Views: 1
Isabel Rio Novo is with Pedro Almeida Maia.
OS AÇORES, A ESCRAVA AÇORIANA E EU
Haverá uma literatura açoriana? À partida, não pareço a pessoa ideal para responder. Antes de estar casada com um homem com raízes familiares nos Açores, não tinha qualquer ligação às ilhas atlânticas. Em miúda, na escola, Portugal era ‘Portugal’ e as ditas ‘ilhas adjacentes’, um mapa com um retângulo em tons de verde e castanho e dois punhados de ilhas puxadas para junto do continente por uma espécie de artifício gráfico, a disfarçar a distância real entre aquelas e o retângulo. Já era bem crescida (mesmo muito crescida) quando apanhei o meu primeiro voo para Ponta Delgada e nessa altura, claro, já tinha noções de geografia suficientes para compreender o que era voar na direção de um arquipélago situado no meio do Atlântico. Mesmo assim, estremeci na cadeira quando a aeronave, depois de descolar do aeroporto Francisco Sá Carneiro, infletiu para o oceano e me vi, durante minutos que me pareceram horas, e antes que o avião ganhasse altitude, a sobrevoar água, água e mais água…
Desde aí, acho que compreendi um bocadinho melhor a noção de insularidade. Compreendi um bocadinho melhor Antero, sentado num banco de jardim com a sua depressão profunda, indiferente à palavra ‘esperança’ que se lia atrás dele, encostando à fronte a pistola carregada. Compreendi melhor Raul Brandão (paixão literária que herdei do meu avô), melancolicamente fascinado, aos 57 anos, com a beleza misteriosa das ilhas desconhecidas e das gentes que as habitavam.
Com uma carreira literária de dez anos, Pedro Almeida Maia, nascido em Ponta Delgada, tem vindo a construir uma obra sólida, alicerçada naquilo que, a provar-se a sua existência, corresponderia à ideia de uma literatura açoriana. A sua primeira ficção foi o romance policial Bom Tempo no Canal: A Conspiração da Energia, devedor, desde o título, da ligação à obra de escritor terceirense Vitorino Nemésio, romance em que abordou a questão da indústria da energia geotérmica do arquipélago. Seguiu-se, em 2013, Capítulo 41: A Redescoberta da Atlântida, onde Almeida Maia deu mais um contributo para o mito da Atlântida, apresentando a possibilidade de os Açores terem sido visitados por outros povos antes da época dos Descobrimentos portugueses. No ano de 2019, editou o romance A Viagem de Juno, uma distopia que coloca os Açores e o mundo no ano de 2049, enfrentando alterações climáticas adversas, numa era em que a aviação civil foi praticamente abandonada e as pessoas se deslocam em confortáveis comboios magnéticos subaquáticos. Em 2020, publicou Ilha-América, romance que aborda as questões da emigração ilegal açoriana, situando o leitor em 1960, período áureo da história da ilha de Santa Maria, contando, com base em relatos verídicos, a história de um jovem de 16 anos que se introduziu no vão da roda dianteiro de um avião, na esperança de aterrar nos Estados Unidos. O romance foi saudado pela crítica e muito bem acolhido pelos leitores.
Olhando para esta obra ficcional (e não falei nem da poesia nem da literatura infantil, áreas em que PAM já somou prémios e distinções), consigo descortinar pelo menos dois recursos fundamentais que lhe dão coerência e atestam a vontade do Autor de perseguir aquilo que, à falta de melhor expressão, podemos chamar de uma voz própria. Um deles é o tema das ilhas, que são sempre, mais do que o espaço físico em que se situam as narrativas, quase personagens. A esse respeito, concordo com a apreciação crítica de Santos Narciso, publicada no Correio dos Açores e recuperada na badana do livro: “A força da escrita de Pedro Almeida Maia reside aqui mesmo, nesta sede de infinito que mora na mensagem que nos deixa, com a ilha a ser universo que busca um universo que seja ilha.” O outro recurso que marca a voz literária do autor é a estratégia da viagem no tempo, ora em direção ao futuro, ora em direção ao passado, ambos os movimentos em busca de uma identidade.
E assim chegamos a este ‘A Escrava Açoriana’. Explica o autor na sua nota final que Rosário, a protagonista, “incorpora inúmeras narrativas autênticas…, que se podem encontrar em arquivos históricos, documentários e artigos.” Percebe-se que PAM os consultou, bem como a uma mão cheia de narrativas ficcionais sobre a época e sobre o tema, que também refere, mas aqui entra o talento do escritor, que integra com maestria, segurança e contenção a verdade histórica, não sobrepondo nunca o desejo de informar o leitor ao de lhe apresentar uma história que decorre de forma viva, fluida e emotiva, prendendo-o desde as primeiras linhas, e que o faz recuar até ao último quartel do século XIX, quando centenas de açorianos embarcavam para o Império do Brasil, aliciados por promessas de enriquecimento, quase sempre para trocarem um mal que conheciam por outro pior e desconhecido, dando por si a trabalhar e a viver em condições extremas, pouco melhores do que aquelas que suportavam os escravos.
A escravatura branca açoriana foi uma dura realidade e ainda persiste na memória coletiva dos ilhéus. Nesse ponto, posso relacionar-me com uma realidade que conheço bem, pois as minhas raízes são minhotas, e também do Minho partiram para o Brasil e para os países da América do Sul gerações e gerações de portugueses pobres, assediados pelos engajadores, em busca de um futuro melhor. Os que voltavam ricos construíam palacetes de gosto duvidoso, compravam títulos de barão e eram chamados de brasileiros. Mas muitos, a maioria, voltavam tão pobres como quando tinham embarcado, e isso quando voltavam.
