” do grande escritor da aventura das baleias de outrora e da dimensão humana que a envolvia – Dias de Melo.

Em frente, por entre arvoredos e curvas, com o mar do lado esquerdo, encontra-se a mais asseada freguesia do Pico, as Ribeiras, das casas brancas, das traineiras do atum, mas vêm-nos à lembrança as Festas do Espírito Santo. Nas Ribeiras são especiais, mas estão a americanizar-se.

No fim da primavera, chegam as festas mais representativas da ilha. Apressemo-nos para as Lajes, a vila baleeira, e depois da panorâmica vista sobre a vila mais antiga e mais urbana do Pico, com a montanha ao fundo, e na expetativa de ver o famoso Museu dos Baleeiros, almoce e depois dê passeios a pé pelo interior das Lajes e entre no museu. O melhor será voltar noutro dia. As razões e as sugestões são ótimas: fazer mergulho, ir ao “whale watching”, pescar ou apenas nadar na Maré.

Talvez até possa jogar golfe. No Museu dos Baleeiros, encontra magníficas coleções de “scrimshaw”, trabalho artesanal sobre dente ou osso de baleia, e variados aspetos da vida do baleeiro, homem do mar e da terra, com destaque para a canoa baleeira, considerada como o “móvel” mais elegante e perfeito do Mundo. Quando chegar à Silveira, volte à direita pela estrada transversal e suba até ao Corre-Água, entre numa reta de 9 km e passe pela lagoa do Capitão. Aqui, suba a encosta e do seu lado direito, observe S. Jorge e algumas povoações da costa norte; do outro lado está a montanha, esperemos que se desnude para si e então faça uma fotografia daquela majestade de lava projetada nas águas da lagoa. Já em plena zona de pastagem do Pico, a uma altitude que em Invernos rigorosos fica coberta de neve, por pouco tempo, reveja a montanha, mas não se esqueça de que temos uma escalada para fazer.

E mal ultrapassado o desvio para o acesso à montanha, logo o Faial se descobre para além do canal. Lá em baixo está a Madalena, mas antes de lá chegar pare na Furna do Frei Matias.

O Pico deve ser a ilha das Furnas. São às centenas, identificadas, mas não exploradas turisticamente. Com companhia e equipamento adequados, quem for amante desta atividade tem na Criação Velha uma das maiores furnas dos Açores, a Gruta das Torres, com centenas de metros de comprimento e, em alguns sítios, cerca de 5 m de altura. Estamos em plena serra, onde se celebrava o Dia do Ajuntamento, num tempo em que a lã das ovelhas pesava na economia familiar. Madalena de novo, percorrida mais de uma centena de quilómetros. Não se está numa ilha…. Aqui é o meio do mar salpicado do verde de uma natureza pujante e mistério.”

No segundo dia da estadia, abusando da paciência do Cristóvão que as conhecia e não queria visitar de novo (ficou no ar condicionado na sala da receção das grutas, à espera), descemos às catacumbas do vulcão do Pico. Conhecida pela altura e beleza do Pico que lhe deu nome e das paisagens que se desfrutam do alto das suas vertentes, a Ilha tem na Gruta das Torres o verdadeiro contraponto das alturas e um atrativo não menos pitoresco. Durante a visita, reparem no projeto arquitetónico do Centro de Apoio aos Visitantes. Graças às suas caraterísticas inovadoras, foi selecionado para o prémio oficial da União Europeia em parceria com a Fundação Mies van der Rohe de Barcelona, “European Union Prize for Contemporary Architecture Mies van der Rohe Award 2007“. As Grutas da Torre estavam fechadas aquando da última estadia no natal de 2007. Ainda só 500 metros estão abertos ao público. Em boa hora as visitei. Não vi as trilobites ou descendentes de tamanhos não observáveis a olho nu. Todos os minutos foram de uma descomunal aprendizagem e de algum temor. Há rochas enormes prestes a descolarem do teto. Uma visita surreal que parecia retirada de uma cena do filme “À procura da arca perdida” sendo os visitantes os “salteadores”. O momento culminante foi quando se apagaram as lanternas de mão e as luzes do capacete de mineiro. Ficamos trinta segundos à luz natural daquele enorme tubo lávico. As cores, as formas e a explicação científica da jovem guia ajudaram a perceber a formação daquele e doutros vulcões. O interior é rico em formações e estalagmites lávicas, bancadas laterais, lava balls, paredes estriadas e lavas encordoadas. Estas visitas fazem sentir a pequena dimensão humana face à natureza mãe que tudo cria e destrói.

A Gruta localiza-se à saída da Criação Velha (Madalena) na encosta ocidental da Montanha. O sistema formou-se quando a lava pahoe-hoe desceu do cone parasítico do Cabeço Bravo entre 500 e 1500 anos. São um conjunto interligado de tubos lávicos que transportaram a lava pahoe-hoe e a lava a ā em épocas distintas. Trata-se da maior gruta açoriana (5 439 metros) com uma altura que chega a atingir 15 metros na entrada que se faz por um algar. O Governo declarou-as monumento regional em março de 2004, um ano antes de abrirem ao público. Ainda não se fizeram todos os reconhecimentos dos restantes quilómetros esperando-se que dentro de dois anos possam abrir mais um segmento.

Lava pahoe-hoe – é uma lava mais fluida, os seus gases estão menos dissolvidos e fluí mais rapidamente, esse tipo de lava formou os lajidos. Na gruta também verifica uma escoada lávica do tipo pahoe-hoe que tem 7 metros de dimensão bastante visível.

Lava AA (Biscoito) – este tipo de lava está associado ao final da erupção, é muito viscoso, tem muitos gases dissolvidos com uma temperatura não muito elevada e vem um pouco como cascalho.

Por instantes foi preciso rastejar tendo em atenção a cabeça e os membros inferiores desnudos para evitar o contacto com os dilacerantes “biscoitos”. O interior é rico em estalactites e estalagmites de lava. A estalactite tubular é um pingo de lava normal que sofre uma fusão de gases ou de vapor de água; depois começa a esticar, até ficar fina e oca por dentro, daí a sua fragilidade. As estalagmites lávicas formam-se a partir das tubulares. O solo natural da gruta é formado por blocos irregulares e soltos que caíram do teto sendo constituídos por lavas de vários tipos. A gruta encontra-se muito bem preservada. As paredes estão revestidas por óxidos de sílica nalgumas zonas. As estalactites vermelhas são uma bagacina vermelha formada por piroclásticos com erupções estrombolianas, onde são dissolvidos bastantes gases e muito ferro.

Na gruta, existem apenas dois tipos de espécies de animais:

Trecus Picoensis (espécie de escaravelho) – endémicos das grutas, mas é muito difícil vê-los porque vivem sob as pedras.

Cicus Azopicaias (espécie de cigarra) – vive nas raízes das plantas.

O restante tempo, dias, tardes e noites picoenses foram ocupados com leituras, discussões e uma enorme aprendizagem. Surgiam em catadupa nomes e obras dos últimos quarenta anos sobre os Açores. Os autores eram açorianos, descendentes, emigrados e outros. Admiti a “mea culpa”. Talvez não existisse “literatura açoriana” per se mas sim uma literatura de matriz açoriana. Muito descobrira naqueles dias com essa enciclopédia devoradora de conhecimentos e de livros que é o escritor Cristóvão de Aguiar, convidado especial do 8º Colóquio Anual da Lusofonia em Bragança. Espera-se que ele possa ajudar com tão vastos conhecimentos para que a cadeira de Estudos Açorianos criada pelos Colóquios e a UNISUL de Santa Catarina (Brasil) seja um sucesso. E que o Breve Curso de Estudos Açorianos da Rosário Girão na Universidade do Minho seja outro. Não ficaria bem numa Crónica deste género acrescentar algo mais que não fossem pequenas notas de viagem como a seguir se explicitam.

As gentes do Pico são afáveis e hospitaleiras como nas restantes ilhas que já visitaram. Um incidente ao almoço num restaurante da Prainha leva a algumas interrogações. Domingo. Salão com todas as mesas ocupadas, mais o andar de baixo. Restavam duas mesas ao ar livre. Uma funcionária veio servi-los. Pelo sotaque era descendente de africanos escravos no Brasil. Disse ser de Pernambuco, que se apaixonara por um Picaroto e em má hora para ali fora viver. Sem rodeios afirmou que os locais eram racistas tratando mal os de fora e desdenhando dos que aceitam empregos que os da terra recusam. A viagem desta jovem seria um tema interessante para desenvolver.

Podia-se fantasiar que em frente a um globo terrestre se interrogara para onde ir. Uma terra começada com a letra “P”. O dedo mindinho que tudo sabe caíra no meio do oceano. Sob a lupa via uns pequenos pontos de terra. Neles estava inscrito o nome Pico. E também Prainha. Ambos começados por “P”. Uma viagem de navegação curiosa entre Pernambuco – Pico – Prainha.

Já afirmei antes que os portugueses eram preconceituosos, racistas quanto à cor e origem dos que com eles se cruzam, olvidados que andam das suas origens e dos seus percursos pelo mundo. Mas são esses mesmos portugueses que sempre denotaram um invulgar caráter e inventividade. Atualmente, é proibido por força de lei, anunciar nas viaturas particulares que as mesmas estão à venda. Pois bem, na longínqua ilha, afastada dos centros de poder inventaram uma nova modalidade comercial “TROCO POR EUROS”. Não infringem a lei pois não vendem a viatura nem anunciam a venda. Apenas a trocam por euros. A troca não é proibida.

Saí do restaurante devastado pela mácula nas gentes da Prainha face à compatriota que ali arribara, mas simultaneamente enternecido pela invenção da “troca por euros”. Ao chegar a casa e parando no café Refúgio, em pleno centro de São Miguel Arcanjo, ofereceram-me graciosamente o café por ser o último que ali tomava.

Andados uns passos rumo à casa do escritor deparei com uma camioneta de passageiros estacionada aguardando o começo da semana para voltar a trabalhar. Acorreu-me a ideia peregrina de como seria uma aventura “pedir emprestada” a carripana, começar a percorrer as aldeias (ditas freguesias nas ilhas) e gravar as histórias que os passageiros fossem contando. A viagem não teria destino. Duraria tanto quanto as histórias dos seus passageiros. Não seriam cobrados bilhetes. Pararia em todos os locais, podendo deter-se para que fossem contadas as histórias e lendas do local onde paravam. Que livro maravilhoso não daria esse compêndio de histórias apanhadas ao acaso daqueles que tomassem o autocarro dos sonhos.

