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O paraíso esquecido
Decidi não continuar a série de “Cartas a Joel Neto”.
De facto, estou plenamente convicto de que o escritor usa tudo o que é possível para se promover e ao seu último livro. E não serei eu a contribuir para encher a mais pequena poça onde este Narciso se quer contemplar. O que não me impede de esclarecer os que gostam de saber tudo antes de julgar. Bem pelo contrário, faço questão de fazê-lo. Mas sem me dirigir diretamente a quem nem isso merece.
No dia 29 do passado mês de junho, a RTP 1 exibiu uma reportagem na série Linha da Frente, intitulada “Paraíso esquecido”. Joel Neto publicou na sua página de facebook o seguinte texto: “Esta noite, com o livro Jénifer ou a princesa da França como pano de fundo, grande reportagem da jornalista Sandra Salvado sobre a pobreza, consumo de drogas sintéticas, gravidez na adolescência, violência doméstica, abandono escolar e demais indicadores de subdesenvolvimento humano dos Açores”.
Afinal, o tal “paraíso esquecido” não era a região Açores, como acontecia na “Jénifer”. Era a Terceira. Ilha na data da exibição da reportagem completamente entregue às suas festas maiores, as Sanjoaninas, não tendo o seu povo tempo nem pachorra para ficar em casa a ver televisão.
Para quem não viu, um pequeno resumo.
A televisão pública exibiu pessoas a fabricar e a consumir drogas sintéticas. Com pormenores. É explicado como se faz. Quais os ingredientes essenciais ao fabrico. Como se juntam para dar o produto final. Tal e qual uma receita. Só que não são donas amélias… Só acontecerão tais desgraças na ilha Terceira? Em tal escala que impõe chamar a atenção do País inteiro?
Juntam-se testemunhos de mulheres sequestradas, outras vítimas de violência doméstica. Novamente uma realidade apenas encontrável no paraíso esquecido?
Uma adolescente que foi mãe aos 14 anos. Com o pai da criança, poucos anos mais velho, a dizer que teve de deixar de estudar para sustentar o filho. Com o pai da jovem mãe a confessar as suas desditas de desempregado. E a miúda com o bebé ao colo. Em primeiro plano, o rosto do inocente. Dirão os produtores, os realizadores, os autores, que os filmados deram o devido consentimento. O que eu vi foi gente de boa-fé a ser exposta e explorada na sua tristeza a Portugal inteiro. Não haverá famílias assim em mais lado algum?
Mas, logo a seguir, o contraste. Depois da capa do livro “Jénifer” encher o ecrã todo, recitada pelo seu autor a ladainha costumeira de todos os indicadores que nos colocam na cauda do País, a família de Joel é filmada no jardim da sua casa. Escritor, esposa e filho bebé. Sorridentes. Felizes. Com um fotógrafo a registar o exemplo para a posteridade. O único lugar imaculado na ilha Terceira que aparece na reportagem é a casa de Joel Neto. O único paraíso que não foi esquecido.
Entendi nesse momento a dimensão do “pano de fundo” que foi o livro de Joel Neto para a reportagem. Era a parte que interessava. O resto, era para enfeitar. E saltei.
Mas não saltou o chefe de gabinete. Saltou o faialense que escolheu a ilha Terceira para viver, há 40 anos. Saltou o homem que se entregou a esta terra de corpo inteiro desde a sua chegada.
O homem que se indignou foi o que defendeu oficiosamente e deu muita consulta jurídica de graça aos que não tinham dinheiro para pagar, na Terra Chã, no Lameirinho, em Santa Rita, em São Mateus. Foi o que ensinou em Angra e na Praia os filhos dos pobres com mais alegria que os filhos dos ricos, para que eles metessem na cabeça que só pela qualificação poderiam vir a viver melhor que seus pais e avós. Foi o que desceu a Rua Sé anos e anos com muitos amigos, que cantavam as palavras por ele escritas e as notas por ele juntas numa marcha linda à qual não faltou pulmões para gritar “ninguém apaga os nossos feitos, nem um futuro por fazer, quem nos quiser em paz sujeitos, saiba: queremos livres morrer”.
O homem que não quis calar o seu grito de revolta foi o que acampou anos a fio na Salga, deixando fundilhos de calças por todos os pesqueiros, vendo gado bravo a empurrar espanhóis para o largo. Foi o que roeu todos os cabinhos dos torresmos no quinto toiro em casas de amizade. Foi o que escreveu enredos e correu sociedades pela ilha toda a representar e a cantar, depois abraçando essa alegria de bailinhos que rabiscou na escola onde é professor. Foi o que não passa por certa farmácia sem deixar uma lágrima ao Elmiro que dançava e ao José Luís que tocava. Foi o que guarda nos ossos o suor quente dos abraços do João Ângelo e do Plácido e no coração as quadras que troca com o Eliseu sempre que se cruzam nos quatro cantos desta vida. Foi o que ainda conversa em esquinas com os mortos Félix, Candeias, Rodrigues, Bretão, Macide.
O homem que nunca se calará é o que se entregou graciosamente a todas as comunidades desta ilha que o requereram, dirigindo o Cineclube e a AMIT. Dizendo logo que sim ao convite do Joaquim Ponte para integrar a Comissão dos Assuntos Culturais da Câmara Municipal de Angra, lá ficando oito anos, dando o seu melhor. O homem que não aprende a calar-se e a ficar cinzento atrás de qualquer cargo foi e é o que se abriu em milhares de crónicas publicadas nestas páginas. Será pouco, mas deu o que tinha.
Saltarei sempre, em defesa da Terceira de Jesus. Custe o que custar. E com a plena consciência de que houve sempre espanhóis a invadirem, terceirenses a expulsá-los, mas também terceirenses a lhes abrirem as portas. Felizmente, poucos.
Mas que fique desde já claro: “saltar”, para mim, nunca foi ameaçar fosse quem fosse com a prática de qualquer crime. A minha única arma é esta escrita, admito pobre, mas que só se calará debaixo dos tais palmos de terra.
(continua)
António Bulcão
(publicada hoje no Diário Insular)
PUBLICO HÁ ANOS CRÓNICAS E PENSAMENTOS DO FACEBOOK. SÓ USO ESTA REDE SOCIAL PARA ISSO. NUNCA PEDI NADA FOSSE A QUEM FOSSE. MAS DESTA VEZ PEÇO, PORQUE EM CAUSA ESTÁ A MINHA HONRA: POR FAVOR PARTILHEM O MAIS QUE PUDEREM O ESCRITO ACIMA.
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