Chrónicaçores vol. 5 LIAMES E EPIFANIAS

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À VENDA EM LETRAS LAVADAS, wook, fnac, etc

VASCO PEREIRA DA COSTA – ChrónicAçores: Circum-Navegação (vol. 2 abril 2011)

 

Almeida Garrett, num arremedo de Proposição às Viagens na Minha Terra, protesta que de quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se há de fazer crónica. Ora, Chrys Chrystello assume, neste livro, o papel do cronista que vai relatar observações e relatos, divagações e sentimentos sobre uma relação de proximidade com as ilhas (o tópos) que escolheu para viver.

Digamos que se trata de uma vontade de conhecer para amar – e só se pode amar o que se conhece. As ilhas atlânticas – a Macaronésia, assim designada – surgem, deste modo, como uma realidade geográfica, histórica, simbólica para um homem que carrega ilhas que são continentes, História que abarca centúrias pejadas de heterodoxias, símbolos dispersos sem coesão nem coerência na vastidão cronológica e espacial.

Porém, em vez de adotar um discurso meramente denotativo, o seu passado de jornalista perscruta realidades e conjeturas para construir hipóteses de cidadania cultural, que só pode ser universalista e pancrónica. Donde, estas crónicas são aliciantes, de leitura facilitadora para um entendimento de um modo de ser português sem clausura no retângulo europeu nem nas massas de água que separam continentes: é o Mundo – físico e mágico – que neste livro navegamos, jubilosamente, descobrindo o que sabe-se lá.

 

Vasco Pereira da Costa

 

VAMBERTO FREITAS SOBRE CHRÓNICAÇORES VOL. 5

PREFÁCIO – QUANDO UM ANDARILHO DO MUNDO ACABA NOS AÇORES

 

… Vivi três vidas numa só, carreiras distintas em paralelo e nada de material tinha para mostrar, mas teimava em acarretar essa pesada bagagem de conhecimentos e cultura.

Chrys Chrystello, Liames E Epifanias 1949-2005 (ChrónicAçores V)

Vamberto Freitas

 

Falar de Chrys Chrystello é falar de um Fernão Mendes Pinto da nossa época (menos as supostas mentiras do autor de Peregrinação, publicado em 1614), e que desde há anos vive e dinamiza a cultura literária (e não só) aqui nas ilhas, e levando tudo para o exterior adentro de Portugal e no estrangeiro. Esta não é em uma feroz anticruzada como Peregrinação, a primeira da Europa ou do mundo após os Descobrimentos portugueses, como a classificou Rebbeca Catz há muitos anos, numa distinta tese de doutoramento defendida na Universidade da Califórnia. Uma estudiosa falecida, mas que permaneceu sempre uma grande amiga e admiradora de Portugal, e foi na altura elogiada largamente por alguns escritores e intelectuais do nosso país, como Augusto Abelaira. O seu livro fulminante (mesmo sendo uma tese de doutoramento defendida na Universidade da Califórnia) foi publicado em Inglês em 1972, e depois traduzido em Portugal em 1978 sob o título de A sátira social de Fernão Mendes Pinto: análise crítica da Peregrinação.

 

Não pretendo fazer aqui paralelismos com a dividida e complexa experiência vivencial ou profissional de Chrys Chrystello, seja como jornalista ou como escritor. Só que este seu livro contém passos semelhantes, apesar de ele nunca lido Rebbeca Catz. Na contracapa do livro desta americana judia vem uma citação mais do que demolidora: “… escrita em Almada, no auge dos conflitos político-religiosos que constituíram o pano de fundo da famigerada Inquisição e Contrarreforma ibéricas, a Peregrinação é um exemplo prematuro – senão mesmo o primeiro, em toda a literatura europeia – de sátira corrosiva que, denunciando a ideologia da Cruzada, põe em dúvida a moralidade das conquistas ultramarinas portuguesas, que Fernão Mendes Pinto é o primeiro a condenar como atos de bárbara pirataria”.

 

Chrys Chrystello é natural do Porto (embora se diga sempre australiano de origem transmontana). A verdade é que Chrys traça as suas origens a Afonso Henriques, mesmo antes de Portugal o ser, reduzido ainda ao Condado Portucalense, e depois, do lado materno aos Novos Cristãos, aos judeus que só no século passado assumiriam quem eram perante o mundo na História rica a partir do momento que D. Manuel I tanto obedece como contraria as ordens dos seus sogros no lado de lá da nossa fronteira, e sempre à espreita do momento de nos conquistar ou absorver através dos estranhos casamentos do tempo de monarquias mandantes e poderosas. Vamos ao essencial, que coloca este livro no seu devido contexto açoriano.

