orgulho e desconfiança Nuno Costa Santos)

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(Um retrato perfeito do açoriano em tempo de pandemia, pelo escritor e colaborador do Diário dos Açores, Nuno Costa Santos)

Crónicas do Corpo Santo
Orgulho e Desconfiança

Estreia do filme “A Viagem Autonómica”, no qual um estudante, Gonçalo Cabral, protagonizado pelo actor Frederico Amaral, faz um périplo pelos Açores para conhecer a História do arquipélago e as suas conquistas, ao longo dos anos, políticas, sociais e culturais. Visita locais determinantes para as reivindicações, fala com personalidades várias (mais de 50), vive situações de ficção, partilha, em off, os seus conhecimentos e as suas conclusões.
O Teatro Micaelense cheio nesse dia 2 de Março de 2013. Representantes do Governo Regional, convidados institucionais de diversas tendências políticas, cidadãos comuns, figuras das mais diferentes áreas, atraídas pelo trailer que circulou com impacto na internet.
Vamos sentindo, eu e o meu companheiro de empreitada, Filipe Tavares, sentados ao lado um do outro, que os espectadores seguem o filme com atenção apaixonada. Não sabíamos qual seria o impacto – até porque sabemos da exigência dos açorianos. Partilhamos com palavras breves, ditas em voz baixa, a alegria em perceber que estávamos a tocar as pessoas.
Quase no fim do filme, que o Filipe levou depois a todas as ilhas, um instante inesquecível para todos: cresce sobre a imagem da bandeira dos Açores a versão de António Zambujo e das Vozes Búlgaras de “Chamateia”, canção com letra de António Melo Sousa e música de Luís Alberto Bettencourt, e há um súbito arrepio na sala, assobios de festa, uma comoção que se alastra pela plateia e pelo balcão. Uma manifestação comunitária, sem preparação nem ensaios, do orgulho em ser açoriano (não, aqui não há medo de se usar a palavra orgulho, hoje vítima do dicionário polticamente correcto, em ser-se desta terra). O orgulho ali, naquele momento, não foi manifestado através de palavras. Foi um som festivo com origem em várias vozes, distintas e até nalguns casos rivais, unidas por um mesmo sentimento. A manifestação de uma alegria em ser deste lugar, desta cultura, deste modo basáltico de ser. Em estar apegado a um território que teve se fazer valer antes de mais a si próprio para sobreviver e crescer. A mesma felicidade que ouvi, em modo sóbrio, reflectiva numa pequena história particular, aqui partilhada.
Conto o episódio. Sala de jantar da casa dos meus pais, São Miguel, Livramento. À mesa estão dois amigos deles – antigos, cúmplices de partilhas juvenis e companheiros de encontros semanais há 40 anos. Chego com um livro que documenta, com fotografias e texto, a passagem de Frank Sinatra pelas ilhas dos Açores (Santa Maria e Terceira), em 1945, para subir a um palco, no contexto de uma digressão feita para os militares aliados durante a II Guerra. A amiga comenta, com um sorriso: “Foram tantos os que passaram por cá. E nós ficámos sempre. Já viste?”. Mais do que fixada em teorias e intelectuais elucubrações, ali estava uma verdadeira manifestação da autonomia e da independência de espírito açorianas. Apaziguada e com um travo de ironia. O orgulho calmo de quem, vivendo há muito nos Açores, já viu muita gente pousar e levantar voo. Alguma dela com fama mundial.
Fascina-me esta nossa têmpera e admiro a vocação para não nos deslumbrarmos com as flashadas vindas do exterior, com as novidades fáceis, com os gestos de quem, chegado de longe, aterra com a ideia de que vai impressionar. Não terá sido o caso de Frank Sinatra mas é o de muitos outros. Há uma expressão que um amigo meu emprega e que representa bem a forma como muitos açorianos olham para quem chega às ilhas com a ideia de que vai deslumbrar as gentes. Quem com esta empáfia aterra é classificado como paraquedista. Em ilhas, habituadas ao longo dos séculos à chegada e à partida de tantos, existe essa distância e até essa desconfiança, dirigida a anónimos e figuras públicas.
Essa desconfiança alastra-se – e pude comprová-la na pele – em relação a quem, sendo de dentro, vive fora. Essas pessoas acabam por não ser consideradas de dentro. Vivendo no continente ou no estrangeiro, são, para uma volumosa parte dos que ficaram, paraquedistas Essa condição é, justamente, sentida-julgada ofensiva por quem teve de sair e, muitas vezes, magica com a possibilidade de regressar. Penso que não se alterá com o tempo. O melhor é aceitá-la como uma paisagem emocional que não mudará.
O orgulho, sabemos, revela-se também na forma como são mal aceites os olhares críticos dos de fora. As gentes unem-se contra esse inimigo exterior. É uma manifestação de defesa, de controlo do território, do gesto de proteger a família. Os açorianos – e basta dar uma volta pelo facebook para percebê-lo – defendem-se guerreiramente de ataques externos. Cada crítica é vista como uma invectiva. Mas são ao mesmo tempo capazes de ser demolidores para si próprios. São muito críticos – vulgo “bota-abaixo” – de muitos aspectos da vida açoriana e desunem-se, mesmo dentro de cada ilha, com alguma frequência (veja-se o caso recente da brutalidade de comentários de ódio que tem emergido nesta pandemia) mas, quando vêem alguém de fora apontar um defeito, eriçam o pelo e atacam. Um exemplo: aquando de uma reportagem da TVI sobre o Corvo, o tom neorealista, apenas centrado na pobreza, no abandono e na solidão, teve muitas reacções negativas açorianas. A legendagem do discurso dos nativos é considerada uma ofensa – mesmo que, nalguns casos, possa ser usada por questões práticas, no caso das mais fechadas variações do sotaque micaelense. É a suceptibilidade, filha da paixão, de quem vive no meio do Atlântico.
Percebe-se bem aqueles que, vivendo nos Açores, se querem proteger das ideias feitas de açorianidade pitoresca, com todos os seus clichés. O arquipélago é diverso, plural, está muito para além da imagem que demasiadas vezes se quer vender nos media continentais e estrangeiros (veja-se o caso das reportagens do El País sobre Rabo de Peixe). Se não fosse essa resistencia e esse melindre, se não fosse o amor dos açorianos pela sua terra, as teimosias frequentes, a vontade de afirmação, as reivindicações, o arquipélago não seria o que é. Mesmo considerando o distanciamento cultural entre as ilhas, mesmo questionando o conteúdo real do estatuto autonómico, mesmo assumindo as fragilidades económicas, seriam mais uma terra da interioridade, desta feita atlântica, lembrada de quando em vez a propósito de temporais e turismos. Alguém tem dúvidas sobre isso?

