O MANGUITO por Miguel Sousa Tavares,

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O MANGUITO
por Miguel Sousa Tavares, hoje, no Expresso
Um artista plástico resolveu fazer a milionésima réplica do manguito do Zé Povinho, de Rafael Bordalo Pinheiro, com dois metros de altura, e colocá-la em frente ao Palácio de Belém, como sinal do “descontentamento dos portugueses pelo desgoverno do país”.
Antecipando a sua remoção pelos serviços camarários, Marcelo mandou recolher o manguito e colocá-lo nos jardins do palácio, onde ficará para exposição pública, contemplação presidencial ou ambos os fins.
Fez mal. O mesmo Presidente que no início do seu mandato teve a lucidez de pôr a sua popularidade ao serviço do combate ao populismo, não pode agora descer à rua para trazer o populismo para dentro do palácio.
Se também ele está descontente com o desgoverno do país, se está farto das brincadeiras dos boys socialistas e impaciente com a falta de alternativas eleitorais de curto prazo, tem outras maneiras mais sérias e adequadas de o expressar (e que, aliás, não se coíbe de usar abundantemente), sem necessidade de cair na demagogia do manguito. Até porque convém perceber de que falamos a tal propósito.
Rafael Bordalo Pinheiro deu berço ao seu Zé Povinho e respectivo manguito na revista “A Lanterna Mágica”, em 1875. É extraordinário, mas eloquente, que, passados quase 150 anos, o imaginário nacional ainda continue a ver na figura do Zé Povinho e no seu gesto de desafio ao poder e aos poderosos um símbolo de virtudes patrióticas e de subtil resistência contra os abusos.
Contudo, o próprio Rafael Bordalo Pinheiro tinha caracterizado assim o Zé Povinho: “Resignado perante a corrupção e a injustiça, ajoelhado pela carga dos impostos e ignorante das grandes questões, o Zé Povinho olha para um lado e para o outro e fica como sempre… na mesma.”
Ou seja, os 150 anos de glorificação não passam de um embuste: o Zé Povinho não é um herói, é um cobarde. O seu manguito não é feito na cara dos poderosos, mas nas suas costas, quando não o estão a ver; ele não se revolta, conforma-se; é mandrião e ocioso; ignorante mas presumido; invejoso e não lutador; acomodado, dissimulado, maledicente.
Mas não admira que este embuste tenha perdurado até hoje e que o mito do Zé Povinho, herói do povo, se mantenha vivo: as redes sociais, as caixas de comentários dos jornais estão pejadas de Zé Povinhos com estas mesmíssimas características e cuja única diferença para o original é não estarem ajoelhados pela carga dos impostos pela simples razão de que, regra geral, não pagam impostos, vivem dos impostos que os outros pagam.
A seu tempo, no Governo PSD/CDS, fui contra a privatização da TAP, porque nunca acreditei que ela não poderia receber uma ajuda de 200 ou 300 milhões do Estado para resolver problemas de tesouraria e encerrar a ruinosa subsidiária de manutenção do Brasil, mantida pelas mesmas razões de delicadezas e subserviências diplomáticas pelas quais ainda hoje mantemos o ridículo Acordo Ortográfico.
Mas posto que o Governo do PS e da extrema-esquerda resolveram ‘patrioticamente’ renacionalizar a TAP, e que, quando sobreveio a pandemia, dispensaram os accionistas privados de qualquer esforço de refinanciamento da companhia, até lhes pagando para se irem embora, aproveitando para ficarem donos daquilo tudo e conseguirem da tal Comissão Europeia, que antes não autorizara nem 200 milhões de financiamento público, uma injecção de €3,2 mil milhões, depois de terem confiado os destinos da TAP e do nosso dinheiro a essa jovem vedeta socialista que se gabava de ser capaz de pôr os credores da nossa dívida externa a tremer de medo, Pedro Nuno Santos — alguém que nunca tinha tido de viver de um salário ‘civil’ ou de pagar um salário —, e depois de ele, após nove meses de scouting, ter desencantado para CEO da TAP uma francesa que tinha como currículo a falência de uma companhia de aviação regional inglesa e que obviamente não só não falava uma palavra de português como falava e fala um inglês típico, talvez, da Guiana Francesa, a minha fé no futuro da TAP acabou de vez.
Cheirou-me a desastre e o desastre é uma evidência: hoje, da bela companhia que outrora nos orgulhava, não resta nada. Já não dou mais para o peditório da companhia de bandeira, do hub de Lisboa (ou de Beja ou de Santarém?), para a ligação com os PALOP ou o abraço aos emigrantes. Qualquer outra companhia fará isso melhor e mais barato do que a TAP. E dos €3,2 mil milhões é claro que não veremos de volta nem um euro. O desastre é inominável, mas era previsível e foi anunciado. Tal como com a CP, a única coisa que a decência manda é saber como pôr fim a este pesadelo. Ter vergonha perante os utentes, pedir perdão de joelhos aos contribuintes.
A CPI à TAP, tal como também era mais do que previsível, não se vai ocupar de nada disto. PS, PSD e CDS, os actores principais desta pública vilania, estão e vão entreter-se com um lavar de roupa suja partidária que serve para pôr a nu toda a imensa mediocridade de toda aquela gentalha — governantes, gestores, advogados, intermediários e outros abutres desgarrados —, mas que em nada contribui para ajudar a resolver o essencial: como nos podemos livrar da TAP com um mínimo de dignidade, de danos controlados e de futuro garantido para os seus trabalhadores, a única mais-valia daquela empresa.
