os bisontes da torre branca

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OS BISONTES DA TORRE BRANCA
27 Novembro 2021 – DN
António Araújo
Opinião
O Inverno, dizem, é a melhor altura para vê-los no seu ambiente natural. Mas quem se aventura ao rigor do Inverno na densa floresta de Białowieza? Classificados pela UNESCO como património mundial, os 150 mil hectares de Białowieza (em polaco, “Torre Branca”) estendem-se entre a Polónia e a Bielorrússia, naquela que é uma das maiores áreas florestais virgens da Europa. Provavelmente a maior, certamente a última, derradeiro vestígio da imensa mancha verde que há muitos séculos cobria a Planície Europeia, um território vastíssimo que vai dos Urais ao Atlântico, integrando, no lado ocidental, os Países Baixos, a Dinamarca, o Norte da Alemanha e da França. Sob a vegetação frondosa, com freixos de mais de 50 metros de altura, nas sombras de Białowieza vivem 20 mil espécies diferentes de animais selvagens.
Entre eles, o bisonte-europeu, cientificamente designado Bison bonasus. Restam actualmente cerca de 800 exemplares em toda a floresta de Białowieza. Evitando as planícies, preferem refugiar-se debaixo das árvores majestosas, antiquíssimas, o que desde sempre contribuiu para alimentar as histórias e as lendas tecidas em redor daquele que é o maior e mais possante animal terrestre de toda a Europa. Com uma tonelada de peso, os bisontes cor de chocolate sobreviveram quase por milagre à extinção da megafauna decorrente das alterações climáticas do Plistoceno, que levaram ao desaparecimento dos gigantescos cavalos tarpã, que vemos no filme Avatar, de James Cameron, ou dos míticos auroques, bovinos representados nas pinturas rupestres do Neolítico. Entre os delirantes programas pseudocientíficos dos nazis contava-se o projecto de recuperação da linhagem perdida dos auroques, os colossais ruminantes que os biólogos do III Reich julgaram ser capazes de recriar precisamente com base na estirpe dos bisontes-europeus. No filme O Jardim da Esperança, realizado em 2017 pela neozelandesa Niki Caro, onde se relata a história da família Żabiński, que durante a II Guerra escondeu centenas de judeus no jardim zoológico de Varsóvia, mostra-se uma desastrada tentativa de acasalamento de um bisonte trazido de Białowieza, esquecendo-se os disparatados cientistas nazis de que os auroques pré-históricos têm muito mais afinidades com as vacas ou os bois contemporâneos do que com o Bison bonasus do Nordeste da Polónia e de outras paragens.
Os bisontes estenderam-se por toda a Europa, chegando aos Pirenéus, a oeste, e às costas do Mediterrâneo, a sul. Depois foram desaparecendo, restando hoje algumas centenas, a maior parte dos quais abrigados pelas árvores milenares de Białowieza. Quem deseje vê-los, pode deslocar-se lá, e até ficar hospedado na torre de água da estação ferroviária erigida pelo czar Nicolau II. Dificilmente os encontrará na natureza, sobretudo nos meses mais quentes do ano, quando se refugiam nos confins frescos da floresta, em lugares inacessíveis aos seres humanos. Mas existem algumas dezenas de bisontes em cativeiro, em espaços cercados, onde crescem, procriam e podem ser admirados pelos viajantes.
A caça desmedida e a destruição do seu habitat natural levaram praticamente à extinção dos bisontes-europeus. Entre as subespécies de Bison bonasus, um último exemplar foi morto em Białowieza, em 1921, e o derradeiro Bison caucasus foi abatido no Noroeste do Cáucaso em 1927. Em meados do século XIX, a caça em larga escala levara já ao desaparecimento definitivo do Bison hungarorum. Aos poucos, contudo, alguns exemplares de Bison bonasus que restavam em cativeiro foram sendo reintroduzidos na natureza, o que permitiu a sua preservação até aos nossos dias. Porém, não se conseguiu ainda, de modo algum, garantir plenamente a sobrevivência de uma espécie que em 1996 a União Internacional para a Protecção da Natureza declarou em perigo de extinção. Mais recentemente, em Agosto de 2017, o Tribunal Europeu de Justiça ordenou ao governo polaco que cessasse as acções de desflorestação em Białowieza, denunciadas por várias organizações ecologistas.