 

Chrys Chrystello cresce numa família tradicional cuja fortuna haveria de desaparecer, e entre 1972-1975 foi para Timor (ano em visitaria pela primeira vez a Austrália, e lá se fixando a partir de 1982), testemunhando toda a complexidade da transição para a liberdade daquele país cobiçado por potências ali por perto. Depois veio Macau nos anos de 1976-1982, o momento em que ele decide de mudar de nome por duas razões. Primeiro, insistiam em chamá-lo “Chrys”. Segundo, viu nisso a oportunidade de adotar esse nome para esquecer, ou mesmo rejeitar todo um passado num Portugal que raras vez atinava com os seus próprios interesses ou identidade ante um mundo em mutação, mas do qual se encontrava longe. O autor deste e de outros livros, após o seu serviço irrequieto à Nação e ao longe, tornar-se-ia um jornalista profissional, fundador do Público, no tempo, mais ou menos em que foi repórter da LUSA durante 11 anos.

 

Começou logo em 2001 a organizar os Colóquios sobre a Lusofonia, e quando se instala permanentemente no nosso arquipélago (a sua companheira tinha sido colocada numa escola de cá), retoma-os em 2006, até hoje, com dois encontros por ano, em ilhas diferentes e no resto de Portugal e além-fronteiras, editando sempre os “Cadernos de Estudos Açorianos” que já somam 40, e em cada qual distingue um dos nossos escritores e/ou poetas. Nunca nada disto tinha sido feito entre nós.

 

Estou à vontade neste texto: nunca deixei de ser convidado, e nunca participei ativamente, com a exceção da apresentação de um livro de Zeca Soares no pátio do seu próprio e mítico restaurante da Praia dos Moinhos. A minha ausência das suas imparáveis iniciativas tem a ver com questões sobre as quais não quero nem devo falar neste espaço. Segui sempre afastado, no entanto, os trabalhos em curso, com admiração e saudade de alguns amigos e colegas da escrita que estiveram e estarão presentes. Da Lomba da Maia para o mundo, onde Chrys e a sua companheira professora vivem no que ele chama o seu “castelo”.

 

“Outra deficiência – escreve o autor – que adquiria em novo, por influência paterna era a sôfrega sede do direito inalienável à liberdade de expressão e de pensamento, malformação congénita que valera muitos dissabores pessoais. A relação com os outros era sempre problemática e resumia-se â aversão pelos ditames alheios. Fora assim com a autoridade paternal, com os militares como oficial do exército e na vida profissional. Era avesso aos “carneiros” e talvez por isso acabaria por casar com uma pessoa desse signo. Desrespeitava a inveja alheia, noção que me era alienígena, pois inveja nada e ninguém. Criticava os outros pela fachada que mantinham, pelos estereótipos com que se regiam: conversas balofas e mesquinhas, sem profundidades. Ansiava por conversas profundas, preferia argumentos ‘intelectuais’ ou ‘pseudointelectuais’ em que se esgrimissem argumentos, ideias e propostas concretas de melhorar o mundo…”

 

A escrita de Chrys Chrystello, neste livro, é mais uma sequência de memórias do que “crónicas”. O segredo está nos detalhes que incluem História, acontecimentos, nomes, datas, tudo num tom de linguagem muito pessoal que nos agarra de página em página, que nos apresenta a mundos conhecidos e desconhecidos, que contextualiza uma vida singular no meio das mais diferentes – por vezes, divergentes – culturas, línguas e modo de estar e ser que nos parecem estranhos, quando depressa nos damos conta da tragicomédia que a vida em toda a parte. Este estilo literário não é nada comum entre nós, preferimos o mexerico e maldizer do café ou das tertúlias exclusivistas que sempre proliferou entre nós. Direi do autor o que uma vez um grande amigo residente no Canadá me disse: és um crítico americano que escreve em língua portuguesa.

 

Com Chrys Chrystello tenho, esta afinidade, sem nunca ser declarada: um passado anglo-saxónico que nos transformou para sempre a nossa identidade e visão do mundo, e isto sem nunca abjurar as nossas origens multisseculares e que nada ficam a dever aos nossos outros mundos íntimos e significantes do nosso ser como cidadãos do mundo. Só os provincianos estranham estas experiências entre os mais diversos povos e presença, ora conhecida, ora desconhecida, no mundo.

