Views: 0
Da série “Crónicas de Hoje e de Sempre”
OS RATOS DA DOCA
(COM UMA EXPLICAÇÃO)
Seria uma excelente altura para escrever uma crónica que se debruçasse sobre dois temas da atualidade. Ou até mais temas.
Poderia virar-me para o futebol, dar a minha opinião sobre a nossa seleção nacional e o seu percurso tipo montanha-russa, num jogo perde sem glória e no jogo seguinte faz uma grande exibição e destrói um adversário de valor. Estou a escrever isto na antevéspera de mais uma partida decisiva que pode ditar o fim da competição [e ditou mesmo, fomos eliminados!!!] para a excelente equipa, que está recheada de grandes jogadores. E, claro, podia até meter-me na discussão sobre o comportamento e o uso ou não do Cristiano. Melhor não tocar nesse ponto, o homem já mostrou bastas vezes o seu valor e sabemos que pode resolver situações de aperto. Espero apenas que não tome atitudes que façam desmoronar uma carreira construída com muito esforço e com muita classe.
Por outro lado, eu devia era escrever um texto sobre a época festiva. Não o faço por duas razões: Já escrevi, em anos anteriores, várias histórias com este tema; e, depois, os jogos do mundial tem-me tirado muito tempo, de forma que a inspiração natalícia vai esperar mais um ano. Em vez disso, fui ao baú das “Crónicas de Hoje e de Sempre” e ressuscitei esta, que conta a aventura de um grupo de açorianos em tempos da Segunda Guerra. Na altura da primeira publicação, pessoa por quem tenho muito respeito fez-me saber que o termo “Ratos da Doca” não se aplicava àquele grupo de jovens. Contudo, deixei ficar como estava na versão original.
Ao fim e ao cabo, esperemos que os nossos jogadores de futebol mostrem tanta valentia como o fizeram os marinheiros faialenses e consigam levar o barco a bom porto.
Para todos os leitores destas crónicas, o meu Muito Obrigado por o fazerem e os meus sinceros desejos de boa saúde e muitas felicidades para o 2023.
RATOS DA DOCA
O mar, negro e profundo, estendia-se, com ondulação forte e alterosa, até onde a vista permitia, confundindo-se, em cor e aspeto, com o acinzentado do céu.
O rugido do vento, assobiando por entre as chaminés e os mastros do navio, misturava-se, qual louca sinfonia, com o bater constante da maresia contra o casco metálico do “Lima”. Ao longe, sobre a ténue linha do horizonte, ribombavam trovões e faiscavam relâmpagos que se refletiam sobre as águas em correntes prateadas. Nem uma única gaivota se aventurava a cruzar os ares e nem nenhum marinheiro se atrevia a sair ao convés.
Sentado a um canto do pequeno beliche, Renato “Espanhol” tentava convencer-se que tinha sido a melhor decisão da sua (ainda jovem) vida. Não era todos os dias que aparecia a oportunidade de ir dar um passeio a Lisboa e, ainda por cima, ser bem pago pelo privilégio. Tudo havia de correr bem. Agora, três dias depois de deixarem para trás a doca da Horta e de passarem ao largo da sombra da montanha do Pico, não era esta pequena tempestade que lhes iria estragar os ânimos.
Ali mesmo ao lado, quatro dos seus companheiros entretinham-se a jogar uma sonora sueca, já com os nódulos dos dedos quase a sangrar de tanto bater no topo engordurado da velha mesa. Os copos de vinho do Pico deslizavam ao ritmo da ondulação e o garrafão de cinco litros, já com a asa meia partida, só se aguentava em pé se estivesse entalado entre as pernas do Jaime Luiz.
Esta meia dúzia de jovens faialenses, quase todos das Angústias, conhecidos por “Ratos da Doca”, tinha sido contratada para servirem de marinheiros na que viria a ser uma viagem fantástica. Rapaziada valente, habituados ao cheiro dos navios e aos trabalhos de estiva, não lhes pareceu má ideia trocarem, durante umas semanas, a pacatez da praia de Porto Pim pela balbúrdia da capital do império. O “Lima” tinha sido o navio escolhido para fazer o reboque de um barco da Marinha Inglesa que havia demandado o porto da Horta depois de ter sido atingido por um torpedo, disparado por um submarino alemão. Feitas as reparações de emergência e terminados os devidos preparativos, partiram numa manhã de Setembro, rumo ao continente europeu. Num lento navegar, o barco militar, tripulado pelos jovens faialenses, seguia, resoluto, bem amarrado com dois poderosos cabos, a sua mancha negra a tingir o leito de água branca deixado pela poderosa hélice do “Lima”.
