o soneto perdido de camões

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A PROPÓSITO DE UM “NOVO” SONETO DE CAMÕES
Pere Ferré
Opinião/ DN
Quiçá seja necessária aqui uma advertência fundamental: em primeiro lugar, a admiração pelo homem, escritor e ensaísta Nuno Júdice é inquestionável; em segundo lugar, o prazer de poder manter um salutar diálogo público (sem sórdidas farpas ou anonímias) é para mim um gosto, pois conversar com o meu muito estimado Nuno Júdice não só é uma honra como um gosto. Vamos então por partes.
Li apenas no passado dia 14 do corrente mês, graças a advertência amiga, uma notícia publicada no DN/LUSA, em formato digital, que afirmava o seguinte: “O poeta, professor e investigador Nuno Júdice disse esta quarta-feira à agência Lusa ter descoberto um soneto de Luís de Camões, “Cristo Atado à Coluna”, num manuscrito datado de 1666, editado por Manuel de Faria, no século XVIII [sic]”. Acrescentava, ainda, a referida notícia que “Nuno Júdice afirmou que o poema é atribuído a Camões e a autoria não lhe suscita dúvidas, apesar de uma possível edição implicar “o trabalho de especialistas”.” Por fim, escreve-se que “O manuscrito foi encontrado pelo investigador na Biblioteca Digital Hispânica [da Biblioteca Nacional de España], onde se encontram vários outros poetas “do barroco, que merecem ser melhor estudados”.
De facto, esta notícia não era de somenos importância, dado que revelaria a aparição de um manuscrito desconhecido e que o mesmo deveria, inequivocamente, ser incluído no cânone camoniano. Apontava ainda que o mencionado manuscrito fora exumado pelo Doutor Nuno Júdice, bem como alertava para o facto de “uma possível edição implicar “o trabalho de especialistas”.” Estas afirmações suscitaram-me, contudo, alguma perplexidade, dado que recordava que o mencionado poema não só não era desconhecido como já fora editado e, pelo menos num caso, incluído entre os sonetos camonianos.
Gostaria de salientar que o poema “Se misericórdia e amor não vos atara”, atribuído no manuscrito em causa a Luís de Camões e conservado na Biblioteca Nacional de España, no fólio 36r (numeração a lápis) do Cancionerorecopilado por Don Manuel de Faria. Dedicado al Conde de Haro. En 1666 (ms. 3992), é há muito tempo conhecido. Aliás, este códice foi e continua a ser objeto de polémica sobre quem é este Manuel de Faria: teria sido o clérigo e poeta lisboeta, membro da Academia dos Generosos e da Academia dos Singulares? Ou como sustenta Jorge de Sena, com a sua característica genialidade e erudição, Manuel de Faria e Sousa, contrariando, por esta via, Carolina Michaëlis de Vasconcelos e o editor moderno deste livro, Edward Glaser? Independentemente de quem foi este Faria, Glaser editou, pela primeira vez, em 1968, o soneto.
Acrescente-se que, na mesma biblioteca madrilena, se guarda, também, o ms. 4152, com o título Obras poéticas de diferentes personas, en Portugués y en Castellano, sem data, mas atribuído de igual modo ao século XVII. Este cancioneiro mantém, sem dúvida, uma íntima relação como antes mencionado e só porque nesta breve nota não me parece oportuno incomodar o Leitor com minúcias ecdóticas, indispensáveis para os especialistas, mas prescindíveis para o público em geral, não aprofundarei este tema. Ora, como corolário desta íntima relação, noms. 4152 voltaremos a encontrar o mesmo poema assinalado como sendo de Camões “De Luís de Camões a Cristo atado à coluna” (atualizo a ortografia).
Não fica, porém, a divulgação do referido soneto isolada nos anos 60 do passado século. Por vicissitudes várias, voltará a ser publicado mais uma vez, agora numa magna edição de Cleonice Berardinelli (Sonetos de Camões, Braga, 1980), com o número 399, tomando por fonte Glaser. Atribuiu a académica brasileira este soneto a Luís de Camões, pese embora nunca explicitar as razões que a levavam a contrariar as mais abalizadas opiniões sobre a exclusão do poema no cânone, nomeadamente a categórica rejeição de Jorge de Sena (leia-se o seu “Cancioneiro de Manuel de Faria (e Sousa)” estampado, de novo, nos Trinta Anos de Camões, I, Lisboa, 1980), entre muitos outros camonistas. No fundo, a edição Berardinelli acabava por se justificar pretendendo reproduzir, segundo as suas próprias palavras, “todos os sonetos alguma vez ditos de Camões, de que tivemos notícia. Ao decidir dar-me tal amplitude pensávamos na dificuldade de o leitor interessado (…) ter acesso às edições que incluíram, mais ou menos arbitrariamente, textos cuja autenticidade é discutível. Discutível, não definitivamente negada ou afirmada, pois que o aparecimento de manuscritos já tem alterado o juízo que se formava;” (p.50). Lamentavelmente, nas suas notas, não nos ofereceu claras razões para se entender a presença de certos textos não canónicos, como, infelizmente, o nosso “Cristo atado à coluna”.
Por tudo o que expus, da forma mais ligeira que consegui, creio ter dado conta de que o “novo” soneto camoniano já era conhecido; foi publicado por especialistas e não encontrou, por enquanto, o suficiente apoio dos camonistas para o incluírem no seu cânone.
Uma última nota que gostaria de incluir, antes de terminar: os problemas de autoria vária atribuída nos séculos XVI e XVII não são um exclusivo de Camões, nem da literatura em Portugal. Sem ir mais longe, na literatura castelhana deste período, amiúde por razões comerciais, eram atribuídas peças (que eles nunca escreveram) aos mais famosos expoentes da arte dramática, pois com a sua fama adquiriam os impressores proveitosos lucros. Por sua vez, não esqueçamos que o “diálogo” intertextual entre grandes poetas atingia proporções ciclópicas. Mais, como Aguiar e Silva bem notou, o código petrarquista marcou de tal forma a época de Camões (com as suas consequentes constantes imagísticas, estilísticas, retóricas…), que se torna “radicalmente aleatória qualquer tentativa para estabelecer, com base em analogias ou afinidades estilístico-temáticas, o carácter canónico, ou não, de um poema ou de um conjunto de poemas.” (Camões: Labirintos e Fascínios, Lisboa, 1999, pp. 94-95).
Finalizo com o tantas vezes repetido errare humanum est (e por isso sei o quanto tenho de me penitenciar); todavia, julgo ser necessária uma melhor e mais aguda frase; e aqui aproveito para convocar o grande príncipe da Bibliografia, especialmente no âmbito dos cancioneiros, romanceiros e folhetos de cordel quinhentistas e seiscentistas, a quem tanto deve o saber académico internacional, D. Antonio Rodríguez-Moñino. Recordando palavras suas concluo, repetindo algo que ele nunca se cansou de afirmar: “En Bibliografía lo más fácil es errar”.
Professor Honorífico da Universidade Complutense de Madrid
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