O velho que lia romances de amor

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Leonete Botelho
leonete.botelho@publico.pt
17 de abril de 2020

O velho que lia romances de amor

Hoje vamos ter de falar da morte. Olhá-la de frente, porque é para a evitar que estamos em casa. Mas não conseguimos evitar a sua voracidade. As pessoas morrem-nos sem que possamos fazer nada – em tempos de pandemia, sem sequer as ver uma última vez. Esta semana morreram-nos tantos… O Luís, a Maria, o Rubem, o Filipe são só alguns deles. Imagine-os sozinhos nos últimos momentos de vida, porque apesar da presença constante de médicos e enfermeiros dedicados, é assim que eles morreram — sozinhos, e sem as cerimónias fúnebres a que teriam direito noutro momento qualquer. Triste maneira de partir e ver partir…

O sistema imunitário foi o seu objecto de estudo toda a vida. Trabalhou até ao fim e o fim veio mais depressa por isso. Maria de Sousa morreu na terça-feira, aos 81 anos, nos cuidados intensivos do Hospital São José (em Lisboa), vítima de covid-19 e depois de uma semana de internamento. Professora emérita da Universidade do Porto, a imunologista escrevera, nas últimas semanas, que “o vírus não é o inimigo, nem uma pandemia é uma guerra. O vírus é uma pequena partícula que precisa de entrar nas células para se manter e se propagar. O inimigo não é o vírus, o inimigo é a pessoa que se mantém suficientemente próxima de outra para dar a oportunidade ao vírus de saltar de uma célula para outra.”

Tivesse tido Luis Sepúlveda a oportunidade que teve O Velho que Lia Romances de Amor, e teria disparado o tiro certeiro sobre o coronavírus no momento exacto do salto – como José Bolívar fez à onça de olhos amarelos -, salvando-se a si próprio. Mas isso só seria possível com o poder regenerador da literatura, onde Bolívar buscava “palavras tão bonitas que às vezes lhe faziam esquecer a barbárie humana”.

Barbárie como aquela que Rubem Fonseca retrata em Feliz Ano Novo, no conto violento que dá nome ao livro censurado pela ditadura militar brasileira e que o regime de Bolsonaro voltou a colocar no seu índex há meses atrás. O escritor que gritava vivas à língua portuguesa, Prémio Camões 2003, criador do detective privado Mandrake, tinha 94 anos quando morreu na quarta-feira de um ataque cardíaco.

Filipe Duarte tinha só 46 anos e também foi subitamente traído pelo coração. O actor que deu corpo na televisão ao Luís Bernardo Valença criado por Miguel Sousa Tavares na adaptação de Equador, era um dos rostos mais versáteis e regulares na televisão, no teatro e no cinema português e em várias séries espanholas. Quase consigo ouvir a sua voz, se tivesse interpretado Bolívar, o velho que nunca chegou a ser: “Não parto tranquilo, compadre. Vou-me como um triste pássaro cego, a esbarrar nas árvores….” Cedo demais.

Maio, maduro Maio

Maria de Sousa foi uma das 657 pessoas que já morreram em Portugal por covid-19. Até esta sexta-feira, há 19.022 casos registados, 181 identificados nas últimas 24 horas, o que corresponde a uma taxa de crescimento de 1%, a taxa de crescimento mais baixa desde o início do surto. Portugal mantém-se assim como um dos países com menor incidência da doença e desengane-se quem pensa que é por falta de testes.

Portugal passou a ser, em apenas um mês, um dos países do mundo que faz mais testes de diagnóstico do novo coronavírus por milhão de habitantes. Na quarta-feira estava entre os dez primeiros países do mundo no ranking da Worldometers (que actualiza ao dia estes dados para todos os países), bem acima da Coreia do Sul e apenas um lugar abaixo da Alemanha. Desde 1 de Março e até quarta-feira foram feitos mais de 208 mil testes, o que dava 20.430 por milhão de habitantes (menos 200 que a Alemanha).

