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O ASSALTO AO ESTADO
Daniel Oliveira
Expresso, 20.06.2020
Mergulhado no torpor da pandemia, o país desfaz-se. Como todos os que têm acesso privilegiado ao espaço público, recebo apelos diários de denúncia. São tantos que nem sei para onde me virar. Se é assim na minha humilde caixa de correio, não imagino como será nos ministérios. Temos de ser pacientes, são muitos problemas ao mesmo tempo, fui respondendo.
A paciência acabou esta semana, quando se confirmou que entidades sediadas ou com filiais em paraísos fiscais fora da UE podem concorrer sem qualquer restrição aos apoios extraordinários do Governo. Fogem a pagar os impostos cá, mas têm direito a usar os impostos dos de cá. Com prioridade sobre muitos cidadãos desesperados.
PCP e PEV propuseram que isto fosse impossível. Em maio, contaram com o apoio do BE, que insistirá no orçamento suplementar, do PAN e de Joacine. E com a oposição de PS, PSD, CDS e a “irreverente” IL, defensora de menos Estado nos impostos e melhor Estado nos subsídios às empresas. O deputado do Chega faltou. Talvez estivesse de serviço, numa das empresas dos irmãos Caiado Guerreiro, fiscalistas especializados em aproveitar os meandros da lei para pôr dinheiro ao fresco.
Para que não se pintem retratos catastróficos, esta mesma regra foi imposta pelos governos da Áustria, Bélgica, Dinamarca, França, Itália e Polónia. A decisão, aplaudida por várias ONG que se dedicam à transparência fiscal, ficou-se pelas 12 offshores que estão na lista negra europeia. Não constam os que, dentro da União, se dedicam à mesma atividade: Irlanda, Luxemburgo, Holanda, Malta e Chipre. As empresas que lá pagam impostos não lhes vão pedir apoio por causa da covid. Pedem aqui. Pagam numa loja e levam o produto noutra. No fim, perguntam porque temos os cofres vazios.
O ministro da Economia disse que, se esta medida fosse aplicada em Portugal, se estariam a criar “constrangimentos” a empresas que “empregam trabalhadores no território nacional”. Nem sei porque raio cobramos impostos às grandes empresas. Os contribuintes deviam subsidiá-las para nos fazerem o favor de contratar alguém.
Assistimos a um assalto ao Estado. Já foi assim com o lay-off simplificado, instrumento com subsidiação pública a que empresas com maior robustez financeira recorreram mais do que as pequenas. Voltou a ser assim quando o Estado garantiu risco zero aos empréstimos da banca às empresas em apuros e os bancos a cobrarem taxas de juro de mercado.
Tendo os contribuintes como fiadores, os bancos cobram por riscos que não correm. E é assim ao dar dinheiro do Estado a quem não paga os impostos aqui.
Na resposta do ministro, fica claro que se a restrição fosse aplicada os apoios deixariam de fora muitas das maiores empresas nacionais, que usam os recursos e infraestruturas públicas que não ajudam a sustentar. E que, não havendo qualquer entrave externo a uma medida que foi adotada por outros países, só não se combate esta forma de fuga ao fisco porque não se quer. As perdas fiscais de milhares de milhões anuais não são uma fatalidade, resultam de cumplicidade. Com assinatura: PS, PSD, CDS e IL. E a conveniente ausência do Chega. Fossem uns tostões para beneficiários do RSI e Ventura gritaria presente. Já para aborrecer quem lhe paga…