Assim me despeço da ilha prometendo voltar um dia, com mais tempo. Voltarei para alugar casa por um mês inteiro e visitar as ilhas ainda desconhecidas pelo navegador sem barco (Graciosa, Flores, Corvo). Há qualquer coisa de mágico, um íman secreto, que atrai e me faz querer viver naquele vulcão. Talvez seja a vontade de ouvir as histórias dos passageiros da camioneta sem rumo. Terei de consultar um especialista para me tratar desta eterna infidelidade, cada nova ilha se transforma em amor, paixão ardente, desejo irreprimido.

para uma história da ilha de S Jorge

retirado de ChrónicAçores uma circum-navegação vol 2 2011

 

 

São Jorge é assim chamada em honra do santo do mesmo nome. O descobrimento e povoamento da ilha estão envoltos em mistério. A primeira referência data de 1439. Sabe-se que, por volta de 1470, quando já existiam núcleos de colonos nas costas oeste e sul e a povoação de Velas fora fundada, veio para a ilha o nobre flamengo Wilhelm Van der Haegen, que, no Topo, criou uma povoação, onde veio a morrer com fama de grandes virtudes, já com o seu nome convertido para Guilherme da Silveira.

Rápido deve ter sido o povoamento da ilha, com gentes vindas do norte do continente, bem como a sua prosperidade, pois a sua capitania era doada, em 1483, a João Vaz Corte Real, donatário de Angra, na Terceira, e Velas recebia foral de vila antes do final do séc. XV.

Ora desde que temos aquellas cartas, que precisam tão claramente a data em que el-rei mandou povoar as ilhas dos Açores, e isentou os seus moradores que estão e vivem n’ellas da dizima, é evidente que a ilha de S. Jorge, no anno de 1439, estava descoberta e em 1443 havia n’ella habitantes.

Semelhantes factos destroem as differentes opiniões sobre a descoberta e povoação, depois de 1450, que o auctor sr. J. Duarte menciona nos seus apontamentos, referindo-se a outros escriptores.

Estas ilhas foram mencionadas na Livraria Laurentina, de Florença, em grupos distinctos, dando-se ahi ao grupo de S. Jorge, Pico e Fayal, a designação de Insule de Ventura Sive de Columbis (Diccionario de Geographia Universal, 1.0 vol. pag. 16, art.o Açores). E no mappa catalão de 1375 teve a ilha de S. Jorge a indicação de San Zorze, significativa do dia do seu descobrimento. (Archivo dos Açores, vol. X pag. 279).

Parece, pois, que os portuguezes do seculo XV não foram os que lhe deram o nome e que d’estas ilhas já tinham conhecimento pelo infante D. Henrique, que os mandou navegar para estas paragens.

É por tanto de presumir que o nome dado à ilha de S. Jorge, proveio do mappa catalão de 1375, onde foi designada por San Zorze, allusivo ao dia do seu descobrimento, ou então é uma coincidencia muito notavel a descoberta feita pelos portuguezes em egual dia, 23 d’abril.

O primeiro documento sobre o povoamento de São Jorge é do testamento do Infante Dom Henrique, falecido em 1460, que diz: “…ordenei e estabeleci a igreja de S. Jorge na ilha de S. Jorge“.

Os primeiros povoadores, provavelmente, entraram na ilha na década de 1460 a 1470. João Vaz da Costa Côrte-Real, seu donatário a partir de 1483, esforçou-se pela sua colonização. Era também donatário de Angra.

Oficialmente foram criadas três vilas em São Jorge: Velas (1500), Topo (1510) e Calheta (1534).

21.2. AS CALAMIDADES EM SÃO JORGE

Sempre assolado por inúmera atividade vulcânica, pirataria e maus anos agrícolas (a fome causou mais vítimas que os terramotos), a ilha de São Jorge sofreu as maiores crises:

1580 — Erupção do vulcão da Queimada. Na noite de 28 de abril a terra tremeu 30 vezes e 50 no dia seguinte. No dia 1 de maio os tremores recrudesceram e nesse mesmo dia ocorreu uma explosão vulcânica no cimo da encosta sobranceira à Queimada. Outra explosão ocorreu posteriormente no alto da Ribeira do Nabo, 2 km a leste da inicial. Outra emissão de lavas teve a sua origem junto à Ribeira do Almeida. A erupção durou 4 meses com emissão de grandes correntes de lava que atingiram o mar e de muitas cinzas que recobriram a ilha, atingindo mesmo a Terceira. Uma nuvem ardente matou pelo menos 10 pessoas. Mais de 4000 cabeças de gado pereceram de fome e devido aos gases e cinzas que destruíram as pastagens.

1593 — Mau ano agrícola – Provoca fome na Terceira e S. Jorge – 1593 foi um mau ano agrícola, o que associado às consequências da guerra de 1580-1583, do saque e dos pesados tributos para manutenção da força de ocupação castelhana, causou miséria e fome generalizada entre a população rural da ilha. Há notícia de terem morrido muitas pessoas de fome. Em São Jorge também se morreu de fome neste ano.

1606 — Inundações nas Velas. Em fevereiro grandes chuvadas provocaram grandes danos na vila. Muitas ruas ficaram “de modo que se não podia andar a pé”.

1641 — Grande enchente de mar (maremoto?) nas Velas. A 21 de dezembro “empolgou-se o mar de tal sorte que dominando o Monte dos Fachos, com três mares” provocou grande destruição na vila, ferindo 50 pessoas e arrastando ao mar muitos bens. Terá sido um maremoto?

1668 — Tempestade – Causa grandes prejuízos na Calheta. A 23 de novembro uma violenta tempestade provocou “tal alteração de mar que este entrou pela dita vila derrubando casas” e obstruindo o porto com penedia.

1678 — Falta de cereais – Causa desaguisado entre as Câmaras da ilha de São Jorge e da ilha do Pico – Mais uma vez um mau ano agrícola torna escassos os cereais pelo que as câmaras de São Jorge e Pico se vêm na necessidade de proibir a sua exportação.

1713 — Inundações na vila de Velas. A 10 de dezembro, chuvas muito intensas entre a Urzelina e os Rosais provocaram grandes inundações, destruindo 27 casas na vila de Velas. A Ribeira do Almeida veio tão carregada de caudal sólido que criou uma praia que permitia a passagem a pé entre a vila e a Queimada.

1713-1714 — Mau ano agrícola, fome e peste – Um mau ano agrícola, a que não foi alheio ciclone tropical de 25 de setembro de 1713, levou a que em São Jorge fosse tal “a falta de mantimentos que chegou a morrer muita gente de fome”.

1732 — Cheias provocam 5 mortos. A 6 de dezembro grandes cheias provocaram destruição matando 5 pessoas. Os lugares mais afetados foram Urzelina, Figueiras, Serroa e Velas.

1744-1746 — Mau ano agrícola – Provoca fome e emigração em massa – Em resultado das cheias de 1744 e do mau ano agrícola que se seguiu, em 1746 faltaram os cereais, havendo fome generalizada nos Açores… [No Pico] o povo “recorreu a socas e raízes para manter a vida e faltando-lhe mesmo esse mísero alimento emigrou para as mais ilhas”. Em resultado da desnutrição grassavam as doenças, fazendo grande mortandade. Face a esta situação, por alvará régio foi autorizada a emigração para o Brasil, tendo partido pelo menos 1600 pessoas.

1755 — Maremoto atinge os Açores – O Terramoto de Lisboa de 1 de novembro de 1755 provocou o grande maremoto de 1755 (um tsunami) que atravessou a área oceânica onde os Açores se situam, afetando essencialmente as costas viradas a sul e sueste, direção de onde as ondas se aproximaram das ilhas. O maremoto fez com que “estando o mar em ordinária tranquilidade, se elevou tanto em três contínuas marés ficando quase seca a sua profundidade por largo espaço”. Assim, em Angra o mar entrou até à Praça Velha, causando grande destruição; no Porto Judeu o mar subiu “10 palmos acima da rocha mais alta”; na Praia, inundou o Paul e derribou 15 casas na costa até à Ribeira Seca, incluindo a ermida do Porto Martins. Morreram várias pessoas arrastadas pelo mar. Quase todos os portos dos Açores sofreram graves danos, ficando destruídas muitas embarcações. Em Ponta Delgada o mar subiu pelas ruas estragando muitos edifícios. Na Horta, o mar entrou pela Ribeira da Conceição, chegando aos moinhos de água “na altura de 8 palmos”.

1757 — Grande terramoto de São Jorge: O Mandado de Deus. Em 9 de julho de 1757 um dos mais violentos, senão o mais violento, dos terramotos de que há memória nos Açores atingiu a ilha causando destruição generalizada e formando muitas das atuais fajãs, entre elas a da Caldeira de Santo Cristo. O terramoto ficou conhecido na tradição popular pelo Mandado de Deus. Dos grandes deslizamentos resultou um maremoto que atingiu todo o Grupo Central. Pelo menos 1053 pessoas morreram em São Jorge e 11 no Pico. O terramoto foi tal que a norte desta ilha, distância de 100 braças, pouco mais, se levantaram dezoito ilhotas, umas maiores que outras. Apareceram todas na manhã do dia 10 [de julho]. É navegável o mar entre as ditas, e a ilha. Nas Fajãs dos Vimes, São João e Cubres, se moveu a terra, voltando-se do centro para cima, de sorte que nelas não há sinal [de] onde houvesse edifício. No Faial o sismo foi sentido sem causar grandes danos.

1761 — Ciclone tropical atinge o Grupo Central – A 29 de setembro de 1761 foi a Terceira atingida por um temporal “por efeito do qual ficaram derribadas muitas casas e arrancada muita quantidade de árvores”. Copiosas chuvas fizeram transbordar as ribeiras.

1779 — Ciclone tropical atinge o Grupo Central – Na noite de 30 para 31 de outubro levantou-se um rijo temporal que trouxe à costa 7 navios e arruinou as muralhas da Horta.

1792 — Enchente de mar vila de Velas. A 23 de janeiro deste ano, foi “tão impetuosa a bravura do mar” que derrubou a muralha de proteção, destruiu uma casa e danificou outras, ameaçando atingir a praça defronte da Matriz de Velas.

1808 — Erupção do Vulcão da Urzelina. Depois de várias semanas em que ocorreram muitos sismos, no dia 1 de maio a terra tremeu tão frequentemente que se contavam oito tremores por hora, alguns tão fortes que espalharam o pânico entre a população. Por volta do meio-dia foi ouvido um grande estrondo acompanhado pelo aparecimento de uma grande nuvem de fumo por sobre os montes sobranceiros à Urzelina. A breve trecho, a nuvem engrossou e subindo ao mais alto ceo fez arco sobre parte da freguesia de Manadas e da Urzelina…já mostrando nas redobradas e negras nuvens uns incumbrados montes, umas medonhas furnas. A erupção destruiu muitas casas, vinhedos e campos cultivados. A 17 de maio, quando o vigário acompanhado por populares tentava salvar algumas coisas da igreja da Urzelina, uma nuvem ardente abateu-se sobre o local queimando mortalmente trinta e tantas pessoas: uns com os couros das mãos e pés pendurados, outros tão inchados e pretos que se não conheciam, outros com as pernas quebradas, e alguns expirando, todos pedindo Sacramentos, e apenas os receberam alguns logo expiraram. Existe no Arquivo Histórico Ultramarino uma aguarela mostrando a erupção vista do Faial. A erupção ficou conhecida na história dos Açores pelo Vulcão da Urzelina.