Com o desaparecimento definitivo dos bisontes de Białowieza, perder-se-á para sempre a memória de um animal imponente, que teve um papel fulcral na formação da identidade nacional polaca e, sem dúvida, da identidade cultural europeia. No Renascimento, um jovem humanista nascido por volta de 1480, antigo estudante da Universidade Jaguelónica de Cracóvia, integrou a comitiva de Erasmus Ciolek, bispo de Polotosk (a diocese mais oriental da Igreja Católica), na deslocação que aquele prelado fez à Roma do Papa Leão X. Sendo o Sumo Pontífice um apaixonado pela caça e pelos animais de grande porte, não admira que, pela mesma altura, o rei D. Manuel I lhe tenha enviado de Lisboa uma embaixada sumptuosa de onde constava uma onça feroz e um elefante magnífico, que se passearam em grande pompa pelas ruas da Cidade Eterna no dia 12 de Março de 1514. A embaixada levava ainda um famoso rinoceronte, imortalizado em 1515 numa xilogravura de Albrecht Dürer, o qual morreria na viagem, quando o navio que o transportava naufragou próximo da costa italiana, por bandas de La Spezia. O Papa ficaria de tal forma fascinado pelo elefante Hanno que, quando este morreu, mandou embalsamar diversas partes do seu corpo, incluindo o pénis. Entretanto, aquele jovem poeta e sacerdote polaco, filho de um monteiro-mor, de seu nome Mikołaj Hussowski (ou Nicolaus Hussovianus), dedicava ao Papa uma extensa ode com o título Carmen de statura, feritate ac venatione bisontis (Poema sobre a estatura, a ferocidade e a caça do bisonte), dada à estampa em 1523 e composta por 1070 versos (!) que, num latim grandiloquente, descreviam à exaustão a anatomia, a fisiologia e todos os passos da vida e dos hábitos do bisonte-europeu.
Num tempo em que o monarca português oferecia ao Papa animais exóticos, vindos do Oriente ou do Novo Mundo, o elogio ao bisonte da Polónia e da Lituânia tinha um objectivo diplomático muito preciso: na geopolítica da época, tratava-se de afirmar a pujança do poderio continental, terrestre, incarnado no Centro da Europa, perante a periferia ibérica que então estendia o seu domínio pelos mares do mundo. O bisonte polaco, enaltecido nos versos de Hussowski, tinha o seu contraponto no elefante-indiano oferecido pelo monarca português, o Venturoso, animal que o delicado traço do célebre pintor Rafael Stanzio captou num desenho feito circa 1514-1516. Recebendo as oferendas da Europa terrestre e da Europa marítima, Leão X surgia como o árbitro e a máxima potência, espiritual e temporal, da cristandade, aquela que era capaz de unir a terra e o mar, as duas categorias que, segundo o jurista e filósofo Carl Schmitt, definiam o perfil geopolítico da Europa e do Ocidente.
Não ficaria por aqui a utilização do bisonte como ornamento de poder, devendo recordar-se que, muitos anos depois, no século XVIII, o rei Estanislau II Augusto Poniatowski, o último soberano da Polónia, enviava regularmente a Catarina, a Grande, sua suserana e amante, caixas de carne fumada de Bison bonasus. Antes disso, e como salienta Norman Davies em God’s Playground. A History of Poland, as caçadas aos bisontes de Białowieza eram encenadas e projectadas como contraponto das touradas da Península Ibérica ou, mais precisamente, de Espanha, fazendo-se de novo a oposição entre os dois extremos cardeais da Europa, leste e oeste. Pelo menos, assim foram apresentadas na descrição de uma caçada na Podólia feita no influente tratado Polonia, sive e situ, moribus, magistratus et republica R.P., que Martin Kromer publicou em 1577. De novo, os animais emergiam como peças de um xadrez mais vasto, onde, num delicado rendilhado político e diplomático, ou simbólico e cultural, se disputavam interesses de vária ordem, que em muito ultrapassavam os possantes touros ibéricos ou os bisontes polacos e lituanos.
