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  • OS VELHOS, PAULA SOUSA LIMA

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    OS VELHOS
    “Ir morrendo é pior do que morrer”
    Paula de Sousa Lima, «Os Velhos»
    É incontestável a animação literária e cultural vivenciada no arquipélago e em São Miguel, em particular. Tem sido uma temporada incomum, com fulgor extraordinário e com uma qualidade que muito nos deve orgulhar.
    Um dos livros lançados e, seguramente, um dos mais esperados foi «Os Velhos», o mais recente romance de Paula de Sousa Lima, autora, entre outros de «O Outro Lado do Mundo» (Prémio de Humanidades Daniel de Sá), «Pretérito Quase Perfeito e Outros Contos», «Variações em Dor Maior», «Os Últimos Dias de Pôncio Pilatos» ou «O Paraíso» (Finalista do Prémio Leya). O seu lançamento ocorreu na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada, tendo sido responsável pela apresentação pública, o professor e crítico literário Vamberto Freitas, que a todos presenteou com uma intervenção de excelência.
    A escolha de «Os Velhos» para título desta obra é perfeita, sendo por aí mesmo que se inicia o forte abalo nas convicções do leitor. Ainda antes de abrirmos o livro e de o folhearmos é, de imediato, evocado um mundo para o qual olhamos muitas vezes com desconforto, ou, pelo menos, relanceamos com um espírito longínquo e reticente: a velhice. Não me custa crer que haja quem o vá preterir nos escaparates, pela conveniência de não se confrontar com o assunto que ali vem explanado. Estudado antropologicamente, não é incomum furtarmo-nos ao tema, talvez por a velhice representar a condição final do Ser Humano, por não gostarmos de enfrentar o limiar da passagem para a dimensão seguinte, ou, talvez ainda, por ser nessa fase que teremos de abandonar, em definitivo, aquela ideia tonta que nos alimenta a mocidade e idade adulta e que se relaciona com a imortalidade. Só aí, quando já ecoarem os passos de um caminho inevitável e sem retorno, é que nos daremos conta da nossa própria finitude. Paula de Sousa Lima lança já um alerta para aqueles mais incautos. Por outro lado, mesmo não assumindo ainda essa condição etária, a velhice de outrem, de um familiar próximo, por exemplo, é encarada, demasiadas vezes, como um verdadeiro empecilho na engrenagem do dia-a-dia: todos temos as nossas obrigações e contas para pagar, e, por isso, precisamos de tempo e disponibilidade física e mental para desenvolvermos a nossa atividade profissional. Há também o imperativo dos ginásios ou das corridas ao fim do dia, aqueles encontros das quintas-feiras com os amigos de sempre, as mil e uma atividades extracurriculares dos filhos e, claro, restando algum tempo, pois que se empregue no restabelecimento de energias numa qualquer socialização que se agende. Ficam os velhos para trás.
    Em «Os Velhos» é intensa a crítica social, sobretudo à forma como, tantas vezes, são tratados os nossos idosos, como são preteridos e/ou ludibriados em troca das trivialidades que nos vão alimentando o ego e, sobretudo, a carteira. Colocam-se a nu as fragilidades de um sistema de apoios sociais que, quando funciona, fá-lo muito deficitariamente. Mostra-se, sem pudor, como se maltratam aqueles que mais mimados e protegidos deviam ser. Se quiséssemos assumir uma postura simplista neste comentário, poderíamos apenas escrever que Paula de Sousa Lima redigiu um belo livro sobre pessoas velhas e as suas circunstâncias pessoais e familiares. Mas, pelo contrário, se optarmos por dar conta de uma leitura mais séria e aprofundada do volume em apreço, então teremos de enunciar que foi escrito um livro extraordinário sobre a sociedade atual e sobre a hierarquização dos valores que a regem, especificamente, sobre a forma como lidamos com as pessoas integradas nos escalões etários mais altos. «(…) são estes os dias modernos, implacáveis, que não deixam lugar aos velhos, que determinam esconder os velhos, apartá-los da vida (…)»
    Valendo-se das vivências de três personagens principais, da história do nosso próprio país, assim como de uma estrutura assente em duas sequências divididas em vários andamentos, onde se entremeiam analepses com o tempo da narração, Paula de Sousa Lima retrata e censura toda uma sociedade patriarcal, com especial enfoque naquela da segunda metade do século XX, onde, acoberto dos imperativos de uma Ditadura velhaca, o poder do homem sobre a mulher era tido como normal, e, por isso, o espancamento e violação, o agrilhoar da mulher numa pocilga ou expulsá-la de casa, o adultério ou a censura eram atos desculpáveis e causados exclusivamente pelo comportamento feminino.
    Embora expectável considerando as obras já publicadas e pelo que vai escrevendo regularmente na imprensa regional, não podemos deixar de sublinhar o meticuloso cuidado empregue no discurso, na sintaxe, na semântica e na morfologia, pelo que, como sempre, ler Paula de Sousa Lima é também expandir o conhecimento da Língua: «(…) diz-se aborreceu, mas a palavra é fracota, melhor seria exasperou, desesperou, enfureceu, agastou, assanhou, enraiveceu, encolerizou, embraveceu, irou, danou (…)»
    Dir-se-ia que foi um verdadeiro ato de coragem escrever desta forma sobre esta temática. Para além de se assumir como um texto profundamente inovador, vem, ao mesmo tempo, contribuir para a discussão que, por estes dias, volta à montra da nossa sociedade, e que se relaciona com a despenalização da morte medicamente assistida. Sendo certo que não é questão exclusiva dos mais velhos, não deixa de ser verdade que são eles quem mais a procura e deseja, pelo que também aqui se poderão colher argumentos para consolidar opiniões.
    Como tão bem enunciou Vamberto Freitas na apresentação desta obra, Paula de Sousa Lima demonstrou a “original capacidade de fazer arte com um tema proibitivo”. Embora seja triste e angustiante; conquanto seja errado e condenável colocarmos os nossos velhos nesse patamar tão rebaixado é esta a verdade crua em que vivemos. Nesse sentido, tenhamos também a capacidade de fazer arte com quem nos precedeu e assegurou que hoje pudéssemos deter uma existência integrados numa sociedade moderna, mas que se quer um pouco mais justa e aperfeiçoada.
    Que este «Os Velhos» nos inculque as perguntas certas e nos guie até às respostas que realmente fazem a diferença.
    Paula de Sousa Lima, «Os Velhos», Letras Lavadas edições, 2022
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      Paula De Sousa Lima

