O “CASTELO” DA LOMBA DA MAIA

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trabalho completo adiante

Nesta fase adiantada da minha vida, era mais um homo domesticus que ficava em casa, incapaz ou sem querer interferir de forma ativa nos assuntos da “civitas”. Não aceitava como minha a responsabilidade de lutar sozinho contra déspotas, tiranos, corruptos, medíocres, ao contrário do que fizera já, sem grandes resultados, durante várias décadas. Um autor açoriano, de seu nome Daniel de Sá, já o havia intuído:

Existe um “castelo” na Lomba da Maia. Não tem torres nem ameias nem tampouco o fosso protetor contra invasores e atacantes. Também não tem nome nem dono. Foi assim batizado por aquele escritor, por lá se avistar (dia e noite) um castelão, agarrado ininterruptamente ao seu computador, organizando os Colóquios da Lusofonia.

De facto, dali do topo da sua “falsa” (o nome micaelense para o sótão) a minha janela abria-se sobre todo o mundo: podia observar os mares e os montes, as vacas, as eternas brumas que se aproximavam e, por vezes, desapareciam sem deixar rasto. Outras vezes era a chuva inclemente e impiedosa que vinha ora do norte, ora do oeste ou do sul, e aí sim, ela abatia-se sobre o seu “castelo” e as grossas gotas corriam pela sua janela e toldavam-lhe o juízo, arrefecendo a sua paciência oriental. Mas não foram essas chuvas quem apagara o fogo da minha paixão pela verdade, equidade, justiça e liberdade, extinto há muito pela sublimação do hábito que torna os quotidianos em tarefas cada vez mais pesadas, quando o desespero se apossa subitamente, sem premeditação. Martelava ferozmente o teclado em frente ao qual gastei a última grosa de anos (não eram doze dúzias, mas assim lhe pareciam) da sua vida, deixava que a vida lá fora corresse sem pressas. Devagarosamente debitava palavras que a gaveta iria consumir com a humidade que, aliás, era muita naquela ilha sempre verde. Sempre a gaveta para onde desde miúdo atirava tudo o que produzia na esperança de um dia lhe vir a ser útil, Felizmente sempre tive a mania de escrever e guardar o que escrevia. Assim cheguei a ler tudo o que escrevi ao longo de mais de meio século. Eram notas, pequenos apontamentos, escritos e manuscritos de caligrafia variável como os estados de alma, de vários tamanhos, formatos e estilos, que se haviam acumulado em pastas não catalogadas nem sequer ordenadas de qualquer forma específica. Outros ocupavam o lado outro de folhas A4, recicladas de traduções, notícias e outras. Foi um trabalho longo. Ler e rever tudo o que me aparecia escrito e descortinar o que era real, inventado ou meramente sonhado. Alguns faziam parte de escritos e reescritos já publicados, outros nem por isso, e havia os mais recentes publicados já sob o pomposo e deshumilde título de ChrónicAçores: uma circum-navegação. Uma vez na posse daqueles arquivos preciosos (e muito ficara por ler e desvendar, para memória futura) a minha tarefa fora interpretar e colocar geograficamente os eventos nos locais por onde passara, que nem um caixeiro-viajante do mundo, sempre impaciente e insatisfeito em busca de uma pátria, uma mátria, um lar.

E é sobre essa fluente e vasta escrita que este livro versa. Já aprendera isso com o meu pai e repetia-o até à exaustão pois a experiência ditava-me de que poderiam ser úteis tais anotações. Já o tinham sido por várias vezes. Era difícil aos que me rodeavam compreenderem aquele frenesim, aquela angústia de escrever e por muito que lhes explicasse (o que já deixara de fazer havia tempo) recusavam-se a ver a minha irrepreensível lógica. Sabia que tinha uma missão diferente de todas as outras e teria de a levar a cabo, embora sem ter cartas de marear nem rotas nem itinerários. Era quase um eremita rodeado de gente pouca, por todos os lados, como convém a quem é uma ilha, incapaz de se deixar contagiar pelos clamores externos. Não havia ambiguidades na minha postura, optara por ser aquilo que atualmente era. Já não tinha nem ressentimentos nem ilusões. Já passara o tempo da dor, limitava-me a sorrir pouco e rir qb. A vida passada só fazia sentido para o ego que fora meu, mas já não era. Não poderia repeti-la agora. Tê-la-ia vivido da mesma forma se confrontado com idênticas circunstâncias. O presente devia ser aproveitado sem os hedonismos do passado, com a frugalidade que o meu padrão de vida me permitia, sempre otimista quanto aos melhores dias que podem sempre vir, quando menos se espera, sem nunca desesperar.

Considerava-me um privilegiado, vivi três vidas numa só. Criei três carreiras distintas que prossegui em paralelo e nada de material tinha para mostrar, mas trazia comigo uma pesada bagagem de conhecimentos e cultura que teimava em acarretar sempre que mudava de residência. Tal como George Steiner em “Os livros que não escrevi” não se definia politicamente, eu nunca declarava abertamente as minhas ideias políticas, nem a minha verdadeira posição. Afirmei sempre nunca pertencer a nenhum partido ou clube, e dessa forma reneguei qualquer afiliação que pudesse ter existido nos meus anos formativos. Mesmo quando visualizava os espetáculos desportivos não me deixava levar pelas emoções ou por simpatias, via friamente o que o pequeno ecrã me proporcionava e chamava àquilo o meu entretenimento gratuito. Evitava a todo o custo pronunciar banalidades e raramente subscrevia manifestos. Pelo contrário ridicularizava a impreparação dos jornalistas que debitavam decibéis em telejornais vazios de conteúdo, incitava-os a fazerem as perguntas corretas sem medo de perderem os seus empregos. Raramente via uma coluna vertical e proba naqueles escribas atuais, meus colegas de profissão, sempre de costas vergadas à censura económica dos seus patrões. Raros os editoriais ou artigos de opinião que subscrevi, pois poucos podiam escrever livremente e menos ainda os que os queriam ler. Muitas vezes no meu blogue e nas minhas crónicas, fazia análises da conjuntura mundial ou nacional usando meramente o senso comum e interrogava-me porque é que o povo à minha volta não podia ver as coisas com a mesma claridade e transparência com que eu as via.