1812 — Mau ano agrícola – Provoca grave crise alimentar em São Jorge e Terceira. Um mau ano agrícola em 1811, agravado por uma forte tempestade em dezembro, levou a que no início de 1812 grassasse a fome em São Jorge. Em março na Câmara Municipal de Velas recebeu-se uma proposta de importação de milho para “sublevar a misérrima necessidade e falta de mantimentos que atualmente padece o povo”.

1842 — Cheia – Provoca grandes danos nas Velas. No domingo da Trindade grandes chuvadas provocaram inundação de parte da vila de Velas. Na praça junto à Câmara a enxurrada foi tal que em algumas casas saiu a “água pelas janelas de sacada”.

1846-1847 — Fome. Um mau ano agrícola, associado à grande densidade populacional de então, leva à “penúria de cereais e falta de batata” sendo necessário recorrer à “Comissão de Socorros de Boca” de São Miguel para evitar a catástrofe alimentar.

1856 — Mar invade a vila de Velas – Provoca naufrágio. A 6 de janeiro, Dia de Reis, “levantou-se o mar com tal fúria que produziu uma terrível enchente”. A escuna Leonor que estava surta no porto naufragou provocando a morte a todos os tripulantes que estavam a bordo. O mar levou casas e barcos e galgou a zona da Conceição, chegando às paredes da cerca do convento de São Francisco (hoje Centro de Saúde), que parcialmente derribou.

1857-1859 — Fome. Um ciclone tropical atingiu o Grupo Central no dia 24 de agosto de 1857 provocando a destruição total dos milharais, então a principal produção alimentar da ilha de São Jorge. Daí resultou penúria generalizada, pelo que no início de 1858 “estava no concelho de Velas, toda a ilha, e suas vizinhas, manifestada a fome com as suas negras cores”. Os anos seguintes foram também maus anos agrícolas pelo que a crise alimentar se manteve até 1859. Foi preciso recorrer a subscrições públicas, incluindo uma nos EUA, organizada pela família Dabney, para evitar que se morresse à fome.

1877 — Fome. Um mau ano agrícola em 1876, associado à grande densidade populacional de então, leva, mais uma vez, à “falta de cereais e fome” em São Jorge, sendo necessário recorrer à importação de milho e trigo para evitar a catástrofe alimentar.

1893 — Furacão – Provoca grande destruição no Grupo Central – A 28 de agosto a maior tempestade de que há memória nos Açores atingiu o Grupo Central, provocando grande enchente de mar e arruinando casas, igrejas e palheiros. Também os portos foram severamente atingidos com perda de muitas embarcações. A destruição dos milhos nos campos causou fome generalizada no ano seguinte. A ilha de São Jorge foi severamente atingida, particularmente o Topo. Os danos do Furacão de 1893 ainda são visíveis nalguns pontos da costa, nomeadamente na antiga, e hoje abandonada, Igreja Velha de São Mateus da Calheta, na Terceira, e nas ruínas da Baía do Refugo, no Porto Judeu.

1899 — Grande enchente de mar. Na madrugada de 3 de fevereiro, uma grande tempestade marítima atingiu as costas viradas a sul. Em São Jorge, o mar galgou a terra matando uma pessoa nas Velas e provocando enorme destruição na Conceição e zonas adjacentes.

1899 — Furacão atinge o Grupo Central – A 17 de outubro um furacão atravessou o Grupo Central provocando destruição generalizada das habitações e perda de colheitas e de gados. Em São Jorge verificaram-se os maiores danos.

1964 — Crise sísmica dos Rosais, em São Jorge – Uma crise sísmica abalou a parte oeste da ilha de São Jorge, provocando grande destruição nos Rosais e nas Velas. Ficaram danificadas mais de 900 casas e 400 destruídas. Espalhou-se o pânico na ilha, levando à evacuação de grande número de jorgenses para a Terceira e outras ilhas. Esta crise esteve associada a uma erupção submarina ao largo da Ponta dos Rosais.

1973 – Crise sísmica no Pico e Faial – A partir de 11 de outubro começaram a ser sentidos numerosos sismos nas ilhas do Pico, Faial e S. Jorge, com particular destaque para a freguesia de S. Mateus e o lugar da Terra do Pão, na ilha do Pico. A 23 de novembro, pelas 12 h 36 registou-se um violento sismo (grau 7/8 da escala Wood-Neumann) com epicentro próximo a Santo António, no Pico. O sismo provocou graves danos, com muitas casas parcialmente destruídas, muros caídos e estradas obstruídas, nas freguesias de Bandeiras, Santa Luzia, St.º António, e S. Roque, na costa norte do Pico, na freguesia de S. Mateus, na costa sul do Pico, e ainda nas freguesias de Conceição, Matriz e Flamengos, na ilha do Faial.

1980 — Terramoto de 1980 nas ilhas Terceira, São Jorge e Graciosa – Pelas 16h42 (hora local) do dia 1 de janeiro de 1980, ocorreu um sismo com intensidade 7.2 na escala de Richter, uma profundidade hipocentral de 10-15 km e com epicentro situado no mar cerca de 35 km a SSW de Angra do Heroísmo. Provocou destruição generalizada dos edifícios na cidade de Angra do Heroísmo, na vila de São Sebastião e nas freguesias do W e NW da Terceira, nas freguesias do Topo e Santo Antão, em São Jorge, e ainda no Carapacho e Luz, Graciosa. Morreram 71 pessoas (51 na Terceira e 20 em São Jorge) e ficaram mais de 400 com ferimentos. Ficaram danificadas mais de 15 500 casas, causando cerca de 15 000 desalojados.

1998 — Sismo de 9 de julho, Faial, Pico e São Jorge – Pelas 5:19 da madrugada um sismo de magnitude 5,6 na escala de Richter com epicentro a NNE da ilha do Faial provocou a destruição generalizada das freguesias de Ribeirinha, Pedro Miguel, Salão e Cedros na ilha do Faial e fortes danos em Castelo Branco (Lombega), Flamengos e Praia do Almoxarife, também do Faial. Também atingidas foram várias localidades da ilha do Pico. No extremo oeste da ilha de São Jorge (Rosais) o sismo provocou grandes desabamentos de falésias costeiras. Morreram 8 pessoas, todas no Faial. Ficaram desalojadas 1700 pessoas.

21..2. A CRISE DE 1808

Na obra “Ilha de S. Jorge (Açores): Apontamentos para a sua História, de José Cândido da Silveira Avelar[1] está compilado um conjunto de descrições da erupção e dos acontecimentos que a rodearam. A mais extensa e circunstanciada deve-se ao padre João Ignácio da Silveira (1767 – 1852), então cura de Santo Amaro, que escreveu uma relação que o Dr. João Teixeira Soares publicou com algumas notas no Jorgense, n.º 6, de 1 de maio de 1871, e foi transcrita no Archivo dos Açores, vol. V, páginas 437 a 441. Foi aquele escrito, com algumas variantes, que João Duarte de Sousa seguiu na narrativa do fenómeno, de página 188 a 193 dos seus Apontamentos. Eis o seu conteúdo:

Na noite amanhecendo para o domingo do Bom Pastor, primeiro dia do mez de maio do presente anno de 1808, tremeu a terra tão frequentemente que se contavam oito tremores por hora, e d’estes foi um sobre a madrugada tão grande, que fez levantar o povo das camas. No mesmo dia, estando já parte do povo na igreja deprecando a Deus nosso pai, houve outro abalo tão forte que fez fugir todo o povo da egreja, das 11 para as 12 do mesmo dia houve outro tremor, e juntamente um estrondo tão grande que a todos amortiso, e de repente se vio levantar uma grande nuvem de fumo sobre o mais alto monte da freguezia da Urzelina, no pico d’ António José de Sequeira, e bem defronte da egreja de S. Matheus cuja planta e centro da freguesia era o mais agradável da ilha, e por isso mesmo muito frequentado de muitos sujeitos bons e maus de todas as ilhas, e em breve tempo engrossou e subindo ao mais alto ceo fez arco sobre parte da freguezia das Manadas e da Urzelina, indicando um terrível castigo já mostrando nas redobradas e negras nuvens uns incumbrados montes, umas medonhas furnas.

Da bocca daquele vulcão saíam estrondos tão fortes e medonhos sem intervalo que convidavam aos habitantes d’esta ilha para Juízo. Correu todo o povo a deprecar a Deos, porém logo o povo da freguezia da Urzelina se assustou deixando o seu vigário o rev. José António de Barcellos só no adro da sua igreja, e logo no mesmo dia choveu tanta areia de tarde que ficaram as casas chamadas do mato cobertas de areia e os campos d’ahi para cima em parte ficaram com altura de 7 palmos, e as vinhas dos Castelletes até à ermida de Santa Rita, da freguezia das Manadas, ficaram cravadas e as casas quasi abatidas com o pezo, sahindo immediatamente línguas de fogo do centro que chegavam aos ceos, deitando pedras ignitas de 8 palmos, em distância dum quarto de legoa, outras de 16 palmos em quadro e outras menores, subindo à mesma altura cahiam como densos chuveiros.

Chegou a triste noite, então é que desfaleceram os habitantes desta ilha vendo todo o fogo e pedras ignitas, que sahiam como coriscos e quase que pareciam cair sobre os povos, e as vidraças das egrejas pareciam quebrarem-se aos eccos d’aquelle pregoeiro que nos ameaçava de morte.

Até à terça feira, 3 do mesmo mez, rebentou o fogo em 7 logares, ficando a bocca ou vulcão perto da Ribeira do Arieiro, em cuja tarde abrandou o fogo: e na madrugada da quarta-feira, 4 do mesmo mez, arrebentou o fogo entre as Ribeiras, acima da fonte da Fajã, e da mesma sorte fazendo nuvem de pó de enxofre e terra que parecia arder todo aquelle logar.

Logo fez procissão o vigario da Urzelina para a parte da Fajã com o Senhor Santo Christo e Senhora das Dôres e a poucos passos encontrou-se com o padre José de Sousa Machado, que trazia em procissão a Senhora da Encarnação acompanhado de varias pessoas, mas quasi suffocadas do muito pó enxofrado que estava cahindo. reunidos àquela procissão algum tanto animados, chegaram à ermida da Senhora do Desterro, ainda, que com muito trabalho porque do cruzeiro para cima cahia muita terra sulfúrea e tão pegajosa que muitas arvores cahiram com o peso d’ella e o fétido entontava aos viajantes.

