o repto de António Bulcão

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Repto
Sou açoriano do tempo em que tive de ir de barco com meus pais para São Miguel, numa idade em que não me lembro se o mar estava bravo ou azeite. Faltava-me ar nos pulmões, por uma asma asfixiadora, em anos sessenta do século XX sem bombas nem ventilan. Tinham de me tratar, o velho hospital da Horta não tinha meios e o Faial não tinha aeroporto.
Sou açoriano de me perder nos currais de vinha na Manhenha no Pico, a comer uva quente do sol nos meus seis anos. Meu pai a jogar sueca debaixo de uma latada e minha mãe a gritar Piedade quando a minha testa febril lhe chegou à mão direita. Regresso antecipado na Espalamaca, e aí já me lembro das vagas de norte a quererem espatifar-nos contra os ilhéus da Madalena.
Sou açoriano de aprender pintura com peixes-rei, de esfolar pés e joelhos no calhau, de apanhar ouriços na maré baixa, de ficar com os dedos roxos com a sua tinta para mandar o engodo à água e ver aparecer carapau, chicharro à tardinha, cavala média atrás daquela mancha toda e até enchovas para provar que o peixe maior come o mais pequeno.
Sou açoriano de aprender a jogar malha no clube de Castelo Branco e de sentir o incentivo de meu tio-avô Manuel Bulcão quando mandei os bilros ao chão todos de uma vez, com um “boa rapaz” que ainda me está nos ouvidos, num tempo em que aos rapazes só era permitido ficarem a olhar para aprenderem.
Sou açoriano de aprender a caçar coelhos, num tempo em que havia tantos, que nos apareceriam na cozinha à cata de cenouras, se não levassem tiros que os lavradores agradeciam porque a erva que espalhavam em semente e depois viam nascer era para as vacas, não para láparos.
Sou açoriano de aprender a escamar uma veja, tirar-lhe as tripas e assá-la. E os que pensam que escamar uma veja ou um bodião vermelho é a mesma coisa que escamar outro peixe qualquer não sabem do que falam. Quando a escama é grada e armada ao contrário, dá mais trabalho.
Sou açoriano de esfolar coelhos, tirar-lhes a pele, as vísceras e o bedume. Quem não sabe o que é bedume, merece comer carne amarga. E depois também aprendi a fritar as pernas e os peitos em lume brando, regando-os com azeite e polvilhando de salsa fresca.
Sou açoriano de conhecer todos os poços de ar destes céus, de andar em muitos modelos de avião, até na força aérea, quando houve greves, para poder ir estudar em Lisboa. De ficar num quarto sozinho, com direito a um banho de imersão por semana, cheio de frio no inverno e calor no verão, com os olhos fixos na Teoria Geral do Direito Civil.
Sou açoriano de conhecer estas ilhas todas, a tocar música, de ver nascer Semanas do Mar no Faial, Semanas Culturais nas Velas, Marés de Agosto em Santa Maria, Festivais do Ramo Grande na Praia da Vitória… Tudo o que foi nascendo eu vi, estive lá. Apanhei ressalga no focinho no canal Faial-Pico a julgar que era o fim do mundo, até levar com mar vivo no lombo entre as Flores e o Corvo. Mas o abraço do Ti Pedro na ilha mais pequena secava-me num segundo até aos ossos.
Sou açoriano do antes e do depois. De ver nascer hospitais e centros de saúde, teatros e auditórios, estradas e vias rápidas, aeroportos e aeródromos. De gritar com um pai doente dentro de um avião, palhinha na ventania, porque no Faial não havia tac e tinha de se saber se a trombose tinha sido hemorrágica. Quem conheceu estas ilhas quando eram apenas calhaus adjacentes e as vê hoje, benze-se.
Sou açoriano de amar estas ilhas e as suas gentes até ao tutano. Vi-as vergadas a poderes absolutos durante 40 anos. Com uma Assembleia Legislativa que existia só por existir, porque quem mandava nela era o governo e quem mandava no governo era um só homem. Muito se fez de bem e muito de mal se fez. Mas muito se deixou de fazer, a pensar em cargos e privilégios pessoais, em alimentos para clientelas que perpetuariam o poder.
Já vi partidos com certa ideologia governarem contra a mesma. Tomando medidas que estavam nas antípodas dos seus programas. Por isso, mais do que em ideologias, passei a acreditar em pessoas e em políticas. Em actos, mais que em palavras. Em realidades, mais que em utopias. Pessoas que queiram servir outras pessoas, mais do que servirem-se a si mesmas. Políticas que beneficiem toda a gente, que não decididas por populismos para atrair votos.
Sejamos claros, porque esta terra merece que o sejamos: se alguém quiser exemplos de medidas típicas de direita tomadas pelo PS ao longo de 24 anos, poderei dar vários, apesar de o PS se dizer de esquerda. Da mesma maneira, se alguém quiser que aponte algumas medidas que se podem facilmente qualificar como de esquerda, tomadas por um governo que é de direita, também posso dar exemplos. Interessa então o quê? Rótulos ou o bem público? Clubismos, ou o bem-estar das populações?
Nunca tinha visto tanto desespero por não estar a mandar, como vejo hoje no PS. Eles é que sabiam, eles é que sabem, criticam tudo, deitam abaixo tudo, não encontram nem uma medida deste governo que possam apoiar, aplaudir, votar a favor. Por eles, suspendia-se a democracia e ficariam com o poder absoluto eternamente. Para quê eleições, se só eles sabem governar?
Só que governaram tão bem que nos deixaram uma dívida colossal. Criaram empresas públicas ruinosas, como a Saudaçor, enterraram a SATA, deixaram sectores estruturais como a Saúde e a Educação numa lástima, nunca conseguiram resolver o problema dos transportes marítimos, mas não admitem o mínimo erro.
Hoje está-se a discutir o Plano e o Orçamento, dos quais depende um governo que depende da Assembleia. Quero ver quem ama verdadeiramente estas ilhas. Mesmo que nunca tenha apanhado 40 graus de febre com uva quente do sol, ou julgue que os carapaus são todos de corrida.
Votem contra os que acham que o devem fazer. Mas, antes, provem que a nossa vida nestas ilhas está pior do que estava há um ano e pouco.
António Bulcão
(publicada hoje no Diário Insular)
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