De repente, naquela noite, já quando os marinheiros se preparavam para dormir, um enorme estrondo ecoou por entre as rajadas do vento… “A amarra partiu-se, o cabo arrebentou!!!”, gritou o José “Cabrito”, do seu posto de vigia. O espanto no rosto dos homens era desolador. À frente, já a considerável distância, a tripulação do “Lima” também se apercebeu do ocorrido e deu início aos trabalhos de recuperação do navio sinistrado. Foram muitas horas de árdua luta contra os elementos. Só ao fim da terceira tentativa conseguiram que as espias, disparadas por canhão, atingissem a borda do “Lima” e permitissem nova amarração.
Passados dias, ainda perto do arquipélago da Madeira, as amarras voltaram a rebentar. Felizmente, nessa ocasião, as condições climatéricas eram bastante melhores, mas o facto de terem sido apanhados por uma forte corrente marítima, fez com que os barcos ficassem muito afastados um do outro.
Passaram sete longos dias à deriva!
Renato “Espanhol” e os seus companheiros nem dormiam. A comida estava a escassear, a água potável já a desaparecer no fundo do depósito, as zaragatas e discussões a surgirem por tudo e por nada. Os olhos já lhes doíam de tanto buscarem sinal de terra no horizonte. A persistência e a labuta foram finalmente recompensadas quando, quase um mês depois de terem abalado da Ilha Azul, cruzaram o Mar da Palha e aportaram ao Cais de Santos. Cansados, com os músculos e os ânimos destroçados como que se eles próprios é que tivessem rebocado o navio à força de braços, tinham agora duas semanas para descansar e recuperar, antes do regresso aos Açores.
E que grandes semanas foram aquelas! A soldada recebida no fim da viagem encheu-lhes os bolsos de notas e a cabeça de esperanças nuns dias de sonho. Metida terra-dentro, de olhos arregalados, barrigas em busca de novos sabores e juízo à cata de aventura, depressa se esqueceram dos tormentos da viagem. As meninas das tascas do Cais do Sodré inticavam com a sua cantarolada pronúncia, mas aceitavam-lhes as carícias e os avanços amorosos. Nos restaurantes das imediações ficaram logo conhecidos como bons “garfos” e, nas Casas de Fados, a voz do “Espanhol” eclipsava a dos fadistas profissionais. Até mesmo o Estádio da Tapadinha nunca tinha visto uma claque de adeptos tão barulhentos! Pudera, era a primeira vez que assistiam a um jogo de futebol de primeira divisão.
Contudo, foi uma inquietação para convencer o José “Cabrito” a regressar à Ilha. Talvez a querer fugir à responsabilidade de ter deixado a namorada com a barriga à boca, o rapazola todos os dias inventava novas desculpas. Só a eloquente intervenção do Jaime, o mais velho e atinado do grupo, o convenceu. De facto, estava na hora de todos deixarem aquela babilónia, antes que se acabasse o dinheiro e chegassem a casa sem um tostão.
A história desta atribulada viagem merecia mais detalhada pesquisa, para acerto de alguns pormenores e mesmo uma melhor narrativa. Ouvia-a da boca do meu sogro, um dos destemidos argonautas, que a contava vezes amiúde, mas talvez a terá fantasiado um pouco. Para ele e para os seus companheiros, foi uma aventura que nunca mais esqueceram e que ajudou a cimentar os laços de amizade que os unia.
Porque, para um “Rato da Doca”, amizade é para toda a vida.
Lincoln, Ca. 6 de Agosto, 2015
João Bendito
1 comment
Like
Comment
Share
1 comment
- ActiveJoao BenditoPublicado na edição de 15 de Dezembro do “Tribuna Portuguesa”, de Modesto, Califórnia.
- Like
- Reply
- 19 m