Passados mais 7 dias rebentou o fogo nas areias da freguezia de Santo Amaro, onde abrindo duas bocas vomitava fogo à maneira de duas grandes ribeiras de matéria fluida, e com tanta força que no segundo dia se achava a mais de um moio de campo de mistério que encaminhando-se às casas fez pôr parte do povo em fugida, o vigário, o rev. Amaro Pereira de Lemos, esteve falto dos sentidos e a irmã, D. Anna Maria de Lemos, esteve douda.

O vigário das Velas e ouvidor, o rev. António Machado Teixeira, temendo fosse o fogo à villa mandou deitar pregão para que se retirassem, e que mandava o Sacramento para a Beira e d’aqui resultou um levante que se não pode explicar.

As freiras foram para a igreja de Rosais; o ouvidor e outros clérigos para o Faial, o doutor juiz de fóra e outros para o Pico e o mais povo de quasi toda a villa foi para a Beira e Rosaes. Este levante foi sem maior necessidade, por que no dia em que o fizeram foram ver o fogo que já pouco corria e só por dentro da ribeira.

O alto da serra por onde o dito fogo passou ficou abatido e em grotas formidáveis, os caminhos quebrados de forma que não passavam carros nem gente por parte, as fontes secas.

Poucos dias depois retrocedeu ao primeiro logar em que tinha rebentado, defronte da igreja da Urzelina, com a mesma força que dantes, e perseverou doze dias, em que foram continuas as súplicas a Deus e por não sermos ouvidos do Senhor, por serem as culpas em maior número que as suas misericórdias, continuou o mesmo flagello. sahindo do vulcão (que dizem ter bocca em circunferência de um moio de campo) muitas areias, que arruinavam parte dos campos da referida freguezia de São Matheus e das mais circunvizinhanças, e chegou a cahir na ponta do Pico, em Angra e São Miguel, e para a parte da villa não cahio porque os ventos sempre cursaram pelo nor-noroeste.

N’este tempo todo o povo da Urzelina se ausentou desamparando todos as suas moradas, uns para as Manadas, outros para a Calheta. outros para Rosais e uns para Angra, isto o povo da Urzelina, ficando só o reverendo vigário no adro.

Observou-se que em quanto a maré enchia aquelle vulcão embravecia mais e deitava com mais força pedras mármores grandes, umas das gerais eram muito pretas e pesadas e feriam lume, e outras à maneira de vergas, de lagens e outras redondas, umas muito brancas e partidas reluziam pelo muito salitre que tinham.

Em uma noite estando o vigário da Urzelina em guarda de sua igreja, sendo já 11 horas e meia, pegou a observar umas ribeiras de fogo, que vinham correndo pelo monte abaixo, e tocando a fogo apenas acudiram 6 ou 8 pessoas, que acompanharam o Santíssimo para a ermida do Senhor Jesus, para onde na mesma noite fez trasladar todas as imagens, vasos sagrados e vestes sacerdotais.

Entraram logo a observar que os campos circunvizinhos ao dito monte se iam incendiando e levantando-se pedras como montes, que corriam ardentes até à planície das vinhas que faziam pasmar a quem tal castigo via.

Em 17 do dito mez de maio, vendo o vigário das Manadas, o reverendo Jorge de Mattos Pereira, que o da Urzelina se achava estrompado e com a sua gente dispersa veio com parte dos seus fregueses à igreja da dita freguezia de S. Matheus para salvar o que podesse da dita egreja, o que assim fez, e estando trabalhando na mesma de repente se levantou um tufão de fogo ou vulcão e introduzindo-se nas terras lavradas levantou todos aquelles campos até abaixo ás vinhas com todas as árvores e bardos, fazendo-se uma medonha e ardente nuvem e correndo até abaixo da igreja queimou trinta e tantas pessoas na egreja e nos campos, e vindo para a parte da ermida do Senhor Santo Christo tomou a luz ao sol de sorte que parecia uma tremenda noite e pensando o dito vigário da Urzelina que era a última hora de vida já trémulo tratava de consumir o Sacramento, mas em quanto se aprontou entrou a divisar uma pequena luz e esperando um pouco, vendo que ia esclariando, não quiz consumir o Sacramento e saindo a ermida logo se encontrou com o vigário das Manadas e um clérigo queimados e todas as mais pessoas que com elles entraram, uns por menos molestos foram para a sua casa e outros ficaram na referida ermida e casas vizinhas, por não poderem ir para as suas, vindo uns com os couros das mãos e pés pendurados, outros tão inchados e pretos que se não conheciam, outros com as pernas quebradas, e alguns espirando, todos pedindo Sacramentos, e apenas os receberam alguns logo expiraram (4.).

E vendo o rev. vigário que o fogo era cada vez mais e que se ia aproximando à dita ermida levou o divino Sacramento para as Manadas para a ermida de Santa Rita, em cuja tarde administrou os sacramentos a alguns dos seus fregueses, que ali se achavam queimados e a outros d’aquella freguezia das Manadas com licença do rev. vigário.

No dia seguinte consumiu o Sacramento o rev. vigário da Urzelina e a toda a pressa passou à parte do Norte por onde veio para o logar da Ribeira do Nabo para accudir a alguns dos seus freguezes, que para o dito logar se tinham passado queimados, isto por já não poder passar pelo sul pelos tufões de fogo que saíam da bocca d’onde corriam caudalosas ribeiras de fogo em matérias fluidas, que já chegavam quasi ao mar.

Agora se acha o dito vigário com os sacramentos na ermida de Nossa Senhora da Encarnação para onde voltaram os que andavam dispersos.

Até ao dia 16 do dito mez eis aqui o que se observou, apparecendo na falda do monte que se formou de pedra e areia, o mais alto da ilha, uma abertura d’onde sahia uma caudalosa ribeira de fogo que chegou a dividir-se em cinco, e transbordando todas arrasaram os principaes campos e sessenta e sete casas de morada, toda a canada dos Abreus até à canada onde o padre Bartholomeu Luiz morava, com vinhas e terras, ficou em mysterio, e vindo estas ribeiras ao mar levaram a igreja de S. Matheus, que hoje se acha em mysterio tão alto que hombrea com a torre da dita egreja, menos a dita torre e frontispício com um bocado do adro.

Até 5 de junho do dito anno, domingo do Senhor Espírito Santo, sahiu d’aquelle vulcão umas vezes pedra outras areias, em cujo dia sahiu com tanta força que chegou à villa, (7.) e desde este dia até à sexta-feira seguinte deitou tantas cinzas, que abrasaram as cearas de muitas freguezias, e cobriram os pastos de forma que alguns sujeitos varreram os pastos para ver se os gados comiam, mas nem assim podiam pastar e por esta razão morreram muitos gados.

Todas as boccas por onde rebentou fogo fumam, mas sem prejuízo (8.), ainda que estamos esperando a cada instante renovação do fogo, porque nossos corações nenhum arde de amor Divino.

Em todo o espaço do mez de maio, em que correu o fogo, nunca anoiteceu n’esta ilha, porque faltando a luz do sol ficava a do fogo.

O Dr. João Teixeira Soares escreveu uma narrativa da mesma erupção, que publicou no jornal Jorgense, números 21 e 22 de 15 de agosto e 1 de setembro de 1872, que foi transcrita no Archivo dos Açores, vol. V, páginas 442 e 443, firma-se naquela outra do padre João Ignacio e nas notas que ele havia feito. Desta narrativa destacam-se as seguintes considerações:

Desde aquelle dia (5 de junho) até ao dia 10 do mesmo mez teve logar a emissão de cinzas, que cahiram sobre uma grande área da ilha, chegando mesmo a algumas vizinhas.

Então cessou a atividade vulcânica, mas gradualmente; as crateras fumaram ainda por muito tempo, e por muitos anos se percebeu próximo às fendas, que na direção do oriente ao ocidente se abriram, uma maior elevação de temperatura, assaz denunciada pela vegetação herbácea que cobria o solo. As lavas conservaram também por annos gazes sulfurosos.

Dos phenomenos que relatamos, aquelle que nos parece dever chamar mais a atenção do geólogo, é o das nuvens ardentes. Sahiam das crateras depois de uma como syncope da atividade d’estas. Eram carregadas d’uma poeira húmida ou polme, que fazendo-as pesadas as obrigava a correr por sobre a terra, vertente abaixo, para o mar. Traziam uma terrível força de translação.

A introdução da mais leve parte nos órgãos da respiração causava a morte. Idêntico phenomeno apareceu como vimos em 1580.

A lava de 1808 é a mais tratável que talvez se conheça na história geológica. Muitas partes d’ella estão já convertidas em frondosas matas. A representação gráfica das crateras e lavas dum e outro vulcão esclareceriam notavelmente a sua historia e relações.

Na Revue Scientifique de la France a de l’Etranger, 2.ª série, 2.º ano, n.º 51, 21 de junho de 1873, página 1200, com o título Saint George (Açores) et ses eruptions, Ferdinand André Fouqué escreveu o que a respeito das erupções de 1580 e 1808 verificou nas duas crateras que visitou, e que o volume V do Archivo dos Açores, páginas 444 e 445, transcreveu.

Aquele naturalista, desembarcando na vila da Calheta no dia 8 de julho de 1872, dirigiu-se no dia imediato, acompanhado do Dr. João Pereira da Cunha Pacheco, ao lugar das ditas crateras, resultando do seu estudo o seguinte:

Estas nuvens eram carregadas de uma poeira húmida, desciam ao longo da vertente, rojando-se pela superfície do terreno. A este contacto venenoso as plantas murcham e morrem imediatamente. …

O poder asphixiante d’estas nuvens, a sua progressão perto da superfície do solo e o seu constante movimento pelos declives do terreno indicam como elemento principal d’eIas a existência de um gaz deletério e denso que, muito provavelmente, não seria senão o ácido carbónico.

A sua opacidade deve atribuir-se ao vapor d’agoa, meio condensado e a sua cor avermelhada ao pó vulcânico muito subtil arrastado e em suspensão naquela mistura de gazes e vapores.

Enfim a ação deletéria exercida rapidamente sobre as plantas provém sem dúvida do acido clorídrico e do acido sulfuroso expelidos juntamente com os vapores aquosos e arrastados por elles. As testemunhas da erupção de 1808 não fazem menção de chamas; as descrições que deixaram levam a pensar que a temperatura das nuvens ardentes era pouco elevada. A sua atenção foi principalmente excitada pela ação venenosa d’estes agentes.

Segundo uma narrativa, provavelmente um pouco exagerada, os homens e os animais morriam mal respiravam aqueles vapores pestilenciais. É evidente, portanto que as nuvens ardentes de 1808 eram muito mais húmidas e com uma temperatura muito mais baixa que as de 1580.