O dirigente nazi Hermann Goering fez da Torre Branca uma das suas coutadas de caça. A escassos quilómetros dos lugares onde se massacravam milhares de famílias judias (os judeus constituíam 12% da população de Białowieza), o Reischsmarschall e os seus convidados entretinham-se a atirar aos bisontes e aos alces, às raposas e a outros animais bravios. Já antes, no estertor da Grande Guerra de 1914-18, os exércitos alemães, famintos, metralharam centenas de bisontes em Białowieza, dizimando aqueles que, por pouco, se arriscaram a ser os últimos exemplares do maior mamífero terrestre da Europa. Mas deve-se à paixão venatória de Goering a protecção concedida ao bosque sagrado da Torre Branca contra os que o queriam devastar para impedir que nele se escondessem centenas de judeus e resistentes polacos. Seria, contudo, um avião da Luttwaffe de Goering a destruir à bomba a pequena igreja de Białowieza, para consternação da população local, que também assistiu amargamente à destruição dos pavilhões de caça dos czares, incendiados pelas tropas alemãs em fuga. Durante o regime comunista, todos esses edifícios seriam substituídos por pavorosas construções em cimento armado.
Nos nossos dias, a atracção pelos majestosos bisontes-europeus não se perdeu, longe disso. O Bison bonasus aparece em selos ou séries filatélicas de vários países, desde França à Bielorrússia, passando pela Roménia, e é um símbolo nacional da Polónia. Além de notas de banco da Bielorrússia, surge no rótulo da popular vodca Zubrówka, produzida em Białystok e conhecida como “vodca de gordura de bisonte”. Segundo se diz, as origens desta bebida datam do século XVI – sendo, pois, contemporâneas da embaixada de D. Manuel I ao Papa e do poema de Hussowski -, quando os camponeses se lembraram de aromatizar a vodca com um talo de erva de bisonte, ainda hoje presente nas garrafas de Zubrówka, da Polónia, ou de Stumbras, da Lituânia. Mais recentemente, o bisonte terá servido, inclusive, de fonte de inspiração aos criadores da Disney para o protagonista masculino do filme de animação A Bela e o Monstro, de 1991. Para a película de animação produzida nos anos 1990, e que retomava um velho projecto da Disney das décadas de 1930 e de 1950, o desenhador Glen Keane, responsável por conceber a figura do Monstro, mesclou elementos de vários animais, juntando, entre outros, chifres de búfalos e jubas de leões africanos, timbrados por olhos de “azul Paul Newman”. É impossível não encontrar no resultado final uma clara semelhança com o Bison bonasus: estão lá os seus chifres retorcidos, que outrora serviram de taças para os brindes ruidosos em jantares de reis e de príncipes; está lá a sua densa pelagem do pescoço e do ventre, que, erroneamente, os naturalistas Buffon e Lineu consideraram não ser uma característica autêntica do bisonte-europeu, constituindo tão-só um detalhe associado a um clima e a um habitat específicos. Discordando praticamente em tudo o que se referia ao mundo natural, o francês George-Louis Leclerc, conde de Buffon, e o sueco Carl Nilsson Linæus convergiam num ponto, a ideia de que o bisonte-europeu não era uma espécie original, correspondendo apenas a uma variante selvagem do gado doméstico. Estavam equivocados, terrivelmente enganados. Séculos volvidos, o facto de dois dos maiores cientistas da história serem desmentidos pela personagem de um filme de desenhos animados para crianças é uma prova concludente – e deliciosa – do triunfo da natureza selvagem sobre a inteligência do bicho humano.
Nas últimas semanas, os bosques de Białowieza são palco de novas caçadas. Desta feita, as presas a abater não são animais selvagens, mas humanos, os migrantes que o ditador Lukashenko, numa estratégia inconcebível, está a usar como armas no seu conflito com Bruxelas. Muitos refugiados têm morrido naquela que a revista Visão classificou há dias como “a floresta mais perigosa do mundo”, enquanto a Polónia, ameaçada, fala na construção de um gigantesco muro, orçado em 353 milhões de euros. Há sanções da União Europeia, mas nunca esqueçamos a sua dependência energética: 12% do gás usado na UE tem origem na Rússia e atravessa a Bielorrússia. A Europa, que ali começa, pode também acabar por ali. E os bisontes ancestrais, símbolo maior do Velho Mundo, são os mais ameaçados por estes desvarios dos homens. A extinção do Bison bonasus, não o duvidem, será também o fim de uma certa ideia de Europa, e dos seus sonhos de paz.
P.S. Uma parte deste texto surgiu originalmente na revista Feed, há alguns anos. A referência aos refugiados da Bielorrússia, essa, é bem actual e presente, infelizmente.
May be an image of tree and nature
Fátima Vale and 24 others
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    Carlos Fino

    Excelente artigo – como sempre, de |António Araújo. Mas a percentagem do gás russo no consumo europeu é bastante maior do que os 12 por cento referidos, talvez por lapso: ronda os 40 por cento.

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