Os 150 anos de glorificação não passam de um embuste: o Zé Povinho não é um herói, é um cobarde
A “verdade doa a quem doer”, de que fala António Costa, a verdade de toda esta suja realidade, não é novidade para ninguém. Mesmo a ‘escandalizada’ imprensa que faz de cada nova ‘revelação’ um inesgotável tema de notícia, de debate, de inflamados editoriais, há muito que sabe ou suspeita que é assim que as coisas acontecem nesse mundinho dos cursus honorum da política, onde os jovens saem das juventudes partidárias, frequentam aqueles cursos de Verão onde os seniores lhes vão pregar umas lições de como subir no partido servindo a pátria, e daí vão para assessores do grupo parlamentar e depois, em o partido chegando ao poder, é sempre a subir: vereador municipal, secretário de gabinete, adjunto de ministro, chefe de gabinete, secretário de Estado.
E um dia, sem nunca, sequer, terem gerido a sua assembleia de condóminos, veem-se, deslumbrados, a dar ordens à CEO da TAP, a mandar adiar voos para agradar ao Presidente ou a arbitrar indemnizações de meio milhão com o dinheiro dos contribuintes, e à noite, antes de adormecerem, gabam-se à mulher dos seus feitos do dia e mandam um WhatsApp ao ministro: “Tudo tratado na TAP. Agora, vou-te mandar um draft do discurso contra o capitalismo predador.”
3. Isto somos nós. De um lado, temos o Zé Povinho, que habita nas redes sociais, suspira pelo Chega e alimenta o Chega. O Chega e o Zé Povinho são a face da mesma moeda, o pior que temos: o português da inveja em vez da competitividade, do bota-abaixo generalizado, do boato em vez dos factos, do insulto em lugar da discussão de ideias, da nostalgia por uma ditadura como forma de nivelar todos na mediocridade.
Do outro lado, temos os filhos bastardos da democracia, o lúmpen partidário dos carreiristas que não conhecem outro modo de vida senão à sombra da protecção do Estado capturado pelo partido. E aí, louvam-se de pergaminhos que não têm e invocam uma legitimidade que não lhes pertence.
Decerto que temos de ser governados por alguém e decerto que ainda não se inventou melhor fórmula de o ser do que por quem ganha eleições livres, organizando-se em partidos políticos que representam diferentes formas de pensar a sociedade e diferentes programas de Governo.
Mas as eleições não esgotam tudo, elas são um meio mas não um fim em si mesmo. Não esgotam, nem as obrigações dos governantes nem as do Zé Povinho. Num país a sério os governantes, por mais mal tratados que se sintam, têm, acima de tudo, uma noção de serviço público, e o Zé Povinho, por mais injustiçado que se ache, não tem orgulho na sua ignorância nem se contenta em fazer manguitos nas costas daqueles que considera poderosos.
A mim, que desde os 15 anos me considero um social-democrata, o que me custa não é chegar a pagar 48% de IRS dos meus rendimentos de trabalho. Países sociais-democratas, como a Dinamarca, chegam a cobrar 60%. Com duas grandes diferenças: cobram isso a milionários, não à classe média, e, em contrapartida, os serviços públicos são grátis e de excelência.
Enquanto aqui, os professores do ensino público batem recordes de baixas e de dias de greve e estão todos ‘desmotivados’, excepto quando aparecem a manifestar-se felizes na televisão; os médicos do SNS bateram recordes de baixa durante a pandemia e depois e, assim que acabam de se formar à custa de dezenas de milhares de euros pagos pelos contribuintes, correm a servir no sector privado; os funcionários judiciais fazem greves de três meses paralisando os tribunais e os conselheiros do Tribunal Constitucional não conseguem sequer cooptar quem substitua os que terminaram o mandato; a querida ‘ferrovia’, exclusivo do transporte ferroviário, transformou-se num insulto sindical feito a centenas de milhares de utentes.
Mas mandamos tanques para a Ucrânia, enquanto nada mais funciona nas Forças Armadas, condecoramos bombeiros por apagarem fogos, enquanto os aviões e os helicópteros estão fora de serviço, e estamos embevecidos a seguir a novela da TAP para descobrir quem vai apunhalar quem amanhã e quem vamos levar ao cadafalso depois de amanhã, em lugar de procurar saber para que serviram os €3,2 mil milhões que lá pusemos e se ainda há alguma salvação para aquilo. Não admira: quanto é que você, Zé Povinho, deu para a TAP?
PS: Outra coisa que começa a cheirar a desastre anunciado é a escolha do local para o novo aeroporto de Lisboa pela tal Comissão Técnica Independente. A avaliar pelo entusiasmo com que a sua presidente acolhe todas as sugestões de locais e até as incentiva, mesmo que o tal futuro aeroporto de Lisboa fique a 90, 150 ou 200 km de Lisboa, isto, na hipótese benigna, vai acabar em anedota. E por isso, ainda dentro do prazo das sugestões e com legitimidade igual aos demais, venho por este meio sugerir para o futuro aeroporto de Lisboa a localização que me fica mais à mão: Moncarapacho. À consideração.
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João Gomes

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