Sem dar plena fé do que se conta das nuvens daquela primeira erupção conterem em si globos de chamas, pode-se pelo menos afirmar que elas transportavam ao longe matérias incandescentes e que os efeitos destruidores eram devidos tanto ao seu poder calorifico como à sua natureza química propriedades bem diferentes das nuvens de 1808.

Todavia a identidade dos nomes dados pelos habitantes, com dois séculos de intervalo, àquelas singulares manifestações é na realidade justificada por muitas considerações. Nos dois casos com effeito, trata-se de massas vaporosas, opalinas, carregadas de matérias pulverulentas, de contornos arredondados como os de uma nuvem, que descem pelas encostas das montanhas à superfície do solo, e que mataram as plantas e os animais.

A existência de globos de fogo nas nuvens ardentes de 1580 é mais duvidosa, porque com muita dificuldade se compreende como gazes, cuja combustão produz chamas, possam transportar-se ao longe, ao ar livre, sem que imediatamente sejam inflamados. Admitindo além d’isso, que houve uma differença considerável entre as temperaturas das nuvens ardentes das duas erupções, não se pode achar n’este único facto rasgo bastante para os qualificar como dois fenómenos absolutamente distintos. Os effeitos caloríficos descritos foram presenciados por observadores inexperientes: a situação dos logares em que se produziram, a distância mais ou menos afastada das boccas de emissão, a rapidez variável de translação da nuvem vulcânica, as condições climatéricas particulares da atmosfera no momento de cada uma das erupções, e muitas outras causas, podiam ainda modificar considerável e diversamente a intensidade das ações devidas à intervenção do calórico.

É, pois, com razão que as testemunhas da erupção de 1808 conservaram a denominação usada em 1580, posto que não tivesse todo o vigor e precisão desejáveis. Phenomenos semelhantes aparecem perto d’outros vulcões (9.) mas talvez em parte alguma as nuvens ardentes se viram melhor do que nas duas erupções de S. Jorge. Insisto tanto mais no seu exame, quanto ellas me parecem fornecer a chave de alguns problemas fornecidos pelas exumações de Pompeia.

A situação estranha dos esqueletos descobertos no meio das ruas da necrópole vulcânica romana é muito difícil de explicar, na maior parte dos casos, invocando somente a analogia com os phenomenos que se observam nas modernas erupções do Vesúvio. Uma chuva de cinzas por mais abundante e carregada de humidade que seja, não pode, por exemplo ter, lançado por terra e soffucado um homem robusto, que encontrou a morte fugindo por uma rua pública, em companhia de suas duas filhas. Foi necessária a intervenção de um gaz deletério para matar todos três com espantosas agonias. De todas as lavas que tem corrido nos Açores, depois que os portuguezes as abordaram, a de 1808 é de todas a mais alterável. Os musgos e os liquens invadiram-na primeiro, depois a vegetação herbácea implantou-se n’ella e por fim os arbustos e as árvores. Atualmente certas porções estão transformadas em espessas matas, enquanto ali próximo muitas camadas de lavas de 1580 apenas começam a desagregar-se.

Na Corographia Açorica, página 94, João Soares de Albergaria de Sousa, que foi testemunha ocular da erupção de 1808, diz:

O vulcão de 1808, que vimos rebentar nas Lagoinhas, sobre a serra que fica ao norte e iminente à aldeia da Urzelina, também respirou no lugar d’Entre Ribeiras, uma légua ao noroeste e depois no das Areias; a primeira boca expeliu por largos dias grande quantidade de materiais; 7 dias apareceu o sol obscuro pela densidade da atmosfera, impregnada dos vapores vulcânicos; choveram cinzas; a ilha sofreu muitas e violentas concussões; o solo na vizinhança do vulcão abriu fendas profundas; os lábios dos hiatos abateram em lugares de 4 a 6 palmos. Este vulcão correu ao mar sem interrupção, deixando o chão coberto de lava em altura de 30 pés, pouco mais ou menos.

Como se vê, nem o Padre João Ignacio da Silveira, nem João Soares de Albergaria de Sousa, testemunhas da erupção, aludem ao pedaço de terreno rodeado de lavas que ficou incólume e que a tradição do povo atribui ao facto de nele pastar uma rês destinada ao bodo do Espírito Santo.

Também Francisco Ferreira Drummond, nos Anais da Ilha Terceira, tom. III, pág. 184, referindo-se àquele fenómeno diz que foi visto e sentido na ilha Terceira, caindo até cinzas por muitos dias, que se achava a cada passo, empacada sobre as plantas dos jardins, das hortaliças e campos mais remotos.

Foram igualmente pressentidos os terremotos na ilha do Faial, de onde vendo-se rebentar o fogo na ilha de S. Jorge, mandou a Câmara Municipal da Horta uma lancha com algum socorro e uma carta à câmara das Velas, oferecendo hospitalidade às pessoas que se quisessem nela refugiar (António Lourenço da Silveira Macedo, História das Quatro Ilhas que Formam o Distrito da Horta, tomo 1, páginas 300 e 542).

21.3. A REAÇÃO DAS AUTORIDADES PERANTE A CATÁSTROFE

Abandonada a presidência da câmara das Velas pelo juiz de fora, Dr. António Augusto Pereira, que se retirou para a fronteira ilha do Pico apenas rebentou o fogo, os demais vereadores nomeados por carta régia de 9 de dezembro de 1806, capitão Amaro Teixeira de Sousa, sargento-mor José Soares de Sousa, capitão João Ignacio da Silveira, e procurador do concelho Jorge José Covilhão, encerraram-se na administração municipal, tomando providências cujos acórdãos relacionaram em um caderno, que o juiz de fora no seu regresso fez desaparecer para ofuscar os serviços daqueles patriotas.

Tendo o capitão-general D. Miguel António de Melo conhecimento do sucesso, mandou em carta de 18 de maio à câmara para distribuir gratuitamente pelos pobres 5 moios de milho: recomendou-lhe se implorasse a misericórdia divina, e que ela o avisasse da necessidade de maiores socorros, concluindo em prestar-se em ir à ilha se a sua presença fosse necessária. A câmara, por sua carta de 23 de julho agradeceu ao capitão-general a oferta do cereal e os bons desejos que nutria a favor do povo oprimido pelo fogo. E aproveitando os oferecimentos do capitão-general terminou pedindo que a maior esmola que v. ex. lhe fazia em atenção à suma pobreza em que ficava esta ilha, era representar a sua alteza real se dignasse abolir o regimento de milícias, cujo corpo é formado por uma grande parte dos empobrecidos com a queima: com os pobres que não vivem de outra cousa senão do seu jornal e outros muitos miseráveis que talvez apareçam com a farda para fazerem as guardas sem vestirem camisa pela não terem: a ocasião é oportuna, v. ex. está disposto a proteger esta ilha queira dignar-se fazer-lhe a maior de todas as esmolas.

O governador e capitão-general, como resposta, em sua carta de 21 de outubro ao juiz de fora, insultando a câmara, mandou que aquele magistrado em vereação severamente repreendesse os sujeitos que tal carta assignaram (!) que não tendo o escrivão da câmara registado aquela carta o suspendesse, como efetivamente foi suspenso o que o era, José Félix Rodrigues Mendes. E por desconfiar, ele capitão-general, tenha para tais absurdos concorrido com suas astúcias ordinárias António Sebastião Espínola, v. mercê o mandará prender à minha ordem pelo tempo que deixo ao seu arbítrio.!!!

Ao pároco da freguezia José António de Barcellos – diz em manuscrito o dr. João Teixeira Soares, publicado no jornal Velense, n.º 135, de 23 de julho de 1885 – verdadeiro pastor do seu rebanho, foram durante muitos anos pela junta da real fazenda dadas respostas de evasiva ás petições em que implorava o auxílio para a construção d’uma nova paróquia: e só no governo do capitão-general Francisco de Borja Garção Stockler pôde alcançar os auxílios que pediu, levantando à custa de fadigas e sacrifícios penosos a nova paróquia, sem outro galardão mais que o reconhecimento da posteridade.

Notas: Na semana antecedente a terra havia tremido por vários dias. Este fenómeno foi pressentido pelos irracionais que se achavam nas proximidades do logar em que ocorreu. Poucos minutos antes do acontecimento os gados que se achavam próximos, começaram a mostrar-se inquietos e aterrados correndo sem que houvesse tapumes que os pudesse aguentar para o lado norte da ilha. As pessoas que se achavam por aqueles sítios vendo a fuga dos gados, seguiram instintivamente o mesmo proceder, de uma delas houvemos esta informação. Foi este para os homens o mais terrível dos acontecimentos d’este vulcão. Manifestou-se pela primeira vez depois de começar o curso das lavas e foi então que produziu o maior estrago por ser ainda desconhecido. Por um pouco parecia que a atividade das crateras se suspendia. Seguiu-se a esta sincope a explosão d’uma nuvem escura que rojando-se pelo solo baixava pela vertente da ilha até ao mar com uma força prodigiosa arrasando e queimando quanto encontrava: o que d’ela respirava morria necessariamente. Os effeitos d’este fenómeno fazem lembrar os do simaun do deserto, assim não lhe ficaria mal o nome de simaun vulcânico. Segundo os assentos da paróquia foi n’este dia 17 levado ao mar pelos ares pelo referido tufão Francisco José de Sousa, casado, de 59 annos de idade e morador na freguezia. Morreram mais no mesmo dia queimados pelo mesmo tufão Anna da Gloria, solteira, de 49 annos de idade, Francisco Machado, casado, de 30 annos de idade, Luzia de Jesus, casada, Thereza lgnacia, viuva. de 30 annos de idade, João, solteiro, de 14 annos, José Silveira Borges, casado, de 42 annos, João Espinola, casado, de 55 annos. Os proprietários que mais perderam foram, acima do caminho, começando do poente, o convento das freiras desta villa, os filhos de José Monteiro de Castro, o capitão Joaquim José Pereira e seu irmão o capitão Manuel José da Silveira, abaixo do caminho o padre António Homem de Bettencourt. As lavas d’este vulcão, que apenas tem uma existência externa de 63 annos, são talvez as mais benignas que se encontram em toda a terra. Em logares, sobretudo nos declives, já se encontram frondosas matas. Se a incúria dos proprietários não fosse tão grande, já podia aquele solo estar na quasi totalidade arborizado. Esta igreja havia sido construída no primeiro quartel do século passado. Estava voltada ao oriente. A sua torre ainda hoje existe completa. A causa da chegada d’aquelles produtos vulcânicos a esta villa não foi devida tanto à força com que foram expellidos como a haver n’aquelle dia soprado o vento de leste o que até ali não sucedera. As emissões gasosas duraram ainda por muitos annos não só nas crateras e fendas do solo, mas nas próprias lavas. Ainda em 8 de julho de 1810, por occasião de se pretender limpar o poço de baixa-mar da freguesia, no qual haviam caído escorias da lava, morreram asfixiados dentro do mesmo por emanações sulfurosas: Manuel Ignacio Lopes, de 29 annos, casado: Manuel José de Sequeira, 23 annos, casado: António, filho de José António Fagundes, 15 annos, solteiro. Eram todos trez da freguesia de Santo Amaro e tinham ido àquela de faxina.