 

Raramente me tenho encontrado com Chrys Chrystello ao longo destes anos em que ele se tornou uma espécie de cidadão honorário ou real dos Açores. Falamos pouco, mas estou convencido que o respeito é mútuo, assim com o reconhecimento do trabalho de cada um. Tínhamos em comum um grande amigo, Daniel de Sá, o grande escritor da Maia, aqui em São Miguel. Foi-me irónico ler que “Maia”, desde Portugal Continental, tem sido sempre os seus lugares de tristeza e outras lembranças menos agradáveis. Ele não sabe disto, mas tivemos outro amigo em comum, e esse foi um Capitão de abril de nome Vítor Alves. Foi o primeiro representante após 25 de abril (tinha colocado a sua vida em perigo com toda a coragem da conspiração e da libertadora madrugada em Lisboa) das nossas comunidades espalhadas pelo mundo fora. Não só o apresentei numa comunidade do sul da Califórnia, tomei uns copos com ele, e avisou-me que eu falava nesses eventos mais do que era necessário. Muitos anos mais tarde dei-lhe o último abraço na Universidade de Lisboa num congresso sobre as narrativas pessoais e gerais na vasta diáspora norte-americana. Faleceu um pouco depois, mas ser-nos-á inesquecível para sempre. A memória permanece das pessoas que nos tocaram profundamente na vida, ou que foram, o que fizeram neste caso parte dos nossos libertadores.

O mundo é pequeno, sabemos, como no título de num dos romances de David Lodge, que goza à brava da Academia e dos seus encontros que poucas vezes resultam seja no que for, e quase só servem para longas viagens de escritores com egos muito maiores dos aviões em que se sentam de continente para continente.

“Digamos – escreve o escritor e poeta Vasco Pereira da Costa num breve nota a CHRÓNICAÇORES II – que se trata de uma vontade de conhecer para amar – e só se pode amar o que se conhece. As ilhas atlânticas – a Macaronésia, assim designada – surgem deste modo, como uma realidade geográfica, histórica, símbolos dispersos sem coesão nem coerência na vastidão cronológica e espacial”.

É isso mesmo. Este livro de Chrys Chrystello é um outro testemunho de alcance universal das nossas vidas, da nossa sorte, da nossa tragédia e, sim, da nossa felicidade.

 

Vamberto Freitas

NOV.º 2020

40+ Photos That Show We Should Never Trust What We See on Social Media

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Social media has become a huge part of everyday life. But not everything posted is real! These photos prove that we should never trust what we see online.

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Abertura da estância de esqui da Serra da Estrela foi adiada por tempo indeterminado – NiT

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A 8 de novembro, foi anunciado que a reabertura da estância de esqui da Serra da Estrela aconteceria este sábado, 10 de dezembro. Para desilusão daqueles que contaram os dias para deslizar numa das 21 pistas que compõem a unidade, pensada para servir tanto os fanáticos pelo desporto como os que nunca o praticaram, a … Continued

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GARCÍA MARQUÉZ MEMÓRIA DAS PUTAS TRISTES