Mas há outras razões para o “milagre português”, como já foi considerado na imprensa internacional, e não são boas. Segundo os especialistas, a par da declaração atempada do “estado de alerta” que ajudou a conter o vírus nas zonas urbanas, parte do sucesso português decorre de fragilidades e assimetrias que, noutras circunstâncias, fariam o país corar de vergonha. Como o isolamento dos idosos e a falta de coesão territorial, marcada por um arreigado despovoamento do interior, ou o baixo nível cultural que favorece a “domesticidade” e a cultura do ecrã.

Seja como for, as boas notícias vão aumentando a expectativa de que a luz ao fundo do túnel brilhe em Maio. Esta semana, ao renovar o estado de emergência por mais 15 dias, Presidente da República e primeiro-ministro acenaram com a saída gradual, progressiva e diferenciada do confinamento no próximo mês. Ainda não há um plano, mas o esboço já foi revelado pelo primeiro-ministro no Parlamento e prevê a abertura de creches e trabalho à vez. Uma prova de boa vontade é a permissão para as comemorações do 1º de Maio, ainda que com restrições.

A abertura ao exterior demorará mais algum tempo. Esta sexta-feira, o Governo prolongou a interdição de voos por mais 30 dias. Além dos países da UE (excluindo Espanha e Itália), só há excepções para os países de língua portuguesa, o Reino Unido, EUA, Venezuela, Canadá e a África do Sul, “dada a presença de importantes comunidades portuguesas”.

As democracias também adoecem

Para que permitir um lento regresso à normalidade, há países onde se tornou obrigatório o rastreio dos infectados ou suspeitos por georreferenciação, através do telemóvel. Será que vamos aceitar ser mais vigiados em troca de maior protecção da nossa saúde, do mesmo modo que aceitámos ser mais monitorizados depois dos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001 em troca de maior segurança? A Bárbara Reis debruçou-se sobre o assunto e ouviu um conselho: “É preciso vigiar quem tem poder de vigiar”.

Na União Europeia, já há regras para este tipo de monitorização e são claras: as aplicações criadas para travar a propagação de covid-19 através de alertas de proximidade não podem revelar a identidade da pessoa infectada — apenas avisar o utilizador que este deve ficar em isolamento e ser testado caso comece a apresentar sintomas. Os países europeus também não podem obrigar as pessoas a instalar aplicações para combater a covid-19 e os dados recolhidos devem ser todos anonimizados.

Em Portugal, a discussão também tem sido feita, mas há um consenso alargado sobre a necessidade de preservar a privacidade neste tipo de ferramentas. O que parece comprovar a tese do investigador Tiago Fernandes que defende que um dos principais segredos do sucesso da nossa democracia é o consenso vigente em torno das liberdades (e não só). Portugal subiu três lugares no ranking das democracias liberais do V-Dem Institut nos últimos três anos e está já em sétimo lugar, atrás apenas da Dinamarca, Estónia, Suécia, Suíça, Noruega e Bélgica.

Estamos, porém, em contraciclo com a tendência global de redução das liberdades. Os investigadores estão particularmente preocupados com o futuro dos regimes democráticos depois das medidas securitárias e restritivas de direitos que quase todos os países do mundo têm adoptado para combater a pandemia de covid-19. E têm razões para isso. Afinal, esta situação excepcional acontece num momento em que o mundo conhecia já um avanço global dos regimes autoritários, de tal forma acentuado que 2019 terminou com uma péssima notícia: as autocracias destronaram as democracias e tornaram-se já os sistemas políticos dominantes.

Mundo ao contrário

As reacções à pandemia podem acelerar ainda mais esta vaga e promovê-la em países até então imunes, ou cujas democracias tenham sofrido alguma erosão nos últimos anos, como os EUA ou o Brasil. Nesta entrevista, Daniel Ziblatt, professor na Universidade de Harvard e co-autor do livro Como Morrem as Democracias, compara Donald Trump com o Presidente da Hungria: “Viktor Orbán teve dez anos para desmantelar as instituições democráticas. Trump teve quatro. Mas ele está a atacar as instituições democráticas dos EUA todos os dias e, lentamente, está a desmantelá-las.”

