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Correio dos Açores de ontem.
O politicamente (in)correto: o elefante na sala
Usámos máscara durante dois anos.
Apesar de ter deixado de ser obrigatória, sucede que permaneceu. Em vez de a usarmos para tapar a boca, usamo-la agora nos olhos.
A ideologia do politicamente correto que grassa por este mundo fora, pandemia que manifesta os mais variados sintomas, propagandeando a mesma estratégia do medo, obriga-nos a usar vendas.
O elefante está no centro da sala, mas recusamos vê-lo. É uma nova forma de negacionismo.
O suposto elefante está na linguagem que deve ser vigiada, nas imagens bloqueadas, até à arte reprimida, à cientificidade da biologia e da história questionada e mesmo no modelo de educação descalibrado vigente.
O mundo enfrenta fronteiras vulneráveis que podem significar a entrada numa realidade alternativa, diria, semelhante ao de universo criado pela ficção de Saramago no Ensaio sobre a Cegueira. A obra é uma belíssima metáfora da humanidade cega, tomada por um suposto vírus altamente contagioso, que atinge quem não quer ver, quem perdeu a faculdade da lucidez.
O radicalismo dessa ideologia tomou muitas ramificações e acabou por ser politizada.
A consciência daquilo que podia ser debatido, eventualmente transformado para melhor, através do apuramento de sensibilidades e tolerâncias, acabou por se tornar no seu contrário. A intolerância, a censura, a ignorância apagaram a lucidez de quem quer rasgar páginas dos livros de literatura, até da infantil, dos manuais de história, censurar a nudez de pinturas e de esculturas, substituir identidades por sentimentos de género, pelo que hoje um homem pode se sentir mulher, amanhã, sentir-se-á homem novamente, transitando entre géneros, ou até não se identificando com nenhum. É um assunto novo, delicado. Na minha visão, é um desafio à lógica da biologia. Não me interessa, sinceramente. Respeito as orientações sexuais de cada um, que, pelo que leio, é uma questão diferente da identidade de género, e isto basta-me. Não gosto é que me coloquem vendas que me impeçam de ver a realidade tal como ela é.
Como referi, as fronteiras da verdade estão cada vez mais fluídas e esta é uma característica do mundo pós-moderno. Nada é dogmático, nem tudo é preto e branco, há ambiguidades, e toda a realidade é questionável, é verdade. Até certo ponto, penso eu. A partir do momento em que a verdade é, ela própria, trasvestida, conforme a subjetividade de cada um, estamos perdidos. Passamos a ser personagens dentro de um universo fictício, onde tudo pode acontecer. A transgressão, própria da criação artística, passa a ser a norma pela qual se rege o mundo real. Passamos a viver numa moldura de arte contemporânea, onde vale tudo, até a mais delirante conceção de obra.
Diz-me a experiência como professora que esta nova forma de estar ou ver o mundo tem tudo a ver com a decadência e a insanidade em que caímos.
Na escola, lido com jovens com dificuldades de afirmação, que não sabem o que sentem, deprimidos e oprimidos entre as expetativas dos pais, aquelas muito diferentes que são as dos seus pares, e as exigências da própria sociedade: três eixos de forças contraditórias. Muitos estão sem sonhos, não sabem onde se encaixam e refugiam-se na indiferença. É muito difícil ser-se jovem hoje sem referências definidas. A ambiguidade é avassaladora para quem está a construir a sua identidade e o seu lugar no mundo. Sem orientações, a coisa é mesmo desastrosa. E aí entram cedo os psicólogos, as oscilações de comportamento e os problemas de saúde mental. Uma aluna pede ao professor que a trate pelo nome masculino. O professor concede, porque respeita. Logo a seguir, vem o pai, furioso, à escola pedir satisfações pelo sucedido, acusando-o de estimular a atitude da filha.
O sistema educativo integrou tudo isto.
Mais: acentuou o problema, arrisco-me a dizer.
Não quero falar das aulas de cidadania, de cujo currículo estes novos assuntos fazem parte, entrando aqui a politização da temática e da chamada ideologia woke ao ser paulatinamente integrada no currículo formal da disciplina. Os professores são obrigados a discuti-los com os alunos à luz do respeito que é devido, mas sem convicção, outros que o evitam, como já foi o meu caso, outros ainda com hipocrisia.
Na verdade, o meu ponto ainda é outro e que se torna mais polémico. Tem a ver com a ideia da escola inclusiva. Ocorreu-me por estes dias a seguinte questão: a conceção do modelo inclusivo, por mais bem intencionado que seja, não será outra ramificação destas novas ideologias ocas e sem consistência?