Escolhi esta forma de isolamento, quiçá aprendido da obra de Nietzsche que fora bandeira da minha juventude revolucionária, de aprendizagens várias. Afirmei sempre prezar imensamente a incomensurável liberdade de expressão e de discussão que a revolução de abril (1974) nos trouxera. Tinha esse desprendimento próprio de quem nunca perdoava ter tido o meu primeiro livro de poesia, quase juvenil e inóspita, cortado pelo lápis azul da censura e reduzido a um terço da sua dimensão. O meu retiro no “castelo” aparentava uma passividade que não me era inerente, mas era assim que eu reagia ao desapontamento da democracia conjugado com uma utópica visão do mundo que herdei dos muitos livros que li, sobretudo na infância e juventude. Temia todos os totalitarismos e fundamentalismos, e já não receava ser acusado de elitista. Nauseavam-me os espetáculos de voyeurismo que as televisões colocavam no ar, sem intimidades, nem privacidades, como se fosse a transposição de tudo aquilo que os malfadados formulários burocráticos haviam conservado de cada um e os resolvesse expor na praça pública para deleite geral. Uma espécie de Maria Antonieta no cadafalso para todos verem e vilipendiarem. Era similar às ações encenadas dos políticos para todos verem o que pretendiam que vissem, como se as decisões sobre o presente e o futuro do país se definissem através desse jogo de sombras chinesas ou de marionetas indonésias.

Teologicamente definia-me como ateu e não como agnóstico, mas lamentava-me de ter perdido a fé com que cresci, embora ainda hoje me limitasse a aplicar na prática todos esses bons ensinamentos. Ironizava ser mais católico do que muitos praticantes do rito romano, e de ter feito mais bem sem olhar a quem, do que muitos daqueles que se continuavam a benzer, e a ir comungar num espetáculo de voyeurismo público que me repugnava. Ao decidir ficar em casa, no meu “castelo” era uma espécie de observador neutral do mundo que se desenrolava a meus pés, ainda, e sempre, convicto de que os seres humanos podem ser iguais, independentemente do seu género ou sexo, da sua nacionalidade ou cor de pele. Estava, porém, lucidamente consciente, desta utopia, pois haveria sempre os favorecidos pela “sorte”, os ricos (e quem enriquece à custa de trabalho honesto?) e todos aqueles cuja única missão no mundo era contrariar os meus arreigados princípios de probidade e dedicação a causas perdidas. Estava consciente de que a lei, qualquer que ela seja, qualquer que seja o país, está cheia de iniquidades e favorece obviamente os ricos e os corruptos e quem se “lixa é sempre o mexilhão”, pois são sempre os pequenos e os incómodos que servem para dar exemplo da luta contra o nepotismo e corrupção.

Bastava nascer-se no Congo ex-belga, em Kiribati (no Pacífico Sul) ou na Terra do Fogo para as hipóteses de futuro serem radicalmente distintas daquele que nasceu no palácio de Buckingham, só para dar um exemplo dum “rapaz da sua idade”. Embora não tivesse nascido com deformações ou deficiências genéticas viria a adquirir uma perigosíssima estirpe viral: a do conhecimento e da insaciável sede pelo mesmo. Aí, congratulava-me por não ter nascido cego, pobre de espírito, ou delinquente. Outra deficiência que adquirira em novo, por influência paterna, tinha a ver com a sôfrega sede do direito inalienável à liberdade de expressão e de pensamento, uma malformação congénita que me valera muitos dissabores pessoais e profissionais ao longo da vida.

Viera um dia, descendo das nuvens que pairavam sempre sobre estas ilhas, como quem não quer poisos certos e acabei por ceder ao peso das dúvidas e das dívidas. O meu andar não era tão ereto nem certeiro como fora em tempos, a cabeça baixa, os olhos baços e encovados do cansaço e desespero. Arrastava-me penosamente pelo calendário dos dias, sem deixar grandes marcas além das baforadas dos cigarros sorvidos sofregamente. Tinha ainda uma missão a cumprir na vida, das duas ou três que guardara para estes anos finais quando as chamas se apagavam e os sonhos esmorecidos não passavam já de memórias. Atribuía o facto à idade, embora me gabasse de envelhecer suavemente, sem pressas nem negações, mas finalmente deixei de lutar e de sonhar com as áreas vastas e os horizontes sem fim, mais típicas do meu australiano continente-ilha. Aliás, sabia que estava a ficar caduco desde aquele dia em que ao espirrar me saltara a dentadura postiça com estrondo para cima da secretária. Aqui e agora, estava tolhido pelas colinas verdes, as tais vacas alpinistas, as brutais variações climatéricas diurnas, a nesga de mar que vislumbrava pela sua janela. O verde afetava-me quase tanto como a frequente falta de sol de que carecia para a função clorofilina. Obrigara-me a nunca me queixar, a estar sempre contentado sem nunca me contentar. Resignado deveria ser o termo, mas fingia que nada me afetava nem inquietava. Isto passava-se enquanto as dúvidas e os temores me assolavam, cada vez mais frequentemente, se bem que numa escala metafísica pouco consentânea com as preocupações mais comezinhas daqueles que me rodeavam.