Nuno Costa Santos
Diário dos Açores 21-05-2020

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Comments
  • António Raposo Gosto, claro que gosto. Não, não gosto é dos “paraquedistas” que aterram aqui e acham-se “donos disto tudo, muitos com a “coberturas dos poderes”. Não, não gosto dos discursos miserabilistas de alguns orgãos de comunicação social do continente (também os há por cá…!!!). Não, não gosto das legendas quando entrevistam alguém de um local em que a pronúncia é “mais cerrada”…e não gosto porque no continente também há zonas do país onde também a dicção não é famosa e não vejo legendas aí…!!! Sim gosto, gosto muito da multiculturalidade e da diversidade de ideias, de opiniões ou de pronúncias… Sou duma terra (concelho do Nordeste) onde se consegue identificar quase todas as freguesias com pronúncias diferentes… Como são bonitas e diferentes as nossas pronúncias…!!! É só perguntar ao grande Victor Rui Dores (que também já “andou” por várias ilhas…!!!Vivi no Canadá (alguns meses), em Lisboa 6 anos, em Cascais 4 anos,, na Terceira 2 anos e no Faial 3 anos. Já trabalhei em 5 ilhas dos Açores…!!! Sei o que é ser açoriano ( sim, sim senhor e não é necessário ter nascido aqui…). O importante é o sentimento de ORGULHO EM SER AÇORIANO, claro que com alguma desconfiança em especial dos “paraquedistas” / oportunistas. OBRIGADO NUNO. Aquele abraço…virtual.