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O SALTO
Luís Castro Mendes
Opinião
Ubi libertas ibi patria.
Ovídio
Vemo-los nas fotografias de Gérard Bloncourt, datadas dos anos 1960: viviam nos bidonvilles à volta das cidades de França, em condições miseráveis, trabalhavam como pedreiros e mulheres-a-dias nessa França dos “trinta gloriosos” anos de crescimento económico (1945-1975), um país que se reconstruía e transformava dia a dia. Eles eram os peões e os párias nessa sociedade e eram desprezados com o fino desdém que a França reserva aos metecos.
Em duas ou três gerações mudaram, como o seu país de origem mudou. Essas transformações nem sempre foram mutuamente percebidas. Na escola pública em Paris, ainda em 1990, um menino português garantia às minhas filhas que em Portugal não existiam cinemas nem supermercados, apenas aldeias perdidas nas serras, numa das quais ele se aborrecia perdidamente durante as férias. Hoje tal imagem não existe nem poderia existir, porque os jovens portugueses de França conhecem o seu país e dele se orgulham ou simplesmente o consideram um país europeu como os outros. Os portugueses deixaram de ser metecos em terras de França (continuando os magrebinos nessa condição) e a cultura francesa abre-se à nossa cultura, como a excelente Temporada Cruzada de manifestações culturais portuguesas em França e francesas em Portugal irá neste ano uma vez mais demonstrar.
A comunidade portuguesa em França, essa que descende das heroicas figuras que Bloncourt retratou, teve a sua origem num movimento migratório com início nos anos 60 do século passado, a que se deu o nome de “O Salto”.
Eles agrupavam-se, vindos em táxis ou em camionetas, nos pontos indicados pelos passadores e esperavam. Às vezes juntavam-se a eles os desertores, os foragidos políticos, com o sonho noutros horizontes, os da Revolução. Juntavam-se e esperavam, vindos de muitos lugares e de muitas vidas.
E por vezes acontecia o que eles mais temiam: em lugar do passador aparecia a polícia, por denúncia de informadores. Emigrar era um crime, a força de trabalho tinha de ficar disponível a preço vil e sair para ir trabalhar por melhor salário era uma traição equiparável a desertar da luta pela África Portuguesa ou a combater a política de Salazar, que nos garantia a todos a guerra e a miséria.
Sucedeu que uma vez alguns desses criminosos, apanhados de malas na mão perto da linha da fronteira, foram conduzidos a um juiz da comarca de Chaves, que proferiu na altura um despacho escandaloso:
Considerando que se trata de cidadãos portugueses que se encontravam em território nacional, não considero provado o crime de emigração clandestina, uma vez que estes cidadãos nunca saíram do país e é mera conjetura a sua intenção de emigrar, pelo que os mando ir em paz.
A princípio tentaram as autoridades uma aproximação tolerante e construtiva, que evitasse o escândalo. Uma delegação de funcionários superiores da PIDE pediu para ser recebida por esse juiz e solicitou-lhe, com bons modos, que alterasse para o futuro a sua jurisprudência.
O magistrado respondeu-lhes com a ideia obstinada da independência dos tribunais e convidou-os, com modos um pouco mais ásperos, a saírem do seu gabinete. A brandura dos nossos costumes e o medo do escândalo levou a que a única consequência para esse juiz tivesse sido a sua imediata transferência para uma outra comarca, bem longe da raia. Assim, o contingente seguinte de emigrantes clandestinos apanhados do lado de cá da fronteira foi cumprir a sua merecida pena de prisão, que para os pobres não havia brandura de costumes que valesse. Era esta a independência da justiça antes do 25 de Abril, essa de que alguns hoje sentem saudades…
Aquele juiz era meu pai.
Dedicado à comunidade portuguesa e de origem portuguesa em França
Diplomata e escritor

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- ActiveCarlos FinoExtraordinário episódio, que me fez reviver a minha passagem a salto, justamente na fronteira de Chaves, em 1971, fugido à PIDE e às guerras na sequência das greves estudantis desse ano e da entrada dos “gorilas” na Faculdade de Direito. Na noite anter…See moreYOUTUBE.COMLa poesía es un arma cargada de futuro – Paco Ibañez
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Lucila MeiraPensava que passadores e GNR eram amigos e colaboravam entre si? A minha irmã mais velha também se tramou em Coimbra. Não pode terminar o curso. Foi para Angola com marido delegado do ministério público que teve que fazer lá a tropa. E ela terminou o …See more- Like
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Jose Guilherme Anjos PiresTambém em 1968 fugi por S.Gregório em Melgaço perseguidos pela gnr e depois por 2 pides conseguimos a tempo ficar escondidos em Espanha algum tempo , até rumar a Paris em Maio- Like
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Carlos TorresMuito bom sou um fã do Senhor Carlos Fino desde muito jovem,posso partilhar,melhor eu jà partilhei desculpe mas não resisti abraço amigo força sempre.- Like
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