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O Café Literário de Florença
Jaime Rocha
23 de agosto a 5 de setembro de 2023 JORNALDELETRAS
O mês de setembro de 1995 ia a meio e encontrava-me no café literário de Florença, o Giubbe Rosse, que tinha tido um cliente muito especial, o escritor Italo Calvino que ali se deslocava de bicicleta todos os dias para tomar café e ler o jornal. Costumava sentar-se na mesa junto a uma parede onde estava pendurado um quadro do escritor. Há um mês que ia ali todas as manhãs para dar uma vista de olhos aos jornais estrangeiros, o El País, o Guardian e o Libération. Nesse dia, uma manhã de chuva intensa, a minha mesa estava ocupada por um indivíduo já um pouco grisalho, de sobretudo, que olhava fixamente para o retrato de Calvino. Poderia muito bem ser uma das personagens do escritor saída das “Cidades Invisíveis” ou de “Palomar”. Reparei que havia também uma fotografia de Eugenio Montale, mas o indivíduo não ligava.
– Bom dia, disse eu, posso sentar-me, é que é precisamente nesta mesa que eu me sento todas as manhãs.
O homem fez um sinal de assentimento e continuou a contemplar a fotografia, Calvino com uma gabardina e uns óculos graduados, agarrado à sua bicicleta, encostado a um candeeiro de rua, junto ao café. Ficámos calados durante uma hora, eu tinha acabado de ler os jornais, até que ele decidiu quebrar o silêncio.
– Sabe, eu esqueci-me de tudo, de quem sou, de onde venho, não tenho uma história de vida.
– Então, não diga isso, todos nós temos uma história, um passado.
– Eu não me lembro do meu, de nada mesmo, nem onde nasci, nem onde vivi até hoje.
– Não pode ser, deve haver uma razão para estar aqui hoje neste café.
– Não, nada, hoje cheguei aqui de manhã e sem que nada o fizesse prever perdi a memória, não me lembro de nada a não ser estar aqui sentado e não percebo porquê, nem para que efeito, não sei mesmo como vim aqui parar.
– Então, veio ler os jornais como todos nós fazemos.
– Não, olhei para eles e verifiquei que não reconheço as letras, perdi também essa faculdade.
– Bem, não sei se acredito no que me está a dizer, essas coisas não acontecem assim de um momento para o outro, já viajei por muitos países, da Europa à Asia e à América Latina e nunca fui confrontado com uma situação semelhante, as pessoas esquecem o que não lhes convém, atitudes menos felizes e traições que levaram a acabo, mas o resto fica gravado para sempre e depois a memória não funciona desse modo, primeiro vamos esquecendo os nomes, as terras, as chaves de casa, os óculos, os livros que lemos e só depois nos esquecemos de almoçar.
O empregado de mesa aproximou-se com uma bandeja já cheia de louça usada e levantou as chávenas de café.
– Então, senhor Calvino, já se lembra onde mora?
Fiquei boquiaberto, não podia tratar-se, de modo nenhum, do escritor que tanto admirava, sabia que ele já tinha morrido, cheguei mesmo a visitar o túmulo dele em Siena, aliás, neste dia em que me encontrava no Giubbe Rosse a ler os jornais, 19 de setembro de 1995, fazia anos que Calvino falecera, precisamente 10 anos. Questionei o empregado sobre a identidade daquele inesperado cliente, embora usasse uma gabardina e uns óculos idênticos ao que se via na fotografia do escritor.
– É o próprio, disse o empregado, o senhor Italo Calvino, há anos que vem aqui, esteve um mês fora, acho que num congresso de escritores em Havana, mas está de volta e digo-lhe mais, está a escrever um livro que se irá chamar, disse-me ele “Se Numa Noite de Inverno Um Viajante”. Só que agora anda desmemoriado.
O empregado tinha um bigode fininho que tentava tapar uma falha no lábio e uma tatuagem na mão esquerda. Fiquei nervoso, quase incapaz de reagir, confundido comigo mesmo, a pensar se não terei feito confusão com Ignazio Silone, com Pirandello ou com outro escritor italiano, com Cesare Pavese.
Terei estado mesmo em Siena? Lembro-me de ter visitado o túmulo de Dante em Ravenna, de ter andado pelas igrejas que Stendhal visitou em Florença, de percorrer os sítios no Golfo dos Poetas onde viveram Shelley e Byron, de ter visitado inclusive a casa onde Dostoievsky escreveu “O Idiota”. Mas ia jurar que estive em frente ao túmulo de Italo Calvino, se a memória não me atraiçoa. Enchi-me de coragem, não tinha nada a perder, mas fi-lo com a plena consciência de estar a entrar num jogo, sem cinismo, sem qualquer certeza de que estivesse a fazer o que devia naquele momento. Aquele inesperado cliente era digno de todo o meu respeito, nem por um segundo me veio ao pensamento de que seria um louco, um lunático, alguém com dupla personalidade ou com um ego do tamanho da Itália. Fixei-o com um olhar vagamente entusiasmado e perguntei-lhe:
– O senhor é mesmo o escritor Italo Calvino?
– Não me lembro, respondeu.
– Mas ele já morreu.
– Não me lembro, já lhe disse que hoje de manhã ao entrar aqui a memória varreu-se-me, mas posso dizer-lhe isto que escrevi :“Não me lembro dos dias, relembrar uma coisa significa vê-la pela primeira vez, todo o problema da vida é este, como romper com a própria solidão, como caminhar com os outros, sofrer não serve para nada, a bondade que nasce do cansaço de sofrer é um horror pior do que o sofrimento, a riqueza da vida permanece nas recordações de que nos esquecemos”.
– Mas senhor Calvino, essas palavras que disse não são suas, foi o senhor Cesare Pavese quem as escreveu.
– Não me interrompa, isso não sei, ando a tentar lembrar-me e vou dizer-lhe outra coisa, estou ocupado, não posso agora atendê-lo.
– Ocupado com quê?
– Estou à espera.
– De quem?
– Estou a dizer-lhe que estou ocupado nesta espera, o pior que pode acontecer é não ter nada para esperar
Calei-me, pensei se seria melhor ir-me embora ou fazer como ele, esperar, ficar ocupado numa espera de qualquer coisa, de alguém, só que estava sozinho em Florença, fora lá para visitar a Ponte Velha e passear à beira do Arno, nada mais. De repente, o inesperado cliente, fosse Calvino ele mesmo ou não, começou a questionar-me.
– E você, que faz em Florença?
– Vim ver os Ufizzi, respondi para que ele me visse como um turista.
– Pois é, não me recordo. E esse livro que tem aí consigo?
– Qual, este?
– Sim, esse, “Por Que Ler os Clássicos”.
– Então, é do senhor Italo Calvino, o escritor.
Não queria acreditar, o indivíduo compôs a gabardina, trocou de óculos, pusera agora uns iguais aos da fotografia do escritor e a cor da gabardina, era a mesma, com o mesmo vinco nas costas, a gola coçada e um jornal no bolso, o mesmo jornal que estava na fotografia, uma edição do La Reppublica. Era magro e alto, andava como ele. Acendeu um cigarro, os mesmos gestos, o mesmo sorriso do escritor. Da porta surgiu o empregado, trazia uma bicicleta.
– Aqui está, senhor Calvino.
– Até amanhã Roggerio, vou para casa escrever.
O empregado aproximou-se da minha mesa, limpou-a com um pano e disse, sorridente:
– Este Calvino é um génio, o melhor que temos em Itália.
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