os portugueses que deixaram Macau

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Há um ano a viver em Portugal, mas para sempre ligados e preocupados com Macau.
Estes quatro portugueses fizeram as malas, fecharam caixotes e decidiram há por volta de um ano regressar para Portugal.
Uns partiram por quererem estar mais perto da família e por estarem saturados de dois anos e meio de políticas zero-Covid.
Para outros, foi a crise no emprego e a subida dos preços que os levou a pensar que em Portugal também poderia haver outras oportunidades.
O PONTO FINAL quis ouvir estas histórias de regresso ao país de origem, dez anos depois de lá terem vivido, e dar a conhecer as experiências de quem não conseguiu continuar por cá, apesar de continuar a gostar muito de Macau.
Partiram todos no Verão de 2022, por estarem saturados e não verem uma “luz ao fundo do túnel”.
Joana Simões, educadora de infância, confessa que estava farta.
“Estive quase dois anos e meio sem poder vir a Portugal e já estava cansada.
Precisava de sair daí e de ver a minha família”, desabafou.
“Tenho duas filhas adolescentes e (..) a família é para mim o meu maior suporte.
Fazia-me confusão elas não poderem estar com os avós, com os primos”.
O pior desses tempos foi a incerteza de não saber quando as coisas iriam mudar.
“Não poder esperar nada, não poder fazer planos, porque não se sabia nada, não havia previsões de nada.
A incerteza foi o pior para mim.”
Pedro Lopes, licenciado em Marketing, também diz que foi o facto de estar longe da família e dos amigos que o fez acelerar a decisão.
Isso e uma experiência de quarentena para esquecer.
“Em Dezembro de 2021 venho a Portugal passar férias e foi nessa altura que Macau anunciou o fecho do espaço aéreo.
Tive de comprar viagens em 24 horas para embarcar, tive despesas bastante elevadas”.
Essa, conta, foi a viragem que precisava para acelerar a mudança.
“Durante a quarentena pensei na minha situação, e comecei a tratar das coisas para sair, até ao Verão de 2022, de Macau”.
Recordando os “20 e tal dias de quarentena naquele hotel ‘maravilhoso’ à frente do aeroporto, o Treasure”, Pedro Lopes não guarda boas memórias.
“Foi péssimo.
Há pessoas que conseguem estar fechadas num quarto.
Eu não tenho essa personalidade.
Estar fechado, não poder abrir janelas, não poder falar com ninguém ‘in loco’, isso para mim fez-me confusão, mexeu muito comigo.
Nós não sabíamos quando é que a pandemia em Macau iria acabar”, frisa.
A crise no emprego vivida no território também afectou a vida destes portugueses.
Mafalda Matos, arquitecta que na altura trabalhava para empreendimentos turísticos, referiu-se a cortes na construção civil, “porque a situação estava relacionada com os casinos”.
“Houve cortes de salários, e de horários.
Enviavam pessoas para casa, simplesmente porque não havia trabalho”, recorda.
Mas a crise chegou a todos, e afectou até áreas não directamente relacionadas com o jogo.
António Mil-Homens, fotógrafo freelancer de longa data em Macau, partilha que na altura começou a “ter os trabalhos todos adiados e depois cancelados”.
Esta acabou por ser a conjugação de factores que o fotógrafo precisava para tomar a decisão de “inverter a lógica dos 15 anos anteriores” em que “estava permanentemente em Macau e ia a Portugal algumas semanas a um mês no máximo uma vez por ano”.
Das quatros pessoas com que o PONTO FINAL conversou, António Mil-Homens é o único que mantém a porta aberta, dividindo o tempo entre Macau e a localidade em Portalegre onde reside.
“Tenho inclusivamente em vista aquilo que sempre foi um dos meus objectivos: criar uma ponte cultural entre Macau e Portugal”, revela.
“Acabei por investir aqui na ampliação do espaço onde resido, e tenho em vista a realização de workshops e residências artísticas.
Sempre que possível, com apoios locais e em Macau, quero trazer ao Alentejo e a Portugal artistas de Macau e da China que estejam interessados em desfrutar de um ambiente calmo, e de uma boa paisagem para desenvolverem projectos artísticos”.