Tornara-me taciturno, quase monossilábico, não tinha com quem dialogar, eram todos surdos em volta e falavam uma língua diferente com sotaques estranhos e quiçá incompreensíveis. Sentia-me estrangeiro. Duas vezes ao ano partilhava palavras com os meus pares ideológicos nos Colóquios da Lusofonia, mas para isso precisava de organizar esse tipo de reuniões intelectuais à custa de muita labuta e sem proveito qualquer. Perguntava a mim mesmo se era este o preço a pagar para poder falar. Sempre falara, e muito, e agora via-me calado e ensimesmado. Deixara de viajar frequentemente, como fizera toda a vida, e os locais estranhos eram visitados apenas no pequeno ecrã com que entretinha as horas que não passava a teclar.

Politicamente incorreto até à medula, sem ser libertário, raramente deixava perceber quais os meus ideários, mas nunca me cansava de falar em liberdade, em especial, a de expressão e de opinião. Falava da liberdade individual como se ela fosse mais vital do que o pão para a boca ou o dinheiro para pagar as contas. Era de opinião de que todos deviam ter a liberdade que eu (e nós próprios) temos e por isso não me coibia de dizer não quando o entendia, em vez de cortesmente dizer sim quando a mente me dizia não. Não pactuava com falsas noções. Era por isso socialmente incorreto quando dizia que não tinha aparecido porque não lhe tinha apetecido ir, ou quando afirmava que preferia ficar em casa, no meu “castelo” a juntar-se às proles. Aliás, sem cerimónia dizia que me custava estar no meio de multidões, e havia já escrito em 1972 no meu primeiro poema que abria o volume de poesia [Crónica do Quotidiano Inútil] “

— 11 h.

A correr do café com leite para o elétrico torrado.

Palavras marteladas pelo HÁBITO INCÓMODO.

— Quinze tostões.

Direito a empurrões, pisadelas.

O pó é grátis

por vezes, o cheiro da democracia custa a engolir…”.

Devia ser uma ideia premonitória, dado que quando o escrevera ainda não vivera a democracia, pois decorria então a dita primavera marcelista estiolada que foi o estertor do Estado Novo salazarista. Mas é sempre difícil os outros aceitarem estas declarações verdadeiras e honestas, ninguém gosta de saber que alguém não quer estar connosco e prefere ficar sozinho. Não aceitam que seja preferível uma pessoa ficar em paz e sossego consigo mesmo, essa coisa banal que se resume a estar consigo mesmo e não com os outros.

Há momentos para tudo, para estarmos connosco e momentos para estarmos com os outros. Era dessa liberdade que falava e que procurava, quando não estava bem com algo, não deixava que isso me atormentasse e punha termo ao mal-estar. Mesmo que isso implicasse os outros sentirem-se aparentemente ofendidos e tristes por se preterir a companhia deles ao silêncio dum teclado a ser martelado suavemente com ideias. Era dessa liberdade que falava e era essa liberdade individual que prezava mais do que tudo. Era avesso a todas as formas de dirigismo ou de manipulação, queria decidir por mim mesmo, ainda que inconscientemente estivesse a ser manipulado ou influenciado pelo que lia e ouvia.

Já tinha sido assim quando me proibiram de fumar em locais públicos australianos no fim da década de 80 e depois quando em Portugal a mesma cegueira protecionista da saúde se abateu sobre cafés e outros locais em janeiro de 2008. Para mim tratava-se de mais um fundamentalismo que não estava disposto a aceitar. Se as minhas idas ao café já eram pautadas por períodos limitados a mero conjunto de segundos, frações minúsculas de minutos, estes passaram a ser mais curtos ainda, pois embora habitualmente não acendesse um cigarro após o café, passei a acendê-lo apenas para provar que o podia fazer quando queria e não quando os outros deixassem. A minha relação com os outros era sempre problemática e resumia-se à minha aversão pelos ditames alheios. Fora assim com a autoridade paternal, com as autoridades militares no decurso da minha vida como oficial do exército e no decurso da minha vida profissional. Era avesso aos “carneiros” e talvez por isso mesmo acabaria por casar com uma pessoa desse signo.

Despeitava a inveja alheia, noção que me era alienígena, pois invejava nada ou ninguém. Criticava os outros pela fachada que mantinham, pelos estereótipos com que se regiam: conversas balofas e mesquinhas, sem profundidade. Ansiava por conversas profundas, preferia argumentos “intelectuais” ou até mesmo “pseudointelectuais” em que se esgrimissem argumentos, ideias e propostas concretas de melhorar o mundo, pois isso nem a sociedade, em si, nem os políticos, em especial, se encarregariam jamais de fazer. Acreditava que podia marcar a diferença e começava as revoluções em casa.