O vulcão de Santorini em 1866[2] produziu fumaradas ácidas com movimentos rotatórios singulares causando nas plantas efeitos devastadores análogos, aos das nuvens ardentes dos Açores.

21.4. DESASTRE DE 1964

15 de fevereiro de 1964 não foi apenas um dia em que a terra estremeceu com violência na Ilha de São Jorge. Abriu caminho para uma verdadeira revolução dos pacatos habitantes da ilha, dado que muitos acabaram por emigrar para as mais diversas partes do mundo, abrindo um caminho inesperado para África, em particular para Angola.

Como sempre, tudo muda quando a Natureza nos sacode, porém este foi um dos mais trágicos acontecimentos que resultaria num outro, não menos grave para esta gente, que foi a independência da ex-colónia portuguesa, que os fez regressar às suas terras na condição de quase apátridas, apelidados de “retornados” e sem meios para recomeçar o que haviam. O sofrimento ainda não terá acabado para muitos dos jorgenses que estremeceram por cá e, depois, a milhares de quilómetros da terra que os viu nascer. Muitos, não cumpridas as promessas, regressaram à terra dois anos depois e outros foram-se ficando ou seguiram para os EUA e Canadá. Todos sofreram pelo caminho.

A crise sísmica iniciou-se em agosto de 1962 com pequenos sismos, sendo alguns deles um bocadinho fortes, conta Victor Hugo Forjaz, que se encontrava a estudar no Continente.

Recorda que, a partir de dezembro desse ano, a crise pareceu decair, porém, no dia 15 de fevereiro de 1964, às sete horas da manhã, recomeçou a crise e, em 24 horas, registaram-se 179 abalos, alguns macrossismos, alguns deles de grau VI ou VII, com tudo a acontecer envolto no meio de uma violente tempestade ciclónica com chuva e vento, o que ainda acabou por agravar, em muito, sobretudo as operações de salvamento das pessoas e entre elas os medos foram ainda maiores, atingindo pontos de sofrimento só entendível para quem os viveu.

“Esta crise de São Jorge, ocorrida em 1964, ocorreu essencialmente ao longo do mês de fevereiro” recorda o geólogo Victor Hugo Forjaz, que tinha, na altura, 23 anos de idade, e que foi testemunha ocular dos acontecimentos que se seguiram ao terramoto que mudou por completo a vida a milhares de jorgenses.

Entre os primeiros técnicos a chegar a São Jorge, encontrava-se o tenente-coronel José Agostinho, já então, uma autoridade na matéria e o jovem estudante Victor Hugo Forjaz, mas isso aconteceu apenas três dias depois dos eventos, devido ao mau estado do tempo e à falta de um aeroporto na ilha. No entanto, já antes, o nosso interlocutor conta que haviam sobrevoado a ilha, numa altura em que a rede sísmica existia apenas nas ilhas do Faial (Horta), Terceira (Angra do Heroísmo), e São Miguel (Ponta Delgada).

Durante as primeiras duas semanas os habitantes da ilha de São Jorge viveram no meio da maior confusão, com cerca de 500 sismos sentidos e como consequências imediatas, ficaram destruídas 900 casas de habitação, para além de outras de arrumos. Das 900 casas destruídas, cerca de 400 ruíram desde os alicerces, não ficando pedra sobre pedra, tendo sido evacuadas para fora da ilha, cinco mil pessoas.

Victor Hugo Forjaz releva o facto desta crise sísmica ter começado, epicentralmente falando, pelas zonas da Urzelina, depois, Manadas e Pico da Esperança, tendo depois mudado para a zona da Vila das Velas e, nos dias 18, 19 e 20 de fevereiro de 1964, “eu já me encontrava em São Jorge, no meio de ventos fortes e do lacrimejar atmosférico, ocorreu uma erupção no mar, a cerca de milha e meia de terra, em frente aos Rosais” – conta à DI Revista, o vulcanólogo.

“Com a erupção para Sudoeste, para o lado do Faial, deram em aparecer milhares e milhares de peixes mortos que deram à costa e aquele cheiro persistente típico de uma erupção vulcânica. Já uns dias antes, no início do mês, havia surgido o alerta do corte de um dos cabos submarinos que ligavam as ilhas”.

Na primeira missão, a 16 de fevereiro, Frederico Machado (que chefiava a missão), José Agostinho e Victor Hugo Forjaz, já se encontravam na ilha, tendo-se reunido a Tomás Pacheco da Rosa, faroleiro dos Rosais, que fora observador vulcanológico nos Capelinhos, durante a crise ocorrida no Faial, na década de 1959. Victor Hugo Forjaz disse ao DI que uma das caraterísticas negativas do que aconteceu com o terramoto na ilha de São Jorge também se prendeu com o formato da ilha, estreita e muito escarpada, o que criava um sentimento de aflição, com muitas pessoas a lançar-se autenticamente para os navios.

A evacuação retirou da ilha cerca de cinco mil pessoas, das quais cerca de um milhar ficaram temporariamente na ilha Terceira, o que criou, ao tempo, uma enorme perturbação social gerada pela falta de meios para albergar, de repente, tanta gente, sendo que aqueles que tinham parentes na ilha de Jesus resolveram o seu problema, mas muitos ficaram albergados em casas de pessoas que nunca tinham visto antes, com todos os incómodos que isso traz. Entretanto, entraram em ação o então Governador Civil do ex-distrito de Angra do Heroísmo, Teotónio Machado Pires, e o presidente da Câmara Municipal das Velas, Duarte de Sá, que utilizaram as embarcações “Espírito Santo”, “Santo Amaro” e “Terra Alta”, dando início a uma verdadeira epopeia marítima, acartando víveres para a ilha onde a vida ficou praticamente parada.

“Nesse tempo, eram apenas pequenas mercearias, não havendo supermercados nem sequer stocks de bens alimentares ou meios para os confecionar, como a farinha, que teve que partir da ilha Terceira no meio de grande tempestade num dos mais famosos barcos de carga interilhas do Grupo Central, o “Girão”.

Após sobrevoarem a ilha de São Jorge num Dakota da SATA, a equipa de técnicos teve ainda que viajar numa fragata da Marinha Portuguesa “enfrentando ventos ciclónicos e após diversas tentativas não foi possível desembarcar nas Velas, o mesmo tendo acontecido no porto da Urzelina, acabando por continuar a navegar até um cantinho da Vila da Calheta, e foi ali que ficou instalado uma espécie de quartel-general.

A entrada na Vila das Velas foi “chocante”, conta Victor Hugo Forjaz.

“Parecia que estávamos a entrar numa daquelas pequenas cidades fantasma do faroeste. Não se vislumbrava vivalma. Apenas casas abatidas e janelas partidas e escancaradas; gatos, cães, vacas e outros animais domésticos por todos os cantos da Vila, presumivelmente assustados e em busca de comida. Enfim, uma verdadeira tragédia”.

Quando a crise acalmou, vieram as tendas da tropa, mas eram precisas muitas para recolher tantas famílias, o que levou a que fosse disponibilizado o navio “Niassa” para se deslocar às Velas transportando os equipamentos necessários para resolver os problemas mais imediatos que eram os de alojamento. Foi precisamente nesse navio, o “Niassa”, que as pessoas que desejaram abandonar a ilha foram levadas até Angola, com a promessa de receberem terras e gado, mas isso nunca foi cumprido, afirma Victor Hugo Forjaz.

Por isso, dois anos após a crise sísmica, muitas dessas famílias estavam de volta à ilha de São Jorge, e apenas as que emigraram para os Estados Unidos da América do Norte e Canadá, acabaram por assentar na diáspora, se bem que alguns, poucos, saíram com destino ao Brasil.

Para o geólogo, hoje não teria sido tão complicado como aconteceu em 1964 porque “há maiores cuidados na construção das habitações”, mas adianta que “ainda existem pessoas que estão a construir com pouca qualidade e, sobretudo, escolhendo localizações em zonas de elevado risco, perto do mar, em encostas que em caso de um sinistro com estas proporções poderão estar condenadas a ficarem destruídas constituindo grande perigo para os seus moradores, porque os terramotos nunca acabarão nas ilhas dos Açores, sendo sempre uma questão de tempo e muitas vezes sem aviso prévio”, pelo que todos os cuidados serão sempre poucos.

21.5. VELAS, 17 de fevereiro

Sob a presidência de Duarte Sá, foi possível efetuar a 17 de fevereiro uma reunião extraordinária da Câmara Municipal das Velas, tendo sido decidida a constituição de diversas comissões. A primeira, denominada “Comissão Central”, era constituída pelo presidente e vice-presidente da edilidade, aos quais se juntaram os vereadores António Cristiano da Silveira e Manuel da Silva Bettencourt; “Comissão de Transportes”, constituída pelos comandantes da Polícia e da Guarda Fiscal, e que tinha como função obter e colocar em funcionamento todos os meios de transporte necessários para organizar as mais diversas tarefas; “Comissão de Instalação, constituída pelo chefe de equipa da Junta Autónoma dos Portos e presidente da Junta de Freguesia das Velas, “destinada ao estabelecimento de sítios de recolha das populações”, “Comissão de Assistência Médico-Social”, de que faziam parte o delegado de Saúde, Provedor da Santa Casa da Misericórdia, que ficaram responsáveis por todo o serviço de assistência às pessoas que necessitassem de apoio médico e social; a “Comissão de Assistência” era dirigida pelo presidente da Comissão Concelhia da União Nacional e Assistente Social, com o fim de proceder à “recolha, preparação e distribuição de géneros alimentícios às populações; a “Comissão de Comunicações” era formada pelo Delegado Marítimo e chefe da Estação Telégrafo Postal, mantendo os serviços de comunicações e de escuta permanente; as “Comissões de Freguesia” foram lideradas pelos párocos com o fim de atenderem diretamente às populações e estabelecerem contacto com a Comissão Central para o envio de assistência e, se necessário, de observadores.

Com Fernando Silveira, em São Jorge 01/03/2004 – 09:29

21.6.1. REGRESSANDO AO TURISMO NO CHARUTO-ILHA

Quanto ao Povoamento das ilhas sabia já que o Faial e Pico tinham sido doados, antes de 1466, ao flamengo Josse Van Huertere (Joz de Utra, nome posteriormente transformado em Dutra), casado com Beatriz de Macedo e sogro do famoso Martinho da Boémia. Na sua companhia teriam vindo muitos flamengos, dentre os quais se destacou Wilheim Van der Haagen (Guilherme da Silveira), que, passou às Flores e desta para a Terceira e S. Jorge, promovendo, desse modo, o povoamento. A rua dedicada a este homem carece de importância e está na vila das Velas a demonstrar que a História continua a merecer lugar secundário nas mentes dos homens.

