o médico Eduardo Barroso e as greves

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Uma crónica do cirurgião Eduardo Barroso, numa altura em que os sindicatos dos médicos se recusam a aceitar se façam mais do que 150 horas extraordinárias por ano.
Insustentável.
Quando aceitei colaborar com o DN, escrevendo uma crónica mensal sobre Saúde, não estava nas minhas intenções comentar a actualidade política,
mas sim expressar as minhas ideias sobre variadíssimos aspectos desta área,
baseadas numa vivência de mais de 50 anos de exercício da medicina, quer na vertente pública, em hospitais do SNS, quer na vertente privada.
Isto, porque sendo um fervoroso defensor do SNS, tendo sempre exercido essas funções com total rigor e disponibilidade, nunca o quis fazer em exclusividade.
Recém-formado, logo que me pude inscrever na OM, passei a fazer domicílios na chamada Caixa de Previdência,
assim como uma Urgência semanal nocturna na então Clínica de Santa Cruz para complementar o insuficiente ordenado do hospital.
Um pouco mais tarde, já como interno de Cirurgia, comecei também a ajudar o meu chefe, Câmara Pestana,
que às quartas-feiras à tarde fazia na Clínica da Reboleira, alguma cirurgias convencionadas, e às quintas, na Clínica de São Lucas, os doentes privados.
Ele ia distribuindo essas ajudas por outros elementos do serviço, mas aos poucos percebi que me chamava mais assiduamente.
Quando assim aconteceu, deu para desistir dos domicílios, para apenas me dedicar a actividades extra hospitalares cirúrgicas.
Mas o principal, a actividade mais importante e estimulante, era a que exercia no hospital.
Dava-se o caso que o meu dia de banco obrigatório de 24 horas, onde não me passava pela cabeça ir-me deitar, nem que fosse uns minutos, era às terças-feiras, acabando às quartas às 13 horas.
Como ia ajudar o meu chefe às quartas-feiras à tarde, durante muitos anos, das 8 horas da manhã de terça até chegar a casa pelas 20 horas de quarta, eram 36 ou mais horas seguidas.
Na quinta não folgava, e nessa época trabalhava-se aos sábados de manhã como noutro dia qualquer.
Quando fui progredindo no internato de Cirurgia, e o meu chefe ia tendo mais confiança em mim, era frequente levantar-me às quintas-feiras muito cedo, e ir à Reboleira ver os doentes do meu chefe, e chegar sempre a horas ao hospital.
Dava-me imenso prazer dizer-lhe, no fim da manhã de quinta-feira, que ele escusava de ir ver os doentes da véspera, porque eu já lá tinha ido e estava tudo bem.
Não sei quantas horas trabalhava por semana, não nego que por vezes estava exausto, mas adorava o que fazia.
Claro que o dinheiro das ajudas cirúrgicas era importante para poder viver melhor, mas essas ajudas, também eram fundamentais para o meu progresso cirúrgico, até porque se operava pouco no hospital, a rentabilidade dos blocos operatórios era ridícula.
Quando me tornei especialista de Cirurgia, aos 30 anos, e um ano depois obtive, por concurso público, um lugar vitalício no quadro dos HCL, pude começar a ter consultório privado na Clínica de São Lucas e a ajudar também o dono dessa clínica,
foi esse o meu grande privilégio, dedicar-me apenas à actividade cirúrgica, mesmo que isso implicasse seguramente, mais de 60 ou 70 horas por semana.
Sei que nunca almoçava em casa, e que, pelo menos uma ou duas vezes por semana, não ia sequer dormir a casa.
E tive de acumular com esta vida a preparação para os exames da carreira hospitalar e da Ordem dos Médicos, dois deles de uma exigência tal que obrigavam a perdas de noites sucessivas.
Sem a actividade cirúrgica extra hospitalar, sem as centenas de ajudas em que pude estar envolvido, nunca poderia ter feito a carreira que fiz, nem adquirido as competências técnicas essenciais.
Em 1984 emigrei, fui para Cambridge, Inglaterra para aprender a fazer transplantação hepática, e, até essa altura, nunca participei numa greve médica.
Não porque achasse que os salários fossem justos, mas porque era, para mim, absurdo que a defesa dos nossos interesses pudessem prejudicar os nossos doentes.
E, para mim, seria indigno que, se o fizesse, continuasse no entanto a fazer, nesses dias, actividade privada.
Sempre achei que devíamos exigir melhores condições de trabalho, o que também incluía melhores salários, participei em algumas greves de zelo, mas nunca às que pudessem interromper a assistência aos nossos doentes.
É perfeitamente inaceitável, mesmo para aqueles que achem que as greves médicas se justificam, que elas sejam tão banalizadas e frequentes como estão a ser.
Até porque hoje, com a existência de hospitais privados, a paralisação apenas dos públicos faz com que se atinjam negativamente e com maior selectividade aqueles que a eles não podem recorrer.
Claro que as greves, até hoje, nunca incluíram as Urgências
(mas não serão todas as consultas e Cirurgias Oncológicas situações de urgência?),
mas esta recusa maciça e concertada de não fazer mais do que as 150 horas anuais extraordinárias previstas numa lei absurda e irresponsável, é uma forma ainda mais radical e nefasta do que a greve, que pode ter consequências imprevisíveis; que me aterrorizam e envergonham.
Fazer apelos a que os sindicatos médicos e o Governo se entendam não é suficiente.
Expliquem aos portugueses, ambos os lados, os números do que está em jogo, porque o que dizem é tão radicalmente diferente que não conseguimos formar a nossa opinião.
E o que é mais frustrante é que, mesmo com um possível acordo alcançado, se calhar, continuamos a não ter médicos suficientes, consequência de erros de décadas.
Faltei ao que prometi a mim próprio, abordei o momento actual, mas teve de ser.
PS: Só uma vez fiz greve na minha vida de médico.
Fi-la com angústia, na defesa da nossa dignidade enquanto classe, quando fomos violentamente atacados e até considerados inimigos dos doentes.
E, portanto, não foi apenas o médico “funcionário público” que se sentiu atingido.
Parei também nessa altura tão conturbada toda a minha actividade privada.
Eduardo Barroso (cirurgião).
Jornal Diário de Notícias, 7 de Outubro de 2023.
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Sobre CHRYS CHRYSTELLO

Chrys Chrystello jornalista, tradutor e presidente da direção da AICL
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