Deixei sempre aos filhos a liberdade de escolherem a sua vocação religiosa quando tivessem idade, nunca ia à missa só porque sim, como o meu pai fizera sempre, acompanhando religiosamente a minha mãe, essa sim praticante dessas coisas do culto da missa. Os tempos eram outros e não havia já aquele estigma forte de se ser um não-praticante ou um não frequentador de missas. De qualquer modo acreditava ser coerente. Ao contrário dos meus pais, que raramente me deixavam usar o telefone, cedo coloquei telefones nos compartimentos todos da casa para que o filho mais novo pudesse falar ao telefone ou usar a internet, com moderação. Lembrava-me ainda do tempo em que o telefone tinha apenas trinta centímetros de fio e uma pessoa tinha de ficar ali agarrada aquele pedaço de baquelite preto a falar por monossílabos, com o resto da família perscrutando as ondas e o éter a conjeturarem toda uma conversa que se queria privada. Mais tarde, inventei um sistema com um fio de extensão do telefone que se ligava na tomada e dava para esticar o aparelho pelo resto da casa. Fosse onde fosse que me fechasse: no quarto, na casa de banho, na varanda, já podia falar com privacidade, mas só o fazia de noite quando os pais já dormiam para poder falar longamente… infelizmente o filho tinha um desprezo para com o telefone igual ao que ele agora sentia por esse meio de comunicação retrógrado e que raramente utilizava por prazer. Mais voltado para as novas tecnologias e um típico autoensinado, o filho desfazia-se em digressões e divagações tecnológicas cibernéticas sempre em busca de descoberta do Santo Graal mesmo que não o soubesse nem sabendo bem o que procurava.

Nasci em 1949, fruto dum pós-guerra que abalou profundamente os alicerces da minha família. De abastada em 1906 e possuidora de três carros durante a 1ª Grande Guerra, pouco se via da velha família com laivos de nobreza. A família sobreviveu mal à Grande Depressão de 1929 com grandes perdas financeiras e a sua redução a uma mera burguesia “cheia de pergaminhos nobres, mas sem cheta” como soía dizer-se então. Embora crescessem a falar francês, inglês, italiano ou castelhano ficou sempre uma certa animosidade pessoal contra Franco e os espanhóis e uma certa empatia com a Galiza. Tinha, também, muito orgulho no apelido Meira, cuja origem descobri ser muito antiga…

O mar da costa norte, mais alteroso que o da costa sul, é sempre motivo para olhar para ele, quando a visibilidade o permite, para lá da janela do meu “castelo” onde tenho o escritório…

54.1. INTRO

Estou a ficar mais eremita e raramente saio do meu “castelo”, nome pomposo que Daniel de Sá deu à “falsa” onde tenho o escritório com vista para as vacas alpinistas e para a costa até à Bretanha. Por outro lado, tenho a satisfação dum dever enorme cumprido: o de ter acabado o “livro da vida” como afetuosamente ou afetivamente lhe chamo. Trata de tudo e de nada, uma ficção histórica narrativa sem heróis nem moral, poderia ser uma lenda ou um diário de bordo de muitas viagens e de muitos anos nos mares salgados que tantas lágrimas e fel deram. Em agosto de 2008 ainda o mês não acabara quando decidi ter direito às merecidas férias partindo de avião para a ilha de São Jorge com pouca bagagem e estas instruções do Onésimo [Teotónio de Almeida]:

 

Ah! Como gostava de perpetuar momentos destes e torná-los permanentes, libertar-me da escravatura que nos impõem como preço de vivermos. Aqui, neste paraíso que o inverno torna bem agreste, as palavras fluem como ondas e vêm desaguar sempre numa qualquer folha de papel. A mente liberta-se das peias do quotidiano e voga ao sabor do mar, como se viver fosse útil ou até necessário. Por vezes, é preciso sair de dentro das ameias do meu “castelo” e vir sentir-me liberto nesta prisão sem grades que as ilhas todas tendem a ser. Podemos, afinal, ser livres dentro de uma prisão e não precisamos de voar como os pássaros, nem nadar como os peixes, basta uma dose de mar e sol, e deixar a mente vaguear, vogando no salgado das ondas … Esta ilha é linda, mas digo-vos do outro lado dela só há mar….

Ouço as ondas aqui onde o mar é rei e senhor de todas as horas.

fui ao lado outro da ilha

lá onde nunca ninguém vai

e vi que era verdade

só há mar, nada mais

por todos os lados menos por um

….

1008 MAIA [AO DANIEL DE SÁ] (PICO 9 agosto 2011)

das penedias da tua maia

avistas o mar

teme-lo

afugenta-lo

com tuas palavras

narras histórias antigas de encantar

contas lendas de tempos que não vivi

habito lendas que ainda não leste

escrevo o que vivo e sinto

da janela do meu castelo

voltado ao grande oceano

à ilha mágica da autonomia

em nevoeiro de s. joão

  1. miguel vive em terra

costas voltadas ao mar

por vezes tenho de o largar

da minha lomba

o mar não temo

nem repelo

nem suas águas em descabelo

nem suas terras de tremores

convulsões

medos, pavores, temores

audacioso ou petulante

abro-me ao seu encanto

enleiam-me adamastores e sereias

e me embalam

deixo-me seduzir

sem atropelo

vogo nas ondas

as correntes me levam

velas enfunadas

ao sabor da maré

nem sei quantos

dias, meses ou anos

andei marejando

sem destino

sem vocação

arribo noutra ilha

mística

mágica

abrigo-me na sombra

de seus cumes

vulcões endormidos

no magnético pico

crio este sortilégio

sem bruxas

nem feiticeiras

curandeiras

mezinheiras

macumbeiras

noutros tempos era astrologia

contavas tu daniel

seus segredos sem papel

hoje é apenas

e já

poesia.

saravá poeta amigo…


116.4. ILHA DA AUTONOMIA junho 2012

Da “falsa” (termo micaelense para o sótão), a janela do meu “castelo” desabrochava sobre o mundo. Enxergo mares. Lobrigo montes. Diviso nevoeiros que desaparecem sem rasto. Vislumbro vacas fiéis ao seu destino ruminante sem desfraldarem queixumes. A chuva inclemente e desapiedada vinha, ora do agreste nordeste (o mata-vacas), ora de oeste ou sul e fenestra o meu “castelo”. As grossas pingas corriam janela abaixo, infiltradas na caleira minúscula sob o caixilho. Toldavam-me o juízo, arrefecendo a minha paciência oriental, gotejando lentamente para o chão.