No romance de PAM, a protagonista, a adolescente Rosário, abandona Ponta Delgada rumo ao Império do Brasil, açorada por partir. Sente-se presa à miséria de uma ilha marginal em relação a um Reino já de si marginal face ao resto da Europa, endividado, decadente (ainda há pouco lembrei Antero, contemporâneo do tempo desta narrativa, ele que tanto escreveu sobre a decadência da nação). A seu modo, cada qual com a sua história, sentem-se igualmente presos às respetivas ilhas os passageiros clandestinos que embarcam às centenas, com Rosário e a mãe, no Lidador, o vapor transatlântico que transporta com todos os confortos do século os passageiros oficiais, acomodados nos seus camarotes, e, como animais enjaulados, os passageiros clandestinos. Ingénuos todos eles, ingénua Rosário. Da ilha fechada com mentalidades estreitas, onde é obrigada a usar o capote e capelo (no Porto daquele tempo o traje feminino era igualmente tristonho e chamava-se bioco), a adolescente vê-se no porão escuro do navio, primeiro, espécie de albergue flutuante, depois, à medida que o Lidador vai recolhendo cada vez mais emigrantes, ilha após ilha, viela sem saída, sobrelotada, onde grassam a fome, a sede, a imundície, as doenças contagiosas, a promiscuidade. Finalmente, Rosário desembarca no Rio de Janeiro, cidade de praias extensas, avenidas largas e vistosas, gente descontraída e com pouca roupa, mas onde a jovem se verá sempre confinada, primeiro no quartinho do cortiço que partilha com Fevereira, a rapariga pobre como ela, com feições de boneca de porcelana, depois…, depois… Enfim, não querendo contar tudo, posso dizer-vos que Rosário foge de cárceres sucessivos, como se, tal como todos os habitantes dos Açores (diz a voz narradora na pág. 55), também ela vivesse fechada na própria cegueira da fuga.
Ao longo da sua errância e das suas aventuras e desventuras, Rosário transporta consigo uma imagem de Nossa Senhora da Conceição e um terço, símbolos da religiosidade que também marca a sua identidade de habitante das ilhas, e um exemplar do romance Amor de Perdição, que lhe proporciona a ilusão da evasão através da leitura. Indício funesto, se pensarmos que o romance de Camilo é uma narrativa de paixões desmesuradas e de escolhas de vida infelizes…
Apesar de tudo o que até aqui possa ter dado a entender, Rosário, mais do que personagem coletiva, é verdadeiramente uma protagonista, um caráter feminino digno de ombrear com algumas das figuras fortes das mulheres da nossa literatura. Bela, irreverente, violenta, sensual, feminista antes do feminismo, incorpora traços de mulheres açorianas reais, contemporâneas do tempo da história, como por exemplo a minha velha amiga Alice Moderno (que gostei de reencontrar por estas páginas), jovem escritora e jornalista que, em pleno século XIX, ousou cortar o cabelo à rapaz, vestir-se com acessórios masculinos, defender a causa das mulheres e afrontar a sociedade micaelense vivendo com outra mulher escritora. Também Rosário teve os seus sonhos: ser independente, mulher rica, amada, respeitada, com família. A realidade, que tem o costume de contrariar as expectativas dos homens, e ainda mais os das mulheres, como aponta a voz narradora, cuja identidade, aliás, é revelada nas páginas finais do romance, a realidade será bem diferente. Ou não… Terão de ler. De partida em partida, de regresso em regresso, a verdadeira viagem de Rosário é a da sua existência e a da procura da sua identidade, ao longo de décadas em que também assistimos ao desfile de acontecimentos históricos, epidemias, conflitos armados, visitas régias, atentados…
Comecei por questionar se haverá uma literatura açoriana. A crer no romance de PAM, há, pelo menos, uma série de aforismos açorianos. Por exemplo: «A ilha escolhe o ilhéu.» Ou: «Se os Açores são ilhas vulcânicas, os açorianos são as suas cinzas espalhadas pelo mundo.» Ou: «Para encontrarmos a nova ilha que somos, é preciso afastarmo-nos do continente que já fomos.» Ou ainda: «Um navio também é uma ilha.» Perguntem à biógrafa de Agustina se aprecia aforismos, e perceberão o quanto me deliciei com estas verdades lapidares, apenas uma das faces visíveis da escrita enxuta e segura do autor, rica sem exibição gratuita de vocábulos complicados, poética sem inflações metafóricas.
Se há uma literatura açoriana, que teve e tem em Antero de Quental, Vitorino Nemésio, João de Melo alguns dos seus maiores vultos, ela encontra agora em Pedro Almeida Maia uma das suas vozes para o futuro. Depois de ter lido a história de Rosário, compreendo bem melhor Antero, e Raúl Brandão, e todos os outros. Hoje já não me surpreendo nem estremeço na cadeira se o meu avião descolar e infletir rapidamente na direção do oceano, na direção das ilhas. Aguardo ansiosa, Pedro, pela próxima viagem.
![May be an image of 2 people, people sitting and indoor](https://scontent.fpdl1-1.fna.fbcdn.net/v/t39.30808-6/293290878_3298606363685877_2372338231862697111_n.jpg?stp=dst-jpg_s1080x2048&_nc_cat=101&ccb=1-7&_nc_sid=730e14&_nc_ohc=DuPEMNCUHroAX9xQTSl&_nc_ht=scontent.fpdl1-1.fna&oh=00_AT_NXAy4qIsrr8e9xY436-weoFLUQwFpq6VW9VzRlwCbEw&oe=62DA1C1D)
3 comments
Like
Comment
Share
3 comments
- Odete FerreiraSou muito grata pir esta partilha. Excelente!!!Parabéns
. Beijinho
- Like
- Reply
- 28 m
- Like