o elogio caído em desuso

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Embora atrasado, o artigo no CA de hoje.
O elogio caído em desuso
Há semanas, fui a uma grande loja de P. Delgada, onde se vende eletrodomésticos e outros utensílios. Ia à procura de um aparelho e acabei por trazer dois, sendo que o segundo também precisava, embora não fosse tão urgente. No entanto, o jovem funcionário que me atendeu foi tão prestável e, facilitando tanto o ato de compra, com conselhos muito úteis e honestos, que acabei mesmo comprando os dois artigos. Fiquei de tal modo satisfeita que, num gesto de agradecimento, quis registar a minha satisfação pela solicitude e simpatia do atendimento no livro de elogios.
O livro estava em branco. Os restantes funcionários, estranhando o que para eles era insólito, até se puseram à minha volta, incrédulos e a brincar com a situação:
– A senhora tem mesmo a certeza de que quer elogiar esse rapaz?!
Ora, vem esta introdução a propósito de ilustrar a ideia de que somos muito lestos a reclamar, mas pouco propensos a elogiar.
Na verdade, o meu elogio teve a intenção de incentivar as qualidades que presenciei naquele jovem, já que, demasiadas vezes, encontramos pessoas pouco qualificadas no atendimento ao público nesta ilha. Ora porque demonstram antipatia, ora porque não têm a mínima noção do que estão a fazer. Estou a lembrar-me do caso da funcionária de uma loja que, ao meu pedido de uma capa específica para o telemóvel, respondeu que não havia. Depois de uma vista de olhos pelo expositor da loja, apontei que havia uma universal, exatamente com as características que queria:
– Ó menina, mas há aqui uma universal…
Resposta imediata da empregada:
– A senhora também não perguntou!
Uma situação semelhante já me tinha acontecido num restaurante na nossa cidade.
Parece que os políticos portugueses atuais fizeram estágio no mesmo agrupamento, pois a resposta dada fez escola!
Retomando o tópico do incentivo ao elogio, é talvez um “defeito” de profissão. Como professora, sei que é a melhor forma de dar segurança e motivação a um aluno que não as demonstra. Se está errado, devo mostrar de forma pedagógica, argumentando e justificando o lado correto da questão com racionalidade e ponderação, porque só assim se pode trocar pontos de vista diferentes com legitimidade.
Eis que chego ao ponto que quero demonstrar – pedagogicamente!
Por que razão há cada vez mais rudeza no confronto de opiniões? Por que motivo há tanta falta de sentido construtivo ( pedagógico), cada vez mais intolerância e incitação ao insulto?
Discordar é nobre quando se oferece argumentos atendíveis e justificações válidas. É próprio das sociedades evoluídas o sentido crítico genuíno e assertivo. Quando o propósito é destruir ou julgar com interesses mal resolvidos, então é deveras primário e descabido.
Foi o que vimos nestes últimos dias, nas redes sociais, na expressão de reações à série ” Rabo de Peixe”, que estreou na plataforma Netflix na passada semana.
Entre, felizmente, mais elogios do que depreciações, lemos críticas sem fundamento, no entanto, lamentáveis por virem justamente de açorianos, que entenderam ter faltado a pronúncia micaelense e autores açorianos na série.
Ora, depreciar por motivos tão irrelevantes à escala global é persistir na insularidade também na forma de pensar. O que interessa a pronúncia para um espectador que vê a série – de ficção – na Polónia? Qual é a relevância da origem do elenco, desde que seja bom? Seria relevante para alguém que as tintas com que Domingos Rebelo pintou os “Emigrantes” fossem ou não produzidas nos Açores?
É uma produção de excelência nacional, realizada pelo açoriano Augusto Fraga, feita nos Açores! Alcançou, até agora, o top das mais vistas em 33 países. É tão somente admirável e motivo de orgulho para os açorianos! Parabéns a todos os que a tornaram possível! Que seja estímulo para mais produções de qualidade realizadas nos Açores. Só estranhei que gente tão acérrima aos nossos costumes não fizesse notar aquilo que a série retrata de mais evidente: o destino a que estão condenados os jovens desta terra eternamente pobre – e isto não é ficção.
Para além das reações à série, a semana passada também ficou marcada pelo dia dos Açores, celebrada na segunda-feira de Pentecostes.
No que toca à ação do “filme” do Governo Regional dos Açores, gostava de lembrar que aí, sim, é relevante olhar cá para dentro. É, de resto, o seu propósito de existir. Pedir uma exceção para os Açores e para a Madeira, por parte dos respectivos governos, na lei dos vistos Gold, que a República vai abolir, é muito mau argumento. Para os enredos imobiliários, deduzo que seja a galinha dos ovos de ouro, mas para o comum dos açorianos, espectadores sem palavra no destino da narrativa em que são protagonistas, é um dos factores que tem contribuído para a inflação do mercado de habitação e de arrendamento na ilha e, portanto, pouco digno de elogio.
Neste caso, é apropriado lembrar ao GRA que governe para os açorianos e não para os estrangeiros.
Era bom que o sonho de partir deixasse de ser a eterna característica identitária das nossas obras de ficção e o álcool e a droga a “saída” para os jovens que ficam, como no caso dos protagonistas da série de que se fala.
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Telmo R. Nunes

Segue um enorme elogio, Paula, não apenas pela reflexão que partilhas neste belíssimo artigo, como também pelos vários que tens tornado públicos, e dos quais muito tenho retirado. Parabéns!
Paula Cabral

Telmo R. Nunes, muito obrigada, Telmo! É mesmo um grande elogio! Beijinhos.