Mais um inimigo invisível quebrando o cerco permanente que sentia do lado de fora das minhas ameias. Entrei no café. Ao balcão, os do costume. A humidade goteja pelas faces como se fossem paredes. Ninguém parece aperceber-se.

Fantasio, de quando em vez, que a verdadeira autonomia se abaterá sobre o arquipélago criado a ferro e fogo. Aí se vislumbrará a tal ínsula nova. Com ela devaneio. Se a antecipo encoberta componho os óculos, arregalo a íris, foco o invisível. As ondas e as nuvens também conspiram para a ocultarem. Careço de um cartógrafo para a mapear. Enxergo-lhe contornos como se a visse em Braille. Ia jurar tê-la avistado, mais do que uma vez. A minha mulher disse-me que alucinava.

O mar confunde-se com o céu. O horizonte indistinto, em constante mutação, ora cinzento ou azuláceo. Perde-se para além do alcance da visão. Quando fito o grande mar oceano, estou sempre expetante de vislumbrar uma ilha nova a desenhar-se no firmamento. Todos os dias sonho com ela, ora encoberta ora invisível. Acredito piamente que exista para lá da linha impercetível.

Por vezes, as próprias formas e cores das nuvens afiançam esse mistério que os mapas não cartografaram. Confio devotamente. Sei que virá ao meu encontro. Tal como a ilha Sabrina de antanho. Ou outras que surgiam e desapareciam das cartas de marear na época de S. João. Esta é especial. Sempre que posso, perscruto o futuro em busca dela. Esta a realidade que me escapa e, no entanto, está lá. Quando a vir, clamarei o direito a dar-lhe denominação. Designá-la-ei Autonomia. Ia jurar tê-la visto por dentre um belo arco-íris que ia da Lomba da Maia à semiencoberta Bretanha.

Os vaqueiros levantam-se noite cerrada. Continuam a acamar-se cansados dia após dia, semana ou ano de trabalho. Rotinas entrecortadas pelas festas da freguesia. Uma ou outra procissão. Sem queixumes pela má sorte. A mesma que lhes repete destinos ingratos. Resignação amargurada. Lobrigada nas comissuras de peles rugosas, encarquilhadas e sequiosas, sorvendo um copo de mistura ou um abafado. Os campos continuam a ser arados. As vacas mungidas. Chova ou faça sol. Feriado ou fim de semana. A terra e as vacas são elementos únicos mensuráveis da riqueza. Estes vaqueiros só mourejam. Nada mais sabe esta gente além de procriar, como já escrevi algures. Jamais ouviram falar da semana-inglesa. Quase todos andam nas vacas. Ou as têm ou trabalham-nas para terceiros, 24/7/365 (todo o dia, todos os meses, todo o ano). Chova ou faça sol. De tantas em tantas horas estão a mungir as vacas. A levá-las de um pasto para o outro que todo o inverno a ilha se mantém verde.

Os rendimentos são inferiores aos de Portugal (a que muitos chamam o Continente) mas há mais subsídios para rações, para produção de mais leite e sabe-se lá que mais que os burocratas de Bruxelas inventaram.

Nas zonas rurais os filhos, que ainda vão abundando, usam a escola nos interregnos da labuta nos campos. Se faltam e não fazem os trabalhos de casa é porque foram às vacas. Não é opção, mas obrigação. Solidariedade familiar.

Queiram ou não, cumprem o destino boieiro e a vontade paterna, herdada de séculos, sem sombra de desfortuna. Fatalismo ou destino, nunca se interrogam, apenas o cumprem. Vá-se lá a saber. Os medidores de felicidade são pouco fiáveis.

O açoriano vive do imediatismo. Futuro nunca, mas presente sempre à vista, nada arrisca nem previne. Este açoriano é bem diferente do seu antepassado que no século XIX com menos estudos, sem universidade nem Novas Oportunidades criou a Sociedade da Agricultura Micaelense, quiçá o movimento mais importante da história dos Açores.

O comércio da laranja extinguiu-se vitimado por uma doença quando a exportação estava ainda numa fase de ampla expansão, tendo atingido o seu máximo três décadas depois de ter surgido a ideia de criar a tal sociedade. O que esses antepassados anteviram foi que aquela riqueza não seria duradoura devido aos avanços da produção e do transporte na Europa e, em especial na Península Ibérica.

Hoje em dia, as ilhas transformaram-se em vacaria. Não são senão uma imensa leitaria. O quotidiano açoriano, fora das pequenas urbes, é similar à escravatura de antanho. Cuidar de vacas doutrem a troco dum soldo miserável, sem direito a férias, doenças, feriados é servidão. A gleba cumpre horários sagrados sem calendário, religiosamente acatados por homens e mulheres. Apesar de poucas, também por aí andam. Supõe-se que interrompam as lides aquando da gravidez.