Pois bem, a ilha de 246 km² com 65 km de comprido e 8 de largura máxima sempre lhe parecera um enorme charuto abandonado no oceano, ao lado da perna de galinha (Pico) e já longe do cachalote (S. Miguel). Distando 21 milhas da Terceira, 19 da Graciosa e 10 do Pico, dispunha apenas de dois concelhos: Velas e Calheta. Nas Velas ainda se podem observar várias casas solarengas de rica traça que atestam a sua riqueza patrimonial apesar dos muitos sismos que ficaram na história. As Igrejas da Matriz e N. Sr.ª da Conceição nada têm de extraordinário, o mesmo se podendo dizer da Igreja de Santa Catarina na Calheta, mais interessante é a de Santa Bárbara nas Manadas, a da Queimada sendo também digna de visita a Torre Sineira na Urzelina, ou o que resta da igreja derrocada pelo violento sismo de 1 de maio de 1808.

A cordilheira central atravessa a ilha a todo o comprimento e deixa apenas nas suas franjas as interessantes fajãs, exercício de vontade dum povo que lutava pela sua independência económica arrebanhando a terra que a natureza criava. Beleza agressiva e de acesso capaz de cortar a respiração a qualquer um, a ida às Fajãs que dispõem de estrada alcatroada é em si mesma um exercício de desafio das leis da natureza e não aconselhável a quem tenha vertigens ou seja impressionável. Conhecida pelas suas fajãs (terras baixas, à beira-mar, resultantes de materiais desprendidos por quebradas ou acumulados na foz de uma ribeira e assentes quase sempre num banco de lava muito resistente, são extremamente férteis e habitadas e cultivadas com fantásticas piscinas naturais que são autênticos aquários, onde se nada rodeado de peixes que não se incomodam minimamente com a presença humana) a ilha tem uma grande variedade de circuitos pedestres. A que mais impressionou pela positiva e sua beleza foi a do Ouvidor, mas pela perigosidade da estrada a de São João ganhava a todas mesmo à dos Cubres (e daqui era ainda necessário ir a pé uma hora para a maravilha da ilha, a do Santo Cristo).

O ilhéu do Topo é único e impressiona pela beleza que a natureza proporciona sem estar conspurcado pelo Homem. No outro extremo da ilha há uma maravilha paradisíaca: a reserva ou parque natural das Sete Fontes em Rosais, cujo farol abandonado deveria ser recuperado pois tem uma localização inigualável e umas vistas excelentes. Ali se faria uma excelente pousada com vista para um pôr-do-sol inolvidável. As formações geológicas em volta do farol são espantosas pelos caprichos da mãe natureza. O mais estranho no Parque Natural das Sete Fontes, foi encontrar os tão diferentes e originais porcos do Vietname e os omnipresentes e engraçados gamos.

A ida ao Pico da Esperança foi coartada pelas nuvens pois nunca passara do seu sopé intermédio e não pudera ir aos 1053 metros onde há oito anos se despenhou, sem sobreviventes, um avião da SATA onde ia um primo seu. A ilha tem inúmeros miradouros estrategicamente colocados e mais úteis quanto a paisagens deslumbrantes do que muitos dos miradouros que existem em São Miguel, por exemplo. A reserva da Silveira só permitia o acesso a pé e como a estadia era de cinco dias ficou adiada a sua exploração.

É nas Velas, de frente para o imponente Pico, que a ilha se centra, mas os seus segredos e encantos estão por todo o lado. S. Jorge é um exemplo de que o Homem pode viver em conformidade com a Natureza, se cada um souber ocupar o espaço que lhe é designado. O verde e o azul predominam, as estradas estão orladas por hortênsias. Lá em cima, à noite, os cagarros mantêm animadas conversas e alguns parecem crianças a chorar. Demorara duas noites a descobrir o que era aquele som original. É indescritível, mas ao mesmo tempo belo e melancólico. Durante a noite apenas se viam as suas sombras acompanhadas daquele lânguido som, a pairar por sobre a piscina do hotel, contigua às arribas e ao mar. A nota mais forte das primeiras impressões era o calor abrasador, o calor maior já sentido em mais de três anos no arquipélago, mas os termómetros não aparentavam mais do que os valores normais entre os 20 e os 27 °C. Essa sensação iria permanecer mesmo durante a noite em que o ar condicionado ficava ligado e durou todos os dias da estadia. Interrogado um local no Topo este disse que de facto a ilha era mais quente que as outras, mas no inverno também era bem mais fria.

Uma ilha sofrida, mas bela, agreste, mas acolhedora pelas suas gentes simpáticas e despretensiosas. ….

[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Vulc%C3%A3o_da_Urzelina#cite_note-0

[2] Veja-se a nota de M. de Corona inserta nas Comptes Rendues de l’Academie des Sciences, Tomo LXIV, 1867.

sobre a história da ilha de Santa Maria

in chrónicaçores uma circum-navegação vol 2 2011

 

A mais antiga referência às ilhas é feita no Portulano Laurenziano-Gaddiano ou Atlas de Médici, de 1351. Admite-se que a descoberta tenha sido feita por uma expedição luso genovesa numa viagem de retorno às Canárias. As ilhas foram designadas: “Insule de Lobo” [Ilha dos Lobos Marinhos], “Insule de Caprera” [das Cabras], “Insule de Brazi” do Brasil], “Insule de Ventura sive Li Columbis” [da Ventura e dos Pombos], “Li Conigi” dos Coelhos?] e “Insule de Corvi marini” [dos Corvos Marinhos]. Estas informações foram repetidas nas cartas posteriores, como no Mapa de Pizzigani de 1367. No Atlas Catalão de 1375, de Abraão Cresques, aparecem pela primeira vez individualizadas a Ilha de “San Zorzo” [São Jorge], a Ilha do Faial chamada de “Insula de la Ventura” e a do Pico chamada de “Li Columbi” [dos Pombos].

Foi a primeira ilha dos Açores a ser povoada, vê desembarcar das caravelas em 1439, o punhado de pioneiros que se fixaram na Praia dos Lobos, ao longo da ribeira do Capitão. João Soares de Albergaria, sobrinho do primeiro Capitão Donatário e seu herdeiro, deu um novo impulso ao povoamento de Santa Maria trazendo famílias do Continente, sobretudo algarvias.

Diogo Silves terá aportado no regresso da Madeira, em 1427. Hoje tem 6 500 habitantes. As terras são muito férteis nesta ilha de 97,42 km² (17 km comprido e 9,5 largura), pouco menor que o Ataúro em Timor (105 km2). É a ilha mais a sul e a leste e a única com terra de origem sedimentar e fósseis marinhos.

Até finais do séc. XV, a ilha registou grande desenvolvimento. O primeiro foral de vila nos Açores foi concedido à localidade do Porto, desde então denominada Vila do Porto. A prosperidade assentou, até final do séc. XVIII, no pastel, o melhor e mais abundante, e na urzela, exportados para as tinturarias da Flandres. Havia também o trigo, muito procurado para abastecer as praças-fortes portuguesas do norte de África.

Em 1493, recebeu Cristóvão Colombo, no regresso da sua primeira viagem à América. Foi considerado um vulgar pirata. Preso se quedou às ordens do governador, até esclarecimento da sua vinda. A internet da época não permitia a informação na hora sobre quem era e qual a missão ao lado outro do Atlântico. A sua estadia está narrada em livros recentes sobre a identidade de Colombo, aliás Cristóvam Cólon. Os verdadeiros piratas vieram, nos sécs. XVI e XVII, com corsários ingleses, franceses, turcos e argelinos. Efetuavam razias, incendiavam, violavam, pilhavam, levando mulheres e homens como escravos e reféns. Moedas de troca vulgares nesses dias.

A agricultura (vinhedos, trigo, milho, batata, inhame, pomares), a pecuária e os laticínios, permitiram a Santa Maria atravessar, sem sobressaltos, os sécs. XVIII e XIX. A capital é a mais antiga vila açoriana e ainda existem vestígios de velhas casas, como a do Capitão Donatário com janelas do século XV. A construção pode evocar as congéneres alentejanas ou algarvias, com grandes chaminés, mas ao contrário do que erroneamente se lê em panfletos a sua origem não tem a ver com Portugal.

As casas estão espalhadas por toda a ilha fazendo as suas chaminés lembrar o Algarve, com as suas chaminés. As terras são muito férteis e a paisagem rural é de grande beleza.

Ilha de formas irregulares, com uma área de 97,42 km², tendo o comprimento de 17 km e de largura 9,5 km, é a ilha que se encontra mais a sul e a oriente do Arquipélago, com uma população de 6 500 habitantes.

As singulares e elegantes chaminés brancas distinguem-se por entre jardins e flores, que substituem as hortas tradicionais de S. Miguel. Não são chaminés algarvias como exprime Daniel de Sá no livro “Santa Maria Ilha-Mãe”

“Até as chaminés mais antigas não se erguem muito acima dos telhados. As redondas vão um pouco mais alto, na sua elegância de navio a vapor. Pensa-se que foram brasileiros de torna-viagem que se inspiraram nas chaminés dos transatlânticos que os traziam à ilha. Por isso lhes chamam chaminés de vapor. Em Santana, no meu tempo, haveria apenas três ou quatro. O que quer dizer que todas as outras casas seriam provavelmente do século XIX ou princípios do XX, mantendo as chaminés de mãos-postas, como que pedindo aos Céus a bênção para o lar, o forno e o fumeiro. Essas chaminés “de vapor” provocaram uma interpretação errada que persiste, mesmo entre pessoas cultas. Bastaria saber a época a que pertencem para se pôr de parte a apressada tese. Por causa da sua parecença com as do Algarve e Alentejo, houve quem as visse como herança das gentes do sul do Reino. Coincidência somente.”

Digna de menção foi a presença na ilha de um contingente de tropas, após o desembarque na Achadinha e a batalha da Ladeira da Velha (em São Miguel). Preparavam-se para o desembarque do Mindelo, que ocorreu na praia da Arnosa de Pampelido, atual Praia da Memória, freguesia da Lavra, concelho de Matosinhos. O desembarque das tropas liberais, a norte do Porto, ocorreu a 8 de julho de 1832, durante as Guerras Liberais, ou Guerra Civil Portuguesa (1828-1834). Desembarcaram 7.500 homens, entre os quais Almeida Garrett, Alexandre Herculano e Joaquim António Aguiar, transportados por 60 navios. Permitiu aos liberais tomar de surpresa ao exército miguelista, a cidade do Porto dia 9 de julho, e suportar depois prolongado Cerco. D. Miguel, capitularia em Evoramonte (1834) para a implantação do Liberalismo em Portugal.