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May be an image of one or more people, high-heeled shoes and text that says "GARCIA MARQUEZ MEMORIA DAS MINHAS PUTAS TRISTES"
“Vamos às putas, que hoje é sábado”.
Falsos moralistas desandai, pudicos passai adiante, doidinhos da bola ide carpir para outro lado.
Vamos escrever sobre Portugal e os Portugueses.
No Alentejo, quando acabávamos a escola primária, os da minha geração, íam quase todos guardar rebanhos ou a caminho das oficinas.
Alguns descalços, todos com mau agasalho. Na barriga e no esqueleto.
Passávamos da escola da Dona Elsa e da sua menina dos 5 olhinhos, para a convivência áspera e bruta e a linguagem crua dos maiorais e dos mestres.
Era assim.
E a primeira pergunta que nos faziam, ainda o buço mal vicejava no lábio superior, era:
“já pintas?”
Nós, que nunca tínhamos ouvido falar no Dali, no Miró ou no Picasso.
E riam-se muito.
Depois começava a preparação.
Ouvíamos as narrativas das suas proezas, com imagens coloridas e abundâncias gestuais.
Era a febre de sábado à noite.
Sim, nesse tempo a semana de trabalho tinha 48 horas, 6 dias por semana.
 E os mestres, diziam uns para os outros:
“temos de levar lá o gaiato”.
Sim, naquela corporação existiam aprendizes, ajudantes e mestres.
E mais dia menos dia,
cotizavam-se entre eles, para levar lá o “gaiato”. Cinquenta escudos.
Era ponto de honra para um mestre iniciar um aprendiz.
Nos dias antecedentes, assustavam-nos e contavam histórias.
De alguns que tinham fugido porta fora, e nunca mais tinham aparecido, de outros que não tinham sido “capazes” e eram motivo de risota geral.
Mas o orgulho deles, era a patroa
vir dizer que o rapaz se
“portara bem…”
Temos homem!
Diziam os mestres, dando-nos palmadas nas costas, e obrigando nos a pagar a primeira rodada de cálices de aguardente, com a curta féria da semana, guardada no bolso da jaqueta.
Ascendíamos assim à mestria.
Hoje em dia, toda essa gente seria invectivada, mas eles estão todos aí e podem contar que foi assim.
A malta dos 13, 14 anos, conversava livremente e narrava os sucessos e os desempenhos que existiram apenas na sua imaginação.
Coitados dos que nunca lá tinham sido levados pelos mestres.
Eram uns coitaditos, uns pobrezinhos…
Bem sei que agora já não há disto. Podemos calcorrear à vontade a recta de Pegões, a Estrada de Manique do Intendente, a rua artilharia um, o cruzamento da Picheleira, ou a Fernão de Magalhães, que já não se lobriga nada disso…
E os jovens de 12, 13 anos, já não vão para trás dos rebanhos levar varadas dos maiorais, como o Constantino guardador de vacas e de sonhos, para as oficinas levar chapadões dos mestres e ser iniciados no sábado à noite, com putas tristes…
No Alentejo também já não há rebanhos. Nem oficinas.
Nem órfãos do Soeiro Pereira Gomes, “filhos dos homens que nunca foram meninos”
Agora só há estufas.
E os adolescentes que lá trabalham, vêm todos da Índia… Descobriram o caminho terrestre para Portugal.
E o Gabriel Garcia Marques, nunca escreverá sobre a sua iniciação.
Ao sábado.
Com putas tristes.
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Expresso | Portugal é um país “de monumentos fechados”- dos 4500 imóveis classificados só 250 estão abertos, e podiam gerar 224 milhões de euros

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A atual gestão estatal do património está a “expulsar os turistas” e a privar o interior de aproveitar esta “riqueza diferenciadora”, revela estudo inédito apresentado no congresso da APAVT.

Source: Expresso | Portugal é um país “de monumentos fechados”- dos 4500 imóveis classificados só 250 estão abertos, e podiam gerar 224 milhões de euros

Um lugar onde não fazer nada

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Parabéns aos amigos de Évora, que serão Capital Europeia da Cultura em 2027. Deste lado da planície azul, a revista 9 Bairros continua, pelo menos, até final do ano. E oxalá a sua lógica colaborativa entre ilhas possa ficar por muitos mais. Respondendo ao convite gentil da Andreia Fernandes, escrevi, espreguiçadamente, estas linhas.
“Escrevo-lhe, caro leitor, em nome do direito a descansar depois do ponto final. Em nome da preguiça, que como dizia o Quino, é a mãe de todos os vícios, mas uma mãe é uma mãe e há que respeitá-la. Em nome da certeza antiga de que a cultura nascia do ócio.”
Um lugar onde não fazer nada
AZORES2027.EU
Um lugar onde não fazer nada

Um lugar onde não fazer nada

Alexandre Borges
#Crónica

Escrevo-lhe, caro leitor, em nome do direito a descansar depois do ponto final.

Em nome da preguiça, que como dizia o Quino, é a mãe de todos os vícios, mas uma mãe é uma mãe e há que respeitá-la.

Em nome da certeza antiga de que a cultura nascia do ócio.

Os Açores foram, final e fatalmente, apanhados pelo mesmo vento encanado positivista que obriga a contemporaneidade a estar sempre a fazer alguma coisa – e a tirar fotografias que o comprovem, ou terá sido o mesmo que não ter feito nada. O mesmo que não ter existido.