      Muito agradecida, Telmo, por esta excelente leitura. Abraço grande.
  • MANUEL E OS OCEANOS

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    Na preguiça matinal do café local os habituais frequentadores desabafam sobre o verão que não parece verão, a primavera que mais pareceu outono; do outro lado da ilha, à saída do minimercado duas comadres cumprimentam-se e conversam sobre a carestia de vida, perguntam pela famílias e terminam com o estado do tempo que já ninguém entende. À noite, antes das notícias na televisão, a senhora da meteorologia anuncia, sem entusiasmo, as temperaturas máximas e mínimas, o estado do mar, o vento que soprará fresco de um quadrante qualquer e a água do mar que estará fria.
    Alheio a tudo isto, o senhor Manuel vai trabalhando, com o seu canivete, um pedaço de madeira que no final se transformará num barquito de boca aberta para alegria do seu neto. Manuel olha o mar, sente a aragem no rosto marcado por rugas de uma vida que já viu verões quentes, invernos duros, e que agora percebe que já nada era como antes. O clima está a mudar. O senhor Manuel desconhece a razão, tal como desconhece os modelos teóricos que os cientistas desenham para tentar compreender os comportamentos e evoluções climáticas do planeta Terra; isso nada diz ao senhor Manuel que não precisa de modelos para confirmar o que os seus já quase 90 anos lhe dizem: isto já não é como antigamente. O neto do senhor Manuel irá herdar um planeta muito diferente do que o seu avô herdou. Um planeta tecnológico, um mundo global, uma população mais consumista, mais poluidora, mas também mais informada, sabedora do impacto que as suas ações têm sobre o ambiente, sobre o clima, sobre o mar. Resta saber se a geração do neto do senhor Manuel será mais responsável, consciente e ativa na defesa do único planeta que temos, por muito que o homem da Tesla nos queira levar para Marte.
    Esta semana, Portugal recebe a Conferência dos Oceanos, um encontro internacional sob o lema “Salvar os oceanos, preservar o Futuro”. Deste encontro, promovido pelas Nações Unidas, sairá a “Declaração de Lisboa” que deverá definir os princípios basilares para a preservação dos oceanos.
    Uma Conferência onde vão estar representantes ao mais alto nível dos 193 estados-membros da ONU e que se deseja invadida pelo bom senso e não pela gula económica de quem já tendo delapidado os recursos terrestres se vire agora para os fundos marinhos com tentáculos de aço. A linha vital do planeta está cada vez mais ténue e vai caber à geração do neto do senhor Manuel decidir se salvamos a Terra ou a condenamos a entrar num caminho de destruição sem retorno.
    (Paulo Simões – Açoriano Oriental de 26.06.2022)
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  • Voo da TAP para o Brasil obrigado a regressar por morte a bordo

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    Aparelho esteve cerca de hora e meia no ar.