Quando chegou a Portugal, Pedro Lopes trabalhou primeiro no Porto, e depois em Lisboa, onde actualmente desempenha funções como director comercial de uma empresa de ‘e-commerce’.
Este diz que dificilmente voltaria a viver em Macau, “só mesmo se as coisas ficarem muito complicadas em Portugal”.
Para o antigo responsável de IT e marketing num escritório de advogados em Macau, a mudança inicial para Portugal foi “óptima”.
“As pessoas na cidade do Porto são extremamente acolhedoras, o país em si é espectacular, não há comparação”.
Tanto Pedro Lopes como Mafalda Matos falam de uma nova realidade laboral que os surpreendeu à chegada: a dos novos regimes mistos de trabalho, em que se pode trabalhar na empresa e a partir de casa.
“Em termos de trabalho, Portugal depois do Covid adaptou-se a uma metodologia meia híbrida, onde as pessoas trabalham muito a partir de casa, ou seja, não há aquele desgaste que havia antigamente, pelo menos falo por mim, pelo meu tempo de quando saí de cá”.
Pedro Lopes recorda que antes, as pessoas perdiam muitas horas no trânsito, trabalhavam 8-10 horas por dia.
“Hoje as pessoas têm uma vida mais calma e mais tranquila, pelo menos do que vou entendendo da realidade onde estou inserido”, contextualiza. Mafalda Matos também está satisfeita com a mudança do mercado laboral em Portugal.
“Quase todas as entrevistas a que fui perguntaram-me sempre se eu não me importava de trabalhar presencialmente, algo que estranhei”, conta.
“Pelos vistos, há já muita gente que trabalha online e isso também é positivo, porque dá para conciliar a vida profissional e a vida pessoal.
Era algo que não estava habituada, porque em Macau senti sempre que havia desconfiança”, da altura em que se adoptou em Macau esse regime, nos tempos da pandemia.
A arquitecta também diz que, apesar da subida do custo de vida em Portugal, ainda assim, o vencimento que recebe em Portugal vale a pena.
“O saldo ao fim do mês é mais positivo do que aí em Macau, e em termos de carga horária também é completamente diferente.
É claro que há momentos que temos de fazer noitadas, mas o horário é flexível.
Tenho as 35 horas semanais, e dá para ir equilibrando e ter vida familiar”.
Os dias de férias também foi outra melhoria muito bem recebida.
“Em Macau tinha 12 dias de férias, e aqui tenho 24”, destaca.
MACAU ERA MAIS FÁCIL
Já Joana Simões, educadora de infância que passou pela Escola da Flora e pela escola luso-chinesa Seac Pai Van, sublinha que em termos financeiros, em Macau tinha uma vida mais desafogada.
“Das coisas que mais tenho reparado é em termos financeiros.
Aí tinha uma vida que em Portugal não posso ter, porque a diferença de ordenados é gigante.
Portugal está a atravessar uma crise gigante também em termos financeiros.
Nesse aspecto, Macau era muito mais fácil”, confessa.
Este sentimento de Macau ser “mais fácil” é, aliás, uma opinião partilhada por todos.
“A verdade é que eu, ao fim de um ano de cá estar, continuo a sentir-me uma ‘outsider’ dentro do meu país.
Ou seja, gosto de estar cá, adoro Portugal, mas a verdade é que 12 anos fora é imenso tempo”, argumenta Joana Simões.
“No fundo são as rotinas, porque uma pessoa depois de tanto tempo fora, quando volta, tem de começar do zero, em termos de trabalho e das amizades também”.
A opinião é unânime: em Macau era mais fácil estar com as pessoas.
“Tenho saudades da proximidade da comunidade portuguesa, aqui é mais difícil uma pessoa encontrar-se”, desabafa Mafalda Matos.
“Não é impossível, mas é mais difícil porque andamos numa correria e isto é maior, e às vezes não temos tanto tempo para nos encontrarmos”.
António Mil-Homens recorda Macau e a “facilidade se estar com quem apetece num curto espaço de tempo; sendo Macau um território tão pequeno, a vida é fácil em Macau”, acrescenta.