Para 2015 antecipa-se o fim das quotas leiteiras, um remate anunciado há muito para essa riqueza artificial. No século XVIII ninguém pudera prever a data exata do fim da exportação das laranjas. Nos últimos anos vem aumentando a produção anual de leite sem que haja do Governo, das autarquias ou das gentes qualquer ação, individual ou coletiva, que comece a prevenir o futuro.

Claro está que os pastos se podem converter em terras de cultivo antes que o Diabo esfregue um olho, mas os trezentos mil ou mais animais não se desvanecem num ápice. Sete anos antes do fim das quotas leiteiras, abordei o Presidente da Junta da Lomba da Maia propondo uma reunião de esclarecimento onde os locais pudessem discutir ideias (se as tivessem) sobre a reconversão que terá de haver. Nem um se mostrou interessado, decerto pensaram que um urbano como eu nada teria para lhes comunicar sobre o ganha-pão deles.

Daqui a pouco não existirão fundos europeus para a excessiva produção de leite que se regista nas ilhas e ficarão sem nada. Depois do fim da gesta heroica e brutal dos baleeiros, que Dias de Melo retratou, aproxima-se o fim da era do leite. Virão dias de fome e de aflição. Nada ou muito pouco foi feito para a reconversão desses milhares de famílias que vivem do “leite” num ciclo vicioso de maiores produções para “sacar” maiores fundos europeus. Quem sabe se não poderiam converter as vacas leiteiras em produtoras de carne da melhor qualidade para exportação? Podiam usar a tecnologia existente e a mão-de-obra local seria sujeita a uma apropriada componente de atualização de formação e desenvolvimento pessoal?

Nos EUA já há quem aproveite o estrume do gado bovino para produzir energia ecológica…será que estes campos podem produzir biodiesel? Por outro lado, como a terra é fértil, quando se acabarem as vacas gordas leiteiras poderiam diversificar e manufaturar queijos, aproveitar os solos úberes para criarem outros produtos agrícolas para mercados de nicho e exportar para o mundo.

Infelizmente, não vi nem ouvi nenhum dos técnicos agrários, vulgo engenheiros, propor ou estudar quais os mercados de nicho que estas férteis terras poderiam fornecer. Falta visão como quando o chá sucedeu às laranjas. Os políticos insulares, como os seus congéneres continentais, vivem nas suas torres de marfim condicionados ao ritmo da reeleição e não deverão ter visão para “imaginar” os Açores daqui a 10, 20 ou 30 anos, tudo é feito pelo imediatismo da próxima contagem de votos, nada se faz nem se percebe que haja quem o queira fazer.

Reservo-me, hoje e sempre, o direito de emitir opiniões e ser controverso quando afirmo que nos meios rurais, os açorianos continuam escravos, tal como os seus antepassados. Mesmo sem o saberem. Há quem alegue que esta escravatura hodierna é bem mais humanizada e de matizes mais esbatidos (decerto nunca foram escravos para o afirmarem…é como o país de brandos costumes).

Seguem destinos tradicionais sem os questionarem. O fatalismo insular pode ser explicado pela brutal aspereza dos elementos: o fogo e as manifestações telúricas. Nesta ilha (ao contrário das restantes oito) as gentes vivem de costas voltadas para a água que os rodeia por todos os lados. Com o credo na boca. A permanente imposição férrea de normas, que aceita sem discutir, como se ainda vivesse sob o medo de uma sociedade feudal, a mesma que persiste nos seus monopólios económicos. Sem se preocupar com a aparência de democracia e igualdade, que a constituição do país consagra no papel. Tal como sucede no ciberespaço, na sociedade do “Second Life”, esta democracia é virtual. A fome será menor que dantes. A dependência, dissimulada de vontade própria, perpetua-se igual. Em nome das santas tradições, procissões e festas. Em nome do Divino Espírito Santo e do Santo Cristo.

A energia positiva dos vaqueiros é muitas vezes canalizada para ações relacionadas com o culto cristão eivado de paganismos, como as romarias tradicionais. Existem alternativas, mandar a escravidão às urtigas e viver do rendimento de inserção social. É o sistema da “Faixa de Gaza” da Ribeira Grande lá para os lados de Rabo de Peixe. A maioria das famílias (com excelente taxa de natalidade), jamais empregadas nem empregáveis, vive do rendimento mínimo. Trabalhar é só para os inúteis.

A autonomia, constituída no papel, ciclicamente pedida com salamaleques e, sempre que necessário, contestada pelo governo central, dá a aparência de liberdade ao ciclo secular repetido. Aquando das grandes tragédias, fruto dos elementos telúricos, fogo e água, a revolta popular manifestava-se nos pés dos que se punham a caminho.

A emigração foi sempre a fuga à fome e escravidão. Iam para paraísos terrenos no lado outro do Grande Mar Oceano, lá donde seus parentes tornavam contando maravilhas. Com a pequena exceção do Havai, o Éden açoriano há séculos que se conjuga nas Américas, primeiro na do sul (especialmente Brasil), mais recentemente, na do norte. Ainda hoje.

Já Daniel de Sá escrevera “Sair da ilha é a pior maneira de ficar nela”, Onésimo diria que era a “melhor”, mas continuava a haver um ou outro revoltado com a miséria, a falta de futuro, a ausência de presente e o excesso de passado, sempre pronto a meter pés ao caminho. Rumo à verdadeira autonomia do dinheiro. A única que permite sonhar. Não há democracia sem capital. Karl Marx nunca o soube. Só com poder de compra se pode ser livre. Sem posses os pobres não podem almejar a liberdade. A emigração é a face visível da verdadeira emancipação açoriana.

