o passado a saque

Views: 0

O PASSADO A SAQUE
Repórter do Marão, 1992.11.06
A. M. Pires Cabral
Pobre arqueologia. Pobres castros, antas, mamoas e afins. Está tudo a saque.
Não me refiro à imperdoável desatenção que os nossos lugares de interesse arqueológico têm merecido da parte dos organismos a que compete a sua defesa e valorização.
Na verdade, também aí haveria pano para mangas. A gente vai procurar um qualquer local arqueológico — e que encontra? Escombros, ruína, descaso. O castro da Murada, por exemplo, em Lamares. Hoje é um amontoado informe de pedregulhos que só o olhar experiente e atento de um arqueólogo pode identificar como tendo sido um castro. A Mão do Homem, importante vestígio rupestre em Escariz, só por milagre não tem ainda encavalitada em cima uma maison catita. Panóias está como todos sabemos: de fazer envergonhar qualquer país que se preze do seu passado. E por aí adiante.
Mas pronto, não são essas águas que fazem moer hoje o meu moinho. Como se não bastasse tudo isso, todo esse abandono e todo esse desprezo, ainda sobreveio uma nova calamidade: certa casta de piratas, que revolvem tudo o que lhes cheire a sítio arqueológico à cata de tesouros. Já não são os rudes aldeões crendeiros, que julgavam que qualquer megálito tinha por obrigação ocultar uma moura encantada e um tesouro — e toca a destruí-lo, a poder de pico, marra ou mesmo bomba. Hoje essa casta de pirataria modernizou-se e saqueia, não a ferro de gaviar, mas com detectores de metais.
Eu não sei se o piedoso Leitor que me acompanha nestes desabafos semanais sabe o que é um detector de metais. É um aparelhómetro baratucho, coisa para uns cem contos talvez, capaz de revelar a presença de metais no subsolo. Armados com ele, os piratas passam a pente fino castros, mamoas, etc. No final de uma safra destas, podem ter descoberto, digamos, uma dezena de moedas que, vendidas na candonga, lhes pagam o investimento. Daí para a frente, é tudo lucro.
Segundo informações que tenho por fidedignas, dois desses piratas teriam vasculhado recentemente o castro de Sabrosa e desenterrado duas centenas de moedas de prata. Escusado será dizer que a maioria dessas moedas acabam por ir parar às mãos de receptadores, que fazem por sua vez negócio com elas. E assim tanto os piratas propriamente ditos (os ladrões que vão à horta), como os piratas de segundo grau (os que ficam à porta), vão delapidando o passado do país e sonegando parcelas importantes do seu património histórico-cultural, em nome do mercantilismo e do dinheiro fácil.
É urgente pôr cobro à acção parasitária desses fulanos. É preciso fazer-lhes compreender que uma coisa é vasculhar as praias à procura de moedas e ouros e pratas perdidos, sem particular valor cultural, outra coisa é devassar os castros à cata de espólios arqueológicos que fazem falta para a leitura da história. E quem lho deve dizer não sou eu — embora esteja a procurar fazê-lo neste preciso momento — mas sim as autoridades cujo dever é velar pela salvaguarda do património comum, ou mesmo, em última análise, as policiais.
Obviamente, se os castros todos tivessem já sido escavados por quem de direito e ciência, como devia ser, deixaria de haver interesse da parte dos piratas em pirateá-los. Porque, nessa altura, o espólio teria já sido recolhido e estaria a salvo, ao serviço da comunidade, estudado e exposto em museus. Mais um argumento pois a favor da tremenda urgência em proceder a escavações que neutralizem de uma vez por todas o tráfico e a cobiça. Enquanto isso não acontecer, o nosso património, Leitor, a nossa herança histórica, sua e minha, estará a saque, à mercê destas aves de rapina, que impunemente comerão dela e engordarão.
Não há dúvida: estamos num país em que o que é preciso é ter lume no olho. Escrúpulos? Honestidade? Para quê? Só estorvam…
Apostila:
Não serei radical a ponto de dizer que, de 1992 para cá, não tenha havido algum progresso
Em 1992, ainda Panóias, no termo de Valnogueiras, Vila Real, estava a bem dizer ao abandono, como se diz na crónica. Tinha-se avançado pouco em relação aos avisos de José Leite de Vasconcelos, dados em finais do séc. XIX: «Os preciosos monumentos arqueológicos de Panóias estão arriscados a perderem-se completamente, enquanto a Exm.ª Câmara Municipal de Vila Real não cuidar de os adquirir e resguardar, o que para ela constitui dever cívico, por tais monumentos pertenceram a uma época histórica de que poucos vestígios históricos restam no concelho de Vila Real, e serem além disso interessantes para o conhecimento geral das antiguidades da nação. Tanto mais se estranhará que a Exm.ª Câmara o não faça, quando é certo que com a aquisição e resguardo dispenderia quantia insignificante.»
A aquisição dos terrenos tinha já sido feita, nos anos 80, com uma verba concedida pelo primeiro-ministro Sá Carneiro. Mas a vedação teria de esperar ainda uma boa dúzia de anos. Hoje, finalmente, está feita. Foi além disso criado um centro interpretativo e levantados passadiços e escadas metálicas que permitem a melhor observação do monumento. Enfim, Panóias, hoje, está que se pode ver. Ou pelo menos estava da última vez que passei por lá e mostrei o lugar a pessoas interessadas. Felizmente. Porque é um monumento ímpar no país. E é sempre agradável mostrar a estrangeiros estes degraus da história.
May be an image of outdoors
Jose Gomez Bulhao, Domingos da Mota and 100 others
13 comments
13 shares
Like

Comment
Share
13 comments
View 10 previous comments
Most relevant

  • Hélder Alvar

    Além dos petróglifos gregos e latinos e da posterior diocese suévica de Panóias (toponimo vindo dos lepitas da Panónia da reforma de Teodomiro)…. Murça de Panóias, Vila Cauca de Panóias etc…

Mais artigos