O séc. XX trouxe a Santa Maria o progresso com a construção do aeroporto por tropas norte-americanas, em 1944 e inaugurado em julho de 1945. Teve grande valor estratégico durante a Guerra. Foi ponto de escala obrigatório nas travessias atlânticas, até finais de 1960. Tem três pistas, uma delas a mais extensa do arquipélago, com 3.048 metros. Finda a guerra foi entregue ao Estado Português (junho 1946). Era o destino do voo inaugural da Sociedade Açoriana de Transportes Aéreos (SATA) e da aeronave “Açor” que cairia ao mar a 5 de agosto 1947, após descolar de S. Miguel, matando dois tripulantes e quatro passageiros. A TAP (Transportes Aéreos Portugueses) passou a escalar em 1962, iniciando voos para Nova Iorque (1969) e Montreal (1971), bem como o supersónico Concorde, entre a Europa e a América.

premonições de 2007 para o futuro dos Açores

pode ler-se em ChrónicAçores uma circum-navegação vol. 1 (2007)

 

(obra disponível aqui https://blog.lusofonias.net/chronicacores-uma-circum-navegacao-vol-1/)

 

8.5. O FUTURO DOS AÇORES E UMA MÃO CHEIA DE IDEIAS A DESENVOLVER

Chega de discutir o mundo, vamos transformá-lo.

Karl Marx (filósofo alemão 1818 -1883)

Muito a dizer sobre esta temática, agora que S. Miguel cada vez mais se parece com o continente e as restantes ilhas parecem os Açores. Aliás, muitos micaelenses já assim tratam os restantes habitantes do arquipélago como sendo os “Açores”. Trata-se duma transferência psicológica do complexo de superioridade da metrópole portuguesa para a ilha de S. Miguel e desta para as restantes ilhas. Quando, em 2008, Ponta Delgada entra na sua fase de “funchalização” e tenta atrair os grandes navios de cruzeiro pode – se for bem-sucedida, – estar a resolver o problema dos “vaqueiros”. Com efeito, daqui a seis anos ou menos deixará de haver fundos europeus para a excessiva produção de leite que se regista na maior parte das ilhas. Depois do fim da gesta heroica e brutal dos baleeiros, que Dias de Melo tão bem retratou, aproxima-se o fim da era do leite. Virão dias de fome e de aflição. No entanto, nada ou muito pouco foi feito para a reconversão dessas centenas largas de famílias que vivem do “leite” num ciclo vicioso de maiores produções para “sacar” maiores fundos europeus.

É preciso haver visão como quando o chá sucedeu às laranjas. Os políticos insulares, como os seus congéneres continentais vivem nas suas torres de marfim condicionados ao ritmo da reeleição e não deverão ter visão para “imaginar” os Açores daqui a 20 ou 30 anos. Talvez a sociedade civil (se existir, pois passa despercebida a maior parte do tempo) pudesse contribuir com uma série de iniciativas pensantes sobre que futuro quer para estas nove ilhas. Sempre era melhor do que navegar à vista, sujeitos aos ventos de bolina que nos podem arremessar para mares desconhecidos cheios de personagens lendárias como Adamastor ou de meros eventos naturais como furacões a juntar ao nosso habitual ciclo do fogo vulcânico e da terra a tremer. Quem sabe se não poderiam converter as vacas leiteiras em produtoras de carne da melhor qualidade para exportação, usando a tecnologia existente e a mão de obra local atual sujeita a uma apropriada componente de atualização de formação e desenvolvimento pessoal? Nos EUA já há quem aproveite o estrume do gado bovino para produzir energia ecológica…será que estes campos podem produzir biodiesel?

Na data em que escrevia, as manchetes dos jornais falavam da crise institucional criada pelo novo estatuto autonómico, oportunidade gloriosa para se pensar não apenas na autonomia política mas na verdadeira autonomia que pode projetar para voos mais altos: a autonomia financeira, capaz de suportar os custos normais da insularidade que torna proibitivas as viagens entre ilhas, que coloca preços exorbitantes em estabelecimentos hoteleiros só para ricos ou estrangeiros oferecendo em troca serviço de qualidade muito inferior ao que seria de esperar para os preços praticados. Como a maior parte da população já vive nos Estados Unidos da América e do Canadá por que não pensar numa associação a esses países, que talvez fosse mais proveitosa do que a pseudoautonomia de Portugal? Poder-se-ia criar uma união como a de Porto Rico já que passar a Estado depois do Havai parece ser difícil. Podia-se manter a língua e cultura portuguesas e beneficiar de “greencards” para toda a população que iria decerto emigrar, tornando mais rentável a manutenção das ilhas como destino turístico e de férias dos saudosistas. São ideias arrojadas como estas que podem propulsionar para o futuro em vez de se ficar dependente da autonomia portuguesa, ou de sonhar dissimuladamente com uma independência que nunca virá.

Por outro lado, e falando mais seriamente, como a terra é fértil quando se acabarem as vacas gordas leiteiras poderiam diversificar e produzir queijos, ou carne de vaca de qualidade. Poderiam aproveitar os solos úberes para produzir produtos agrícolas para mercados de nicho e exportar para o mundo. Infelizmente ainda não vira nem ouvir nenhum dos técnicos agrários, vulgo engenheiros, propor ou estudar quais os mercados de nicho que estas férteis terras poderiam fornecer. Crê-se que o turismo de iates e de cruzeiros para um escalão alto (e por isso se vai duplicar o número de camas existentes nos próximos cinco anos) irá trazer alguns benefícios e mais prejuízos com um agravamento automático do custo de vida, da inflação. Preços inflacionados para turista rico é já hoje a norma… Trata-se de um segmento altamente difícil de prever, pois funciona com ondas e picos de moda e por isso, mesmo que a ideia “Açores” pegue, nada garante que se vá manter a menos que se consiga conservar e inovar a oferta de serviços distintos e diversificados dos restantes mercados. A aposta em si é tão ambiciosa como as “Portas do Mar” a que atrás se referiu e cujos resultados só serão visíveis dentro duns cinco anos ou mais. Parece limitada pois ao colocar os ovos todos numa mesma cesta não se salvaguarda o que pode acontecer com uma crise continuada dos combustíveis a preços exorbitantes.

Ainda neste campo continua a falar-se em criar mais campos de golfe, já Portugal começa a parecer um enorme campo de golfe (desconhece-se onde se irão buscar tantos golfistas como os necessários para os manter abertos…). Em sua modesta opinião poderia aproveitar-se a criação do chamado turismo marítimos subaquático aliando este à exploração científica dos mares dos Açores. É ecológico, existe uma componente “verde” importante, o mercado está em crescimento e a oferta a nível mundial ainda é escassa. No turismo tipo aventura poderiam aproveitar-se melhor as potencialidades do perigo do mau tempo no canal, atraindo um enorme potencial de aventureiros para sentirem o que em tempos idos os baleeiros sentiam nas suas “cascas de noz,” nesses botes onde a audácia e a coragem se sobrepunham por vezes à fúria assassina dos elementos.

Outra atividade que poderia ser melhor aproveitada como subproduto turístico era a das caminhadas e montanhismo vulcânico, que poderia criar vagas para alguns dos licenciados em vulcanologia pela Universidade dos Açores servirem de guia na exploração dos milhentos vulcões terrestres guiando as pessoas pelas grotas acessíveis, explorando as caldeiras, explicando as colossais forças da natureza que construíram estas ilhas. Notara JC a falta desta atividade recentemente ao visitar S. Jorge, Pico e Faial. Nestas caminhadas poderiam usar-se biólogos para explicar a flora endémica e a fauna das ilhas (como por exemplo se está a começar a fazer para o priolo) incluindo garajaus, cagarros, etc., criando-se centros de interpretação em cada ilha como já existe no Faial com o Centro do Mar na antiga Fábrica da Baleia, no Pico com o Museu da Indústria Baleeira em S. Roque e Museu dos Baleeiros nas Lajes do Pico.

Podiam aproveitar-se os cortejos etnográficos, dar-lhes uma componente mais turística e mais cientificamente histórica como forma de atrair emigrantes e turistas, para festas que são tão diferentes das restantes. Assim como na Lomba da Maia se criou o Museu do Linho, na Lombinha da Maia (ambas em S. Miguel) se ensinam homens a trabalhar na tecelagem tradicional, como na Maia (S. Miguel) se prepara um Museu do Tabaco, falta unir as duas restantes fábricas de chá para criarem um único e condigno Museu do Chá, tarefa que a Confraria do Chá de Porto Formoso, deveria ter como prioridade…Podiam e deviam manter-se abertos [para lá do horário normal do funcionamento das repartições públicas], os Museus, que tão do agrado são dos turistas que nos visitam (como forma de garantir a vinda de outros interessados).

Podia dar-se emprego a tanto pescador desempregado (e a receber o Rendimento Mínimo ou de Reinserção Social sem nada dar de volta à sociedade) criando pequenas firmas para passeios de barco na costa das ilhas, nos meses turísticos (junho a setembro) e em que o mar permite a saída dos pequenos barcos de pesca. Assim, mantinha-se a indústria de construção desses botes e pequenos barcos pesqueiros e usava-se a sabedoria desses homens do mar para levarem turistas a tantos pontos da costa sem acesso por terra (isto é particularmente importante em ilhas como a de S. Jorge ou a costa norte da ilha de S. Miguel. Sabe-se que para tal seria necessário agilizar a burocracia (criando um verdadeiro “Simplex”) e as obrigatoriedades legais, mas num país em que as Reservas Naturais podem ser vandalizadas por um qualquer “PIN” (projeto de interesse nacional) de exceção, também essas exceções se podiam aplicar.

Claro que para tudo isto seria preciso qualificar uma mão de obra patentemente subqualificada ou inqualificada e para isso seriam precisos os tais líderes, a tal sociedade civil com visão de futuro, cuja inexistência parece ser a norma nas nove ilhas do meu descontentamento futuro. Em plena campanha eleitoral não se ouviu uma só ideia original que visasse o futuro, mas apenas metas a muito curto prazo para garantir os ciclos eleitorais e as reeleições. O governo foi reeleito ainda com uma maioria absoluta e mais quatro anos do mesmo ciclo se seguem. Que sejam profícuos. INOVADORES, OUSADOS E COM VISÃO DE FUTURO. Só assim se cumprem as autonomias. Assim se completa esta primeira circum-navegação do mundo com regresso à ilha de S. Miguel nos Açores, centro da Atlântida e do mundo. A ilha imaginária (a tal a que chamara Autonomia) lá está no horizonte a acenar. Vamos para lá.

As nossas dúvidas são traidoras, fazem-nos perder o bem que poderíamos conquistar se não fosse o medo de errar.

William Shakespeare

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