Ficam também as saudades dos cheiros, dos sabores, e dos locais que costumavam frequentar.
Pedro Lopes recorda a facilidade dos supermercados abertos 24 horas por dia, e da segurança.
“Aqui uma pessoa tem de ter alguns cuidados, não que eu tenha tido algum problema, mas tenho alguns cuidados que em Macau não tinha, é um facto”, destaca.
“São duas coisas que Macau nos dava e que dificilmente outro país nos poderá dar da mesma forma”.
NARCISISMO NACIONAL
A comida também deixou saudades a Mafalda Matos, assim como a possibilidade de poder viajar na China, algo que gostava muito de fazer quando aqui residia.
A especialista em urbanismo, que se encontra agora a trabalhar para a Câmara Municipal de Lisboa, faz questão de salientar que uma coisa é o Governo chinês, outra são os chineses.
“Há pessoas na China que não têm realmente nada a ver com as políticas do Governo.
São pessoas com uma mentalidade muito aberta e muito dispostas a aceitar os outros, mesmo que sejam diferentes.
Pessoas simples, sem preconceitos”.
É com alguma crispação na voz que Mafalda Matos recorda os tempos iniciais da pandemia, e a forma como as autoridades geriram as pessoas “diferentes”, estrangeiras.
“No princípio, sim, o Governo esteve bem, mas quando apareceram as vacinas e o mundo começou a abrir, o Governo esteve muito mal”, critica.
Para além de afundar economia, “criou imensos problemas a nível social, de diferenciação, de xenofobia entre quem era estrangeiro e quem era chinês”, denuncia.
“Quem era chinês podia entrar e sair livremente pela fronteira, e os estrangeiros não, tinham de ficar limitados a uma cidade pequeníssima sem ver família, sem possibilidade de nada, a perderem empregos”, recorda com amargura.
Essa desigualdade de direitos, aliada aos cortes salariais e também aos níveis de poluição elevados começaram a pesar nas escolhas da arquitecta.
Esta explica que como já estava a chegar aos 50 anos, se não viesse para Portugal, ou para a Europa, não iria conseguir trabalho mais facilmente, a menos que trabalhasse por conta própria.
“Achei que estava no limite de voltar”.
Mas Mafalda Matos reitera que aquilo que a fez virar costas a Macau e partir para Portugal foi definitivamente a questão do que ela define como um caso sério de xenofobia e narcisismo nacional.
“Notei a diferenciação que eles começaram a fazer entre os chineses e os estrangeiros.
Foi essa sensação desagradável, e depois a situação nas escolas, aquela imposição do hino nacional e do mandarim, de demasiadas restrições para os miúdos”, recorda.
“Eu não acredito que o sentimento de xenofobia e narcisismo que está a ocorrer na China reverta”, lamenta.
“Claro que há pessoas que não são assim, mas o Governo e grande parte da população estão com esse grave problema”.
Não que a xenofobia e o racismo não existam em Portugal, admite, mas mesmo assim, defende que não tenciona que os seus filhos “cresçam num ambiente desses”.
ACOMPANHAR A FAMÍLIA
Dos depoimentos destes quatro antigos residentes da RAEM, residentes que, aliás, tinham todos acumulado dez ou mais anos de vida em Macau, fica a sensação de que, se não tivesse havido pandemia, ainda estariam aqui, a viver no território.
Pedro Lopes é o primeiro a dizê-lo:
“Se calhar ainda estaria aí.
É aquela questão de que uma pessoa acaba por ficar em Macau porque as coisas estão bem.
Recebe-se bem, vive-se bem, e podíamos vir a Portugal com frequência, os preços também não eram tão altos.
Hoje em dia as coisas já são diferentes, a pandemia fez mudar isto tudo”, constata.
Joana Simões frisa que não se foi embora de Macau por não gostar de viver aqui, pelo contrário.
“A minha intenção era ter ficado em Macau até pelo menos a minha filha mais velha acabar o 12º ano.
Eu gostava bastante de viver em Macau”, relembra.