Se não, vejamos: na prática, um aluno diferente, por qualquer motivo, de ordem cognitiva ou psicológica, é submetido a uma avaliação pelos serviços de psicologiada escola. Este terá direito a um currículo diferente, se tal for necessário; a estratégias de aprendizagem diferentes e a critérios de avaliação adequados ao seu problema, ou seja, um plano educativo próprio. Um aluno, por exemplo, que não saiba exprimir uma opinião com coerência, que tenha dificuldades de abstração, que não conheça vocabulário suficiente, entre outros problemas, passa a não ser avaliado na sintaxe, na ortografia, em português, ou, se, for em matemática, não terá certamente questões de raciocínio abstrato, ou, se tiver, será sob a forma de resposta múltipla, etc. Na prática, o que resta então para avaliar? Algumas ideias que vão escapando aqui e ali que o professor tenta traduzir num número, ao qual acrescenta o domínio das atitudes, se é esforçado, interessado ou não. Não está em causa a justiça ou injustiça do modelo, mas da sua aplicação. Esses alunos devem ser tratados com a justiça que merecem. Têm de ser alvo da atenção que merecem e não são, porque são cada vez mais os alunos problemáticos, colocados em turmas, também elas, problemáticas. Que atenção diferenciada então podem ter da parte de um só professor para tantos alunos? Na prática, os problemas específicos dos alunos são “esquecidos” e não desenvolvidos para serem colmatados.
Coloca-se então o problema da justiça, quando, nos resultados finais, a sua avaliação é igual a outro aluno dito regular. Ambos entram no mercado de trabalho com a mesma nota de desempenho. Na verdade, um aluno, nessas condições, com um plano educativo individual (PEI), desde que se esforce e vá às aulas de apoio, tem uma espécie de salvo-conduto até acabar a escolaridade. O elevador social de que tanto se fala funciona para esses alunos. Deixou, porém, de funcionar para tantos outros, que, sem as mesmas prerrogativas e porque não têm poder económico para explicações, desinteressam-se pelo processo e abandonam-no a meio do caminho. Um caso concreto: numa família com dois filhos, um com necessidades educativas especiais ( o PEI é lei, como se diz!) e outro regular, os pais não terão tantas preocupações com o filho que tem mais dificuldades, porque este, certamente, chegará mais longe do que o irmão, que se desinteressou. Mais facilmente poderá concluir o secundário e até prosseguir para a universidade.
Não sei qual é a percentagem de alunos com necessidades educativas especiais que existem na nossa região – de acordo com o recente decreto legislativo regional n° 5/ 2023/A de 17 de fevereiro, que rege o modelo da educação inclusiva, esta classificação vai desaparecer. Ora, por que será? – , mas sei que é alta.
Aqui chegados, pergunto-me se esta aplicação do modelo inclusivo será mesmo justa para todos os envolvidos? Ou não será condescendente? Serão as estatísticas de sucesso outra verdade pós-moderna? Não haverá necessidade de redefinir tudo isto, assumindo, de uma vez por todas, a realidade como ela é?
Não será, afinal, mais um elefante na sala que não queremos ver?
O referido decreto é cheio de boas intenções, bem como de palavras que ficam bem no papel. Expressões, que definem o seu conceito, como: “Abordagem multinível”( …) que permite o acesso ao currículo, ajustada às potencialidades e dificuldades dos alunos, com recurso a diferentes níveis de intervenção, constituindo-se como um modelo compreensivo de ação, que considera a complexidade, multiplicidade e interconectividade entre as dimensões da aprendizagem e do comportamento, oferecendo um modelo integrado de ação nestes mesmos domínios;” são deveras a revelação do rosto burocrático do sistema. Muito palavreado para se traduzir numa prática oca, uma vez que se confirma no capitulo II, artigo 8, do mesmo decreto: “As medidas a que se refere o número anterior são implementadas tendo em conta os recursos e os serviços especializados existentes e necessários na unidade orgânica, numa lógica de trabalho colaborativo e de corresponsabilização da comunidade educativa, em função das especificidades dos alunos.” Ou seja, as intenções esbarram sempre na realidade. Onde estão os recursos? Além disso, sendo imperetrível o recurso a turmas pequenas, quantas salas de aula seriam necessárias para acomodar mais turmas? É preciso investimento e pensamento sério para não se criar injustiças.
Podem acusar-me de estar a confundir tudo e a relacionar ideologias e sistemas de valores que nada têm a ver, porém o que estamos a viver em todos os domínios parece certo que está a bater na mesma porta. O politicamente correto não é mais do que a assepsia do que não interessa.
De tanto branquear a realidade, acabaremos cegos de tanta brancura e atolados em vendas de papel.
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Cristina Sofia
Completamente de acordo.
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