    Source: Voo da TAP para o Brasil obrigado a regressar por morte a bordo

  • NOVA ANTOLOGIA COM Luís Filipe Borges

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    A Editora Letras Lavadas lançou o convite a 17 escritores das ilhas para participar nesta nova antologia de autores açorianos. O resultado?
    Uma bela obra, cortesia da Helena Chrystello, que tenho o privilégio e a honra de integrar. Para lhe tentar fazer (minimamente) jus tirei esta fotografia com o background de um artista açoriano que muito admiro.

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    A Editora Letras Lavadas lançou o convite a 17 escritores das ilhas para participar nesta nova antologia de autores açorianos. O resultado?
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  • a escrava açoriana DE ALMEIDA MAIA

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    crónica 463 a escrava açoriana DE ALMEIDA MAIA

    crónica 463 a escrava açoriana de ALMEIDA MAIA 25.6.2022

    A escrava açoriana de ALMEIDA Maia lê-se em dois fôlegos, dos grandes, umas primeiras 80 páginas ou tal, que se estranham pelo estilo diverso de livros anteriores, mas com a mesma eficiente recriação histórica ao detalhe.

    Até um determinado ponto o enredo parece previsível de tão plausível que é, numa viagem pela saga heroica dos homens e mulheres que fizeram parte do Brasil e o construíram à força de trabalho, imigração ilegal, vontade de alforria como se a própria escravatura fosse melhor que a vida no arquipélago.

    Depois, o enredo complica-se e entra numa montanha russa de mais uma centena de páginas até final com mais reviravoltas que um “roller-coaster” gigantesco de emoções, acontecimentos reais visitados e ficcionalizados, numa teia intrincada de emoções e sensações, independentismo, emancipalismo, femininismo, republicanismo sempre com volte-face de emoções e situações inesperadas e imprevisíveis, prendendo o leitor na espera de um desenlace que nunca surge como se antecipa, numa total antítese do que se esperava nas primeiras oitenta páginas.

    Uma vez mais aqui e ali os mil e um detalhes da época, de cada época específica em que a ação decorre.

    A magistral entrada em cena do quadro “Os emigrantes” de Domingos Rebello é de uma maestria soberba de imaginação.

    Nada é forçado, nada é desfocado, nada é despropositado nesta narrativa empolgante, como já nos habituou o autor, que ara as palavras como quem cuida de colher filigranas. um livro a não perder de um autor que tem de – forçosamente – almejar a lugar cimeiro da escrita contemporânea em língua portuguesa, eivada da riqueza única da açorianidade literária, de uma universalidade sem fronteiras.

    chrys chrystello

     

  • dois epitáfios precoces

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    739 outro epitáfio 25.6.2022

     

    ser velho é isto

    olhar para a parede que já foi branca

    contar os traços quase a atingir 26645

    já pouco espaço resta para mais traços

    cada um deles um dia

    uma alegria mil tristezas

    sonhos que se esfumaram

    sonhos nunca sonhados

    que se concretizaram

    sonhos recorrentes

    nunca atingidos

    subidas aos sete céus

    descidas a mil infernos

    a certeza inabalável

    de ter feito a diferença

    no carneirismo cinzento

    a ovelha negra

    no meio do rebanho

    sem medo

    dos cães pastores

    de seus dentes ameaçadores

    sem temor da chibata do pastor

    e para epitáfio

    um “smile” gigantesco

    de desdém, de zombaria

     


    738 imarcescível 22.5.2022

     

    imarcescível quis ser

    escrevi livros, plantei árvores e tive filhos

    lavrei no granito natal

    os meus petróglifos de nazca

    em timor dissipei-me na areia branca

    em bali fui hippie em kuta beach

    em macau fiz tai chi no lou lim iok

    na austrália nadei em rottnest island

    em bragança renasci transmontano

    e no basalto açoriano gravei

    imperecíveis poemas

    este o improvável epitáfio

     

     

    chrys chrystello inédito

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