Nos Açores há imensas réplicas da macrocefalia de Lisboa e do Terreiro do Paço. Governam como na monarquia absolutista. Nem os cães ladram quando a caravana passa. Até os cachorros são indolentes. Mimetizam as pessoas, acomodadas e aburguesadas. O insuportável e fedorento colonialismo paternalista de Lisboa manter-se-á até que as turbas saiam à rua. Aí sim, pode haver autonomia. Eu clamava, tal como – em tempos idos – exprimira aos líderes timorenses antes de serem independentes, que competia aos açorianos decidirem e traçarem o seu destino. Assim o escrevia já no início de 2008: Em risco de ser, de novo e involuntariamente controverso, creio haver regionalismos autonómicos, como o dos Açores, que deveriam ser incentivados. O desprezo constante a que votam os ilhéus é quase tão mau como a tentativa forçada de desertificação humana no interior profundo de Portugal. Se ora se fala – pouco e mal – sobre os Açores tal se deve a essa maléfica invenção soporífera chamada telenovela que deu visibilidade ao arquipélago.

Para os continentais, quando se fala dos Açores é quase como discursar de Timor Português quando fui para lá em 1973. Sabiam que eram ilhas e pouco mais. Quase como a anedota da pergunta insólita “a senhora é dos Açores, mas é branca?” Não avisaram que a paisagem é verde, as pessoas não. O orgulho em ser-se açoriano é profundo, arreigado ao húmus, mas difuso. Confunde-se com bairrismos de cada ilha ou insularismos de cada freguesia. É prejudicado pela idiossincrasia micaelense de chamar Açores às outras ilhas. Como se S. Miguel fosse o continente português perpetuando noções de dependências e vassalagens obsoletas. Fruto da herança ancestral, do obscurantismo de 48 invernos salazarentos e 35 primaveras bafientas da 3ª República entorpecente e anestesiante, alegadamente democrática… A história ilustra a luta entre a Ilha Terceira e S. Miguel pela supremacia dos capitães donatários, titulares da efémera nobilitude de “capital do arquipélago”. Estes vícios repetem-se hoje. Dado o desdém com que os continentais tratam os autóctones (basta ignorá-los), seria de esperar maior unidade e desejo autonómico. De emancipação. Não independência. Salvo raras exceções, poucos manifestam tais desejos face ao poder central cego e cabeçudo. Parecem satisfeitos com a submissão à macrocefalia de Ponta Delgada, que espelha Lisboa. Em tempos, o açoriano expatriado Manuel Leal escreveu que:

“A revolução açoriana vem-se mostrando à janela há séculos.

Nunca teve uma face persuasiva.

Não a possui em ideologia, embora exista quem assim apregoa.

Fazem-no nos cafés, numa elite dentro da ilha e sem eco.

A revolução à mesa do café não chega a parte nenhuma”.

Se preferissem a emancipação total poderia ser tanto ou mais viável que a do Kosovo, Kiribati ou da Ossétia do Sul. Cristóvão de Aguiar aventava que teriam de ser nove as independências. Talvez quatro bastassem: S. Miguel e a sua colónia de Santa Maria; a Terceira e a colónia da Graciosa; o Faial e a sua colónia do Pico e, por fim as Flores e a sua adjacente Corvo. Podiam ainda considerar as possessões ultramarinas como Toronto, Nova Bedford e outras tantas que por ali havia.

Chegou o tempo de o povo demonstrar capacidade identitária e poder de intervenção perante um país resumido a Lisboa e submisso perante uma Europa dominadora que julga os cidadãos como números, para aumentar ou estabilizar orçamentos.

Cito, uma vez mais e sempre, Martin Luther King “I had a dream”. Sem macrocefalias nem subalternidade. Um governo regional autêntico, sem ser filial de Lisboa, reclamando a verdadeira autonomia sem se arvorar em defensor dos interesses dos que sempre exploraram os ilhéus, sombrias e persistentes personagens que perenizam monopólios. Arrivistas com iniciativas pequenas e isoladas. Limitadas como as ilhas e o país.

A autonomia vive-se hoje apenas em círculos muito restritos, e em alguns escritores e em “expatriados” em Portugal e nas Américas. Surgirá – cremos, um dia -, não à mesa do café, mas da escrita, da “elite esclarecida” (à falta de melhor adjetivação) qualquer movimentação nesse sentido. Haveria mesmo elites pensantes açorianas para além das que se emproam em encontros de intelectuais representando a fina-flor dos que têm direito a nome no jornal? Uns pararam no tempo, outros andam em busca dele, que nunca à frente. A populaça não os segue nem os entende. Nem mesmo os ditos. Apenas ufanos por preencherem as revistas cor-de-rosa? Todos. Incapazes de congregarem mentes, mentem sem insistirem no tema. Temerosos de perderem a caleche em que se pavoneiam na avenida marginal tal como os antepassados de 1890. Nos Açores, compete aos mestres da palavra fácil indoutrinarem e mostrarem o caminho da Atlântida perdida a que se chamou autonomia.

Só então cortarão os cordões umbilicais, alcançando a independência dos que escrevem e partilham a açorianidade. Com a sageza dos seus conhecimentos sonharão com esse momento de libertação. Assim inventaram a literatura açoriana para que ninguém se esquecesse deles e o mundo os não deixasse para trás na sua voragem.

