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Os nossos Bravos
“Eu fui à terra do bravo…”, a canção popular açoriana imortalizada pelo eterno Zeca Afonso não me sai da cabeça por estes dias, ao assistir ao comportamento generalizado da população açoriana perante o cenário em que vivemos.
Com a conhecida estoicidade açoriana, vamos todos cumprindo fielmente as recomendações e procedimentos das autoridades de saúde, à custa de tantos sacrifícios, sabendo que ainda estamos no princípio.
É claro que há sempre os desestruturados da sociedade, aqueles que vivem desajustados socialmente, não obedecendo e não respeitando as regras, criando rupturas que põem em risco os outros, mas é para isso que existem as autoridades de segurança, a quem compete zelar pelo bem estar de todos.
Mas o que é isto comparado com a enorme maioria dos cidadãos açorianos?
E há, ainda, os outros, os do discurso do ódio, a paranóia de apedrejar os que chegam, o ultraje em bando aos que contraíram a doença; sempre existiram ao longo dos séculos nos momentos de crise. As redes sociais só ampliaram o fenómeno.
É uma espécie de ‘lei mosaica’ moderna, já conhecida nos templos bíblicos, em que se previa a morte por apedrejamento.
Outra minoria são os lambedores de botas, uma casta muito crescente e diligente, que gosta de sindicar tudo e que acha que não deve haver opinião crítica e livre.
Mais forte do que tudo isso é a lei da tolerância e da solidariedade, que se tem revelado um fonte inspiradora nestes tempos, em todas as ilhas.
É ver as campanhas de angariação de fundos, promovidas por jovens, como o movimento entusiasta “Todos pelos Açores”, tal e qual como no tempo dos nossos avós e bisavós, perante a desgraça comunitária, em que se procurava ajudar uns aos outros.
Andamos tão focados na conferência de imprensa das 4 da tarde, nos números, nos confinamentos, nos cordões sanitários, nas origens do contágio, quem o espalhou, e não nos apercebemos da quantidade de gente, cidadãos como nós, patrícios, amigos, familiares, conhecidos, que estão na linha da frente, nos hospitais, nos bombeiros, nas unidades de saúde, numa ofensiva diária para expulsar o inimigo do nosso corpo.
São estes os nossos Bravos, tão bem retratados na capa da edição deste mês da The New Yorker.
Os profissionais de saúde dos Açores merecem mais visibilidade, muito para além das 4 da tarde e do aparecimento dos políticos a anunciar medidas fugazes, mesmo que importantes.
São eles o nosso último reduto, os nossos guerreiros a quem depositamos a derradeira esperança quando já não tivermos nenhuma.
Quanto custa ver um soldado despedir-se dos familiares para ir para a guerra? Quantos corações escondam um aperto vigilante na hora da partida de um profissional de saúde, por estes dias, sem saber se vai regressar imune para junto dos seus? E muitos a dormir fora de casa por prevenção?
O universo dos profissionais de saúde infectados no nosso país já ultrapassa os 850, no país vizinho já vai para lá dos 12 mil e em Itália atinge valores arrepiantes.
No dia em que estes Bravos nos faltarem, vai-nos faltar tudo.
É por isso que não se entende este racionamento, cá e lá, na protecção dos profissionais de saúde.
Dêem-lhes tudo para a sua protecção. São os primeiros a necessitarem para depois nos protegerem a nós.
Enfermeiros, médicos, assistentes operacionais, bombeiros, equipas da Unidade de Evacuações Aéreas, técnicos de laboratório que efectuam os testes e todos os restantes profissionais devem merecer da parte da Autoridade de Saúde toda a protecção necessária sem olhar a meios.
Não faz sentido o racionamento de equipamentos, a falta de EPI’s, a limitação de recursos, quando o tempo em que vivemos não tem tempo.
Os senhores administradores devem sair dos seus confortáveis gabinetes e irem para o terreno ver o que falta, ouvir os profissionais e atendê-los com a urgência que o tempo impõe.
Agir a tempo não é ir de arrasto.
Todos têm o dever de estarem em alerta.
Ainda agora, a Força Aérea, através da Esquadra 501-Bisontes, no âmbito da luta contra o Covid, transportou 4,5 toneladas de material para ajuda ao combate da pandemia, do Continente para os Açores e para a Madeira.
São gestos que não aparecem nas conferências de imprensa dos políticos.
Como, também, o trabalho incansável e histórico da Unidade de Deslocações e Evacuações Aéreas do Hospital de Santo Espírito da Ilha Terceira, que até há pouco tempo já tinha efectuado mais de 80 evacuações este ano, numa média de mais de 3 evacuações por dia, ou seja mais de 80 pessoas socorridas em prol da população dos Açores na área da saúde.
Estes Bravos também têm nome, apesar de não aparecerem nos jornais e nas televisões.
Na impossibilidade de, nesta crónica, nomear tanta gente, há pelo menos um que encarna o espírito e abnegação de todos os restantes: chama-se Luís Picanço e é, há 25 anos, o enfermeiro que chefia a equipa dos enfermeiros da Unidade de Evacuação.
As suas Bodas de Prata é o risco que enfrenta todos os dias para salvar vidas em todas as ilhas.
Como ele, tantos profissionais anónimos por estas unidades de saúde fora, às vezes sem recursos, para além do horário normal de trabalho, sem equipamento apropriado, sem salário compensador e, muitas vezes, ter de aturar as burocracias do sistema, sob a desorientação de gestores confinados aos gabinetes, é esta gente que precisa agora da nossa atenção, que se lhes dêem todos os recursos que precisam para salvar vidas.
E sejam os primeiros a beneficiar da massificação de testes. Que tarda.
Estamos com eles.
“Bravo meu bem…”
Abril 2020
Osvaldo Cabral
(Diário dos Açores, Diário Insular, Multimedia RTP-A, Portuguese Times EUA, LusoPresse Momtreal)
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