Entretanto, apesar de tudo, em Portugal existe um acompanhamento mais adequado para a sua filha mais nova, e também para a filha mais velha, que está prestes a terminar o secundário.
Pedro Lopes também tem um filho adolescente que esteve em Macau, e que agora, após um ano de distância, vai finalmente poder reencontrar-se com o pai em Portugal.
“Tenho um filho de 15 anos que ainda ficou em Macau, uma decisão que pesa bastante, porque me afastei dele um ano”.
Também António Mil-Homens falou da importância da família que, para si, foi a principal razão para regressar a Portugal.
Em 2020 tentou vir ver um familiar que estava em situação terminal.
“Cheguei cinco dias depois de ela falecer”, recordou.
“Já não sou propriamente uma criança”, brinca.
“Achei que nesta fase eu precisava mesmo de estar cá, em Portugal, de apoiar a família”, admite.
Joana Simões também foi para Portugal e passou por uma situação semelhante.
“Foi assim um regresso um bocado complicado nesse aspecto, eu vinha com alguns planos para a minha vida futura, e acabei por ter de reorganizá-la de outra maneira”, confessa.
MEDIDAS EXAGERADAS
Qual é a análise que estes quatro antigos residentes da RAEM fazem da prestação das autoridades durante toda a pandemia?
A maioria recorre à mesma palavra: Exagero.
Para todos, as medidas no início da epidemia “foram muito eficazes e bem pensadas, especialmente porque naquela altura não se sabia bem o que estava a acontecer”, salienta Joana Simões, acrescentando que nesse aspecto “Macau funcionou muito bem.”
Depois a partir de certa altura, começou a sentir que as coisas deixavam de fazer sentido.
“O mundo começou a abrir, e Macau continuava sempre fechado, não nos dando possibilidade de nada”, desabafa.
“A certa altura achei que todas as medidas eram um exagero e sem resultados positivos, tanto que a verdade é que as pessoas começaram todas a ir embora e muitas foram precisamente por causa das políticas que foram tomadas”, argumenta.
Pedro Lopes acha “um exagero da parte do Governo em prolongar as medidas, porque as pessoas andavam mesmo já cansadas de estar aí”.
A partir do momento em que começou a haver vacinação, as autoridades deveriam ter começado a abrir as fronteiras.
“Mais dia menos dia, eles teriam de abrir, e as coisas iriam acontecer como aconteceram depois”, aponta,
juntando-se à opinião de Joana Simões de que esta situação fez acelerar muito a partida de muita gente, “e não só de portugueses”.
Já António Mil-Homens, embora admita que “talvez em determinadas circunstâncias houve exagero”, defende que as medidas foram justificadas.
“Estava em permanente contacto com amigos na área da saúde, e tinha plena consciência que o sistema de saúde e os hospitais de Macau não tinham a mínima possibilidade de fazer face a qualquer surto mais grave”, ressalva.
Mafalda Matos, por seu turno, questiona a falta de iniciativa das autoridades no apelo à vacinação, algo que, na sua óptica, teria sido uma forma de minimizar mortes se as fronteiras tivessem sido abertas, à semelhança do que se passou no resto do mundo.
“Possivelmente, se não tivesse havido este tipo de restrições, a economia se calhar não tinha afundado tanto, e se calhar não teria havido o esvaziamento que houve de população estrangeira que teve de sair”.
A arquitecta escolhe ainda falar nas repercussões que as medidas antiepidémicas tiveram nas crianças, defendendo que estas “criaram paranóia na cabeça dos miúdos”.
Antes de sair de Macau notava na rua que imensas crianças tinham receio de tirar a máscara.
“Um medo constante”, refere, acrescentando que agora, “surpreendentemente, as pessoas que vemos aqui em Portugal nos transportes públicos que estão com máscaras, luvas e chapéus são no geral chinesas.
O que é estranho, e demonstra que ficou mesmo enraizado, esse medo constante”.
Rita Gonçalves.
Jornal Ponto Final, 21 de Dezembro de 2023.
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António Duarte Mil-Homens

Obrigado, Luís.
E Boas Festas!