 

CRÓNICA 129, DA MINHA JANELA, 13 maio 2013

Das ameias do meu castelo, desta janela aberta sobre o mundo vi muita coisa e continuo a ver um planeta em permanente mudança. São os vaqueiros que passam a cavalo, em carroça ou em carrinha, rumo às suas vacas e aos depósitos de leite, logo pelas cinco e meia ou seis da manhã em rotinas que se repetem – duas ou três vezes ao longo do dia – até ao anoitecer quando regressam dos pastos pela última vez.

Vejo tratores mais apropriados ao celeiro do Oeste norte-americano, às pradarias, à amplidão dos campos australianos ou aos vastos terrenos da Extremadura espanhola do que ao minifúndio micaelense, depois há uns que são menos gigantescos, mas – mesmo assim – demasiado grandes para estas terras minúsculas, …, mas todos grandes, enormes para as pequenas parcelas de terra aqui na Lomba da Maia. Vejo as crianças barulhentas que voltam da escola primária ou da catequese, a correr, aos berros, à pancada umas com as outras, desobedecendo a mães e avós, a atirarem papéis para a rua, a comportarem-se como pequenas bestinhas que irão ser quando crescerem, saltando para o meio da rua impérvias ao trânsito e à vida que lhe podem roubar a cada momento.

Vejo anciãs de xaile ou lenço na cabeça lenta, mais parecem daguerreótipos do séc. XIX, enquanto vagarosamente sobem a rua rumo aos deveres eclesiásticos da fé, sejam missas, novenas, enterros ou procissões. Parecem viúvas a viver num mundo que já não existe e elas não compreendem a realidade em que estão inseridas… Imagens tiradas doutras eras falando de um passado ancestral imutável durante séculos e que ora deu um pulo para o espaço sideral. Vejo pela janela entreaberta da casa em frente, uma televisão sempre a debitar telenovelas e quejandos, entretendo os anos de vida que faltam à moradora citadina que aqui se desloca em feriados, férias e fins de semana…

Desta janela não vejo, na casa ao lado, o marido que bate na mulher, mas observo a mulher que bate nos filhos, (bem casada ou mal casada?) que não cessa de entrar e sair para falar com todos os homens da aldeia, mais os fornecedores do pão, da fruta, da carne, das roupas e todos os restantes fornecedores das carrinhas que aqui aportam diariamente para venderem os seus produtos. Ela aguarda, aperaltada, que o marido siga para as vacas e vai lampeira em busca de um homem que a ouça e à sua língua viperina, vivendo no quotidiano os sonhos imaginados das telenovelas que lhe enchem as noites. Há mais homens e mulheres assim, rua abaixo e em outras ruas, em freguesias perto e longe.

Da janela vejo aos domingos os homens com fatiotas melhoradas encostados à porta da Igreja ou a beberem uns copos na taberna mais próxima. São os mesmos que não entram na Igreja o ano todo, mas depois se fazem à estrada como romeiros, arrostando com frio, chuva e outras privações. Há ainda os que escapam sempre, sobre quem não impendem acusações de violência doméstica, de pedofilia, de abusos, de alcoolismo, mas que cumprem religiosamente tradições ancestrais que nem sabem explicar nem compreender. Vejo enterros, procissões, casamentos, crismas e batismos (cada vez menos), vendedores (avulso) de cracas e lapas, vendedores de tudo e mais alguma coisa em carrinhas barulhentas na sua distribuição e aliciamento de clientes em tempo de crise. Vejo os montes ora verdes, ora verdes, ou, então verdes, consoante a estação do ano, e as culturas do que lá se planta, ora vazios, ora com vacas alpinistas todo o ano. Mas o que nunca vi desta janela foi alguém a ler um livro…


as em buscas incessantes pelo Santo Graal. Desconfiei sempre que não existia, a não ser na busca incessante com que criamos uma raison d’être nas nossas mentes conturbadas.

Noutro qualquer dia escrevia eu que hoje mal se vislumbra a costa da Bretanha em frente à janela do meu castelo aqui nesta falsa[1] na Lomba da Maia onde habito.

O grande Mar Oceano confunde-se com o azuláceo ou acinzentado céu, depende da cor das lentes com que se acorda.

Está um tempo caramonico, como dizem em Terras de Miranda, sem necessidade de escarrabunhar os pés por estarem carraspudos.

Sinto a falta do sol que me anima e vitaliza nesta humidade entorpecente que amolece corações e fenece almas.

Era assim que desabafava mutuamente numa guerrilha verbal contra esta falta da função clorofilina que cerceia as musas e embota mentes.

E era então que me contrapunha Cristóvão de Aguiar “O tempo está mesmo abafado. Abafa o corpo e sobretudo a mente. Nunca mais há tempo decente”.

Otimista acredito que melhores dias virão. Concentro-me numa conceção positiva rumo à realização dos objetivos que pensa terminar durante o curto passeio terreno que lhe deram a oportunidade de usufruir. Os problemas, por maiores que sejam, são meras contrariedades. Umas maiores que outras. Assim repito para crer no que digo. O tempo as curará retirando-lhes o relevo e importância ou resolvendo-as. Os momentos incomuns de felicidade e alegria devem ser fruídos em plenitude. Comemorados, celebrados, prolongados e recordados. Para isso sirvo-me da escrita. Para reviver momentos bons. Como são normalmente raros convém que perdurem, cinzelados nas pedras da lembrança. Criam trejeitos, esgares de sorrisos nas comissuras dos lábios.

[1] Sótão