Views: 0
Vincente Minnelli, nascido Lester Anthony Minnelli, em Chicago, em 1903, foi um dos grandes cineastas da era dourada de Hollywood. Conhecido principalmente pelos seus musicais, em particular os clássicos “Gigi” ou “Um Americano em Paris”, Minnelli foi, também, um mestre do chamado melodrama, tendo realizado dois extraordinários filmes do género, em que o cenário narrativo era a Segunda Guerra Mundial, os magníficos “Deus Sabe Quanto Amei”, com Frank Sinatra, Dean Martin e a sensacional Shirley MacLaine, um sucesso de crítica e de bilheteira, e o menos conhecido e desastroso fiasco comercial mas igualmente belo e poderoso “Quatro Cavaleiros do Apocalipse”, com uma fantástica banda sonora do fabuloso André Previn.
Protagonizado por Glenn Ford, o filme conta a história de uma família Argentina dividida nos dois lados de uma Paris ocupada pelos Nazis. Ford interpreta Júlio, um playboy diletante e hedonista, equidistante das agruras e das ideologias da guerra que, por amor, naturalmente, acaba por se envolver com a Resistência Francesa. A trama do filme, baseado no romance homónimo do escritor espanhol Vicente Blasco Ibáñez, aponta-nos para como a Guerra, uma das bestas do Apocalipse, junto da Peste, a Fome e a Morte, para além de serem destruidores de mundos, ser, essencialmente, destruidora de famílias, de figuras humanas individuais, colocando irmãos contra irmãos, rompendo ligações entre pais e filhos, maridos e mulheres, desagregando o tecido mais profundo e íntimo das relações entre seres humanos e, com isso, desestruturando a própria tecitura da humanidade. Os mesmos dramas a que vamos assistindo hoje, nos intermináveis directos dos telejornais, nos vídeos das redes sociais, nos comentários martelados e repetitivos dos especialistas da Peste e da Guerra, agora, com Putin lançando a destruição sobre, nas suas próprias palavras, o “povo irmão” da Ucrânia.
No início do filme, Júlio Madariaga, o velho patriarca da família, um orgulhoso gaucho das pampas argentinas, ao descobrir que um dos seus netos se alistara no partido Nazi, tem uma visão dos quatro cavaleiros do apocalipse e morre nos braços do seu neto Júlio. Numa espécie de auto infligida eutanásia emocional, passe o pleonasmo, perante a premonição do mal e da destruição que se aproxima, tanto para o mundo como, e principalmente, para os seus. Esta visão pessoal e individualista dos grandes movimentos da História procura alertar-nos para que a presença do mal está dentro de cada um de nós e que é também individualmente que o devemos combater, muitas vezes com o máximo sacrifício pessoal, mas com o poder das nossas escolhas. É, também, um alerta para essa verdade universal de que a Guerra não é feita de exércitos e generais, de grandes movimentações de tropas e decisões táticas e estratégicas de ditadores. A guerra é feita de indivíduos, das suas dores pessoais e dos seus sonhos destruídos e dos seus gestos dolorosos.
O romance de Ibáñez é passado no cenário da Primeira Guerra Mundial. Minnelli coloca o seu filme no teatro dramático da Segunda. Mas, se quisermos podemos recuar tão longe quanto o próprio Livro do Apocalipse e o Evangelho de João, ou ainda mais longe, à origem do bem e do mal, Zaratustra e a invenção de Deus. Ou, podemos imaginar Vladimir Putin, na solidão majestática do Kremlin, assistindo fria e esfingicamente ao filme de Minnelli, ou, mais provavelmente, a esse outro grande clássico do cinema mundial, O Couraçado Potemkin, do incomparável Eisenstein, e à revolta dos marinheiros de Odessa, na costa mortificada do martirizado Mar Negro. Podemos imaginar Putin, ruminando, como Caim antes dele, a destruição dos seus “irmãos” ucranianos ou, noutro grande filme ainda, a perda, mais íntima e profunda, que nem a construção de um império pode colmatar, a perda interior de Charles Foster Kane, tal como Putin, provavelmente, também, e a perda da sua “rosebud”, da sua infância e da sua inocência.
Nenhum Governo, nem nenhum Tirano, têm o direito de descarregar as bestas do apocalipse sobre o seu povo, seja a Guerra, a Peste, a Fome ou a Morte, e, como séculos, milénios, de arte e de pensamento nos ensinam, uma e outra vez, é no arbítrio individual, no coração íntimo de cada um de nós, que se esconde a força da salvação e desses outros quatro cavaleiros, dons maiores da condição humana, os dons da Paz, da Poesia, da Beleza e da Liberdade. #SlavaUkraini 

2 comments
1 share
Like
Comment
Share
2 comments
- João ValenteEstes teus textos, caro Pedro, têm sido um oásis nestes tempos sombrios. O lapso freudiano que te levou a trocar o Mar Negro pelo Morto é sintomático do cavaleiro que nos paira sobre a cabeça. O fim da história é um permanente recomeço e o nosso espanto (o horror) está refletido no olhar daquela mãe a ver o carrinho do bebé a descair pelas escadarias de Odessa.
4
- Like
- Reply
- 2 h
- Edited