O contemporâneo tem horror ao nada. Ao tédio. À ideia de perder tempo. E é precisamente por isso que se entedia. É por isso mesmo que o perde.

Desde criança, o cidadão do século XXI tenta empanturrar as suas crianças com tudo o que lá couber: a escola, o ballet, a música, a natação, os patins, a pintura, a meditação, o ténis e o inglês. Mais as explicações e todos os brinquedos e todos os jogos de computador e todas as festinhas e todos os passeios. Planos B, C, Y e Z que evitem a todo o custo a tragédia máxima de o petiz se aborrecer.

Naturalmente, o espécime adulto leva a vida da mesma forma. Não se contentando com o trabalho e o ginásio e o “tempo de qualidade” em família, mas precisando também do workshop e do padel e do pilates e de sete plataformas de streaming, e do programa cultural, e do restaurante novo a que ainda não foi e do brunch e do rooftop e do fim-de-semana fora e da escapadinha e do retiro e do team building. Tudo, é claro, para culminar nas férias, onde há que aproveitar o mais possível, e ir, e fazer, e consumir, e tirar muitas fotografias, e pôr muitos pins no mapa.

Agora, as ilhas que-já-não-são-desconhecidas parecem apanhadas na mesma vertigem. Não é o problema de se ser um sucesso turístico, que não é problema algum, antes reconhecimento e oportunidade para criar empregos, gerar desenvolvimento e subir a fasquia da exigência connosco próprios; é o problema de sentirmos que temos de nos fazer interessantes. Como se não o fôssemos já. Para responder à expectativa do contemporâneo cheio de estrica e pavor a perder alguma coisa.

Dizem que já não basta o destino. Que, hoje, o consumidor procura “experiências” e “storytelling” e coisas “disruptivas”. Pois, eu sonho com o momento em que o copo, finalmente, transborde e possamos fazer campanhas turísticas com motes como: “um sítio onde não se passa nada”. “Venha não fazer nenhum”. “Açores: a melhor ponta dum chaveiro da Europa!”

Quando eu crescia, uma pessoa não tinha de subir ao Pico só por ele estar ali. Não tinha de ir fazer mergulho nem trilhos. Escrevo-lhe em nome do direito a continuar a viver nesse tempo, se me apetecer. A voltar de férias sem se envergonhar de não ter nada para contar. Pelo direito a perder tempo. A ficar a ler com a chuva a bater na vidraça. A ver o mar rebentar contra a costa. A parar no café. A que nem tudo tenha de ter sex appeal (o sex appeal, às vezes, consegue ser muito cansativo). Pelo direito a não ter de encolher a barriga na praia. À desobrigação moral de fazer coisas novas. À não inscrição no momento. A não ser interessante.

Proponho, caro amigo, que criemos a indústria do turismo do nada. Pistas para fazer nada, lojas que vendem todo o equipamento para o nada, guias, roteiros, vídeos de gente a não fazer patavina. E vereis quanta literatura, música, teatro, pintura, escultura, quanta fotografia e cinema e dança e banda desenhada sairá daqui.

Percebo que se vá a Nova Iorque e a Paris e haja muito para fazer. Mas a minha ilha? A minha ilha costumava ser um dos melhores sítios do mundo para não fazer pevide. Ser folha, secar e cair. Ir de férias pastar, ruminar os dias como as vaquinhas, ficar de molho, amolecer com o capacete, desinchar, desmontar do comboio frenético do tempo. Pôr a vida que levamos temporariamente no cabide. Escapar.

Quero uma aplicação que me motive a dar o menor número de passos possível nas férias. Muitas entradas do Google e do Tripadvisor a recomendar: “10 sítios que pode absolutamente perder”, “15 coisas que se pode dar ao luxo de ignorar completamente”, “tudo aquilo para o qual se pode estar positivamente a borrifar” e outros opúsculos que nos libertem antecipadamente da culpa de não esgotar tudo quanto existe.

E depois, vamos dar um mergulho, comer umas cracas e discutir qual a melhor ilha para uma pessoa se sentar a ler.

@ Luís Godinho
@ Luís Godinho

Alexandre Borges

Escritor e argumentista natural de Angra do Heroísmo (1980). Trabalha habitualmente em televisão, teatro e na imprensa escrita. É director criativo de uma agência de comunicação e formador de argumento. Lançou, em 2021, Atenção ao Intervalo entre o Caos e o Comboio (Ponta Delgada, N9na Poesia / Letras Lavadas).