O mesmo se pode dizer em relação às instituições das Nações Unidas. Desta vez, decidiu cortar o financiamento à Organização Mundial de Saúde e há quem veja nisso “um crime contra a humanidade”. Foi o que escreveu Richard Horton, director da importante revista médica The Lancet: “Todos os cientistas, todos os trabalhadores da área da saúde, todos os cidadãos devem resistir e rebelar-se contra esta traição atroz contra a solidariedade global.”

Mais a Sul, o Presidente brasileiro acabou mesmo por demitir o seu ministro da Saúde. Jair Bolsonaro e Henrique Mandetta estavam em rota de colisão por causa das medidas de isolamento social que o ministro defendia e o Presidente criticava. A saída de Mandetta deverá deixar o Governo enfraquecido politicamente, já que as sondagens mostram que a maior parte dos inquiridos estava contra a demissão do ministro.

Mais de um mês após os primeiros casos confirmados de covid-19, o Brasil começa a sentir o impacto no sistema de saúde da pandemia, parecendo confirmar a tese de que apenas um pequeno número de casos de infecção está a ser notificado. Em estados como o Amazonas, Ceará e Pernambuco, a capacidade de internamento está quase esgotada, apesar de um número baixo de casos confirmados da doença. Em São Paulo, estima-se que o sistema hospitalar público entre em colapso no próximo mês.

Entretanto, cá em casa…

Os avós estão muito tristes e sentem-se muito sós. Se não sabíamos ainda, este estudo do Observatório da Solidão, do Instituto Superior de Ciências Empresariais e do Turismo, sobre a forma como a pandemia é vivida e sentida pelos portugueses, deixa-o bem claro: é entre os mais velhos que a pandemia parece ter efeitos mais nefastos do ponto de vista psicológico e comportamental. E isso reforça a necessidade de criar ferramentas para dar apoio a esta população. E se lhes enviássemos uns romances de amor, daqueles como Bolívar gostava, muito intensos, muito tristes, mas com final feliz?

Os mais novos podem sofrer menos de solidão, em parte graças à tecnologia, mas o confinamento trouxe novos desafios também para para pais e filhos. Para os ajudar, a Ordem dos Psicólogos criou um Guia para Pais e Cuidadores que ajuda a gerir a logística dos estudos que, neste 3.º período, serão em casa para a maioria dos alunos portugueses. Isto porque “isolamento não é estar de férias”.

Rodrigo e Mathilde encontraram a sua própria estratégia para sobreviver, eles e os dois filhos pequenos, à clausura desta família com alma de viajante. Todos os dias viajam com os filhos pelo mundo sem sair de casa, recriando cenários nas divisões da casa e fotografando as “aventuras” que depois partilham no Instagram. Os miúdos estão tão felizes que a primeira coisa que perguntam mal acordam é ‘onde é que vamos hoje?’.

Hoje vamos visitar o Jardim da Europa, na Holanda, um pouco a sul de Amesterdão. Ali foram plantados, no ano passado, sete milhões de bolbos de narcisos, jacintos e 800 variedades de tulipas, ao longo de 32 hectares de campos frondosos, onde não faltam árvores, lagos, pontes de madeira e moinhos tradicionais holandeses. O Parque de Keukenhof previa atrair mais de um milhão de visitantes em 50 dias (é uma exposição floral que se exibe apenas na Primavera). Dadas as circunstâncias, desta vez é ao contrário: deram-nos um milhão de flores nestas fotografias.

Estas são para todos aqueles que morreram sem flores nesta Primavera triste de 2020. Flores para Maria, para Luís, para Filipe, para Rubem e para todos os outros que, como n’As Rosas de Atacama, estiveram cá mas ninguém contou a sua história.

Bom fim de semana!

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