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Nuno Goulart, do Pico a São Miguel passando por Santa Maria
Surgem nuvens no céu!
Nuno Goulart, natural do Pico, conta-nos um pouco da sua história de vida nesta entrevista. Apesar de bom aluno e de ser vontade da sua mãe que prosseguisse com os estudos, viu-se forçado a abandonar a escola quando completou a quarta classe para ajudar o seu pai nas terras. Cumpriu serviço militar, onde se destacou na especialidade de armas pesadas, trabalhou na Alfândega durante nove anos e foi bancário durante 26 anos, passando pelas transições de Banco Micaelense a Banco Comercial dos Açores e, mais tarde, a Banif. Aos 82 anos, o açoriano revela que há duas coisas que faz melhor com esta idade, nomeadamente cantar e jogar ténis de mesa. Outra actividade que lhe dá muito prazer é a escrita. Já com um livro lançado, Nuno Goulart irá apresentar uma segunda obra, intitulada “Retratos D’Alma”, a 23 de Fevereiro, data em que celebra 60 anos de casamento.
Correio dos Açores – Onde nasceu e onde frequentou a escola primária?
Nuno Goulart (ex-bancário e escritor;82 anos de idade) – Nasci a 28 de Agosto de 1940 no lugar da Mirateca da freguesia da Candelária, concelho de Madalena, na ilha do Pico, talvez o único sítio onde se venera São Nuno de Santa Maria.
Frequentei a escola primária da Candelária e, como faço anos em Agosto, entrei já com sete anos. Era bom aluno e fui passando de classe em classe. Ao chegar à quarta classe, tendo em conta que a turma tinha muitos alunos, todos em condições de ir a exame, embora uns fossem melhores alunos que outros, a professora resolveu deixar atrás alguns, para não ficar sem alunos no ano lectivo seguinte. Então, ficámos quatro, incluindo eu. Ou seja, fiquei dois anos na quarta classe, apesar de estar pronto a ir a exame. Quando fomos fazer a prova, dos quatro alunos, três foram aprovados com distinção e eu fui considerado o melhor aluno em Português. Tinha 11 anos quando finalizei a quarta classe.
Após terminar a quarta classe prosseguiu com os estudos ou teve que ajudar os seus pais?
A minha mãe queria que eu fosse estudar para a Horta, porque no Pico não havia nenhum estabelecimento onde eu pudesse prosseguir com os estudos. No entanto, como não éramos ricos, o meu pai entendeu que eu deveria ir para as terras trabalhar com ele. E assim foi. Normalmente, trabalhava quatro dias “para fora”, isto é, tratava das terras de pessoas abastadas que tinham muitos prédios, para ganhar algum dinheiro, e trabalhava dois dias com o meu pai. Ou seja, a semana de trabalho era de seis dias, trabalhava-se ao Sábado, inclusive.
Rocei silvado, cavei vinhas, semeei batatas, milho, entre outras coisas. Comecei a trabalhar para fora com 14 anos, a ganhar 14 escudos por dia e dizia, em jeito de brincadeira, que cada ano de vida equivalia a um escudo.
No Verão, as principais actividades eram vindimar e apanhar figos. Untávamos os figos com azeite, mais concretamente o bico do meio do fruto quando fica vermelho, com uns paus próprios feitos com algodão e linha embrulhados. Ao untar os figos, estes amadurecem todos passados oito a nove dias. Recordo-me de apanhar selhas de figos que eram para lambicar e fazer a água ardente. Fui criado com isso.
Além disso, a minha avó tinha um estabelecimento onde vendia de fazendas (tecidos) ao metro e mercearias. Lembro-me de embrulhar, com uma determinada técnica, açúcar e farinha naqueles papéis acastanhados. Não éramos ricos, mas nunca passámos necessidades.
Nessa altura era obrigatório cumprir serviço militar. Que percurso fez e como foi a sua experiência?
Naquela altura, íamos à inspecção militar com 20 anos. Quando chegou à altura, antes de nos apresentarmos, eu e quatro amigos, bebemos uns copos e combinámos dizer que queríamos ir para a Marinha quando nos perguntassem qual a nossa preferência. Na época, ir para a Marinha era muito difícil. Dissemos aquilo, no entanto, nunca mais pensámos nisso.
Surpreendentemente, em Agosto recebi uma guia de marcha da Câmara a dizer que tinha sido aceite para a Marinha e tinha que me apresentar em Alfeite até 10 de Setembro.
Só havia os navios “Carvalho Araújo” e o “Lima”, alternando-se cada um no mês. Três amigos arranjaram lugar no “Carvalho Araújo”, contudo, eu e outro amigo não conseguimos. Então, tivemos conhecimento que havia um barco patrulha que vinha a Ponta Delgada de seis em seis meses.
Apesar de este patrulha estar à espera, como não veio a ordem de forma, fomos apresentar-nos ao Chefe de Estado Maior com a guia de marcha. Nesta altura ainda não havia telefones e ele fez um rádio para Alfeite, de onde nos deram indicação para aguardar, pois já não chegaríamos a tempo e que iríamos ser chamados para o Exército. Nunca me esqueço, trataram-nos por mancebos.
Em 1961 vim para Ponta Delgada. A minha especialidade era bateria de costa, ou seja, armas pesadas. Mais tarde, vim a descobrir que estive quase a ir para o Ultramar. Só não fui porque no início da guerra eles não precisavam de armas pesadas, mas sim de atiradores.
Estive em Belém dois meses, até ao juramento de bandeira, e daí fui para a Castanheira fazer a especialidade. Depois de aprendermos a especialidade, iríamos para a Horta acabar o tempo.
Em Dezembro fui para a Horta, para as aulas de cabo e, como fiquei em terceiro lugar, fui logo promovido a primeiro cabo. Não fazia serviço de escala e fiquei sozinho numa arrecadação de material de guerra, onde tinha um quarto pequeno com uma cama. Tinha os fins-de-semana sempre livres e ia a casa. De Inverno, o canal entre o Faial e o Pico mexe bem, apanhei mau tempo algumas vezes.
Tendo em conta que eu era dos melhores classificados e estes é que saem primeiro, saí definitivamente da tropa no fim de Outubro. No total, tive apenas 16 meses de tropa.
Como conheceu a sua mulher? Quando casou e teve filhos?
A minha mulher também é da Mirateca e morava a cerca de 50 metros da minha casa. Começámos a namorar com 13 anos. Escrevíamos bilhetes um ao outro que dávamos a uma amiga dela que servia de intermediária para a entrega dos bilhetes. Quando nos víamos, passávamos um sorriso e pouco mais. A minha mulher é mais velha do que eu dois meses e um dia. No dia em que ela completou 18 anos, eu ainda tinha 17, fui pedi-la em casamento. O meu sogro estava reticente, mas eu sabia que a minha sogra me apoiava. A partir daí, namorámos mais uns anos e eu já ia lá a casa.
Como já namorávamos há muitos anos e estávamos fartos de ir para as festas com a minha irmã mais nova sempre a acompanhar-nos, disse ao meu pai que íamos casar. Tinha apenas 22 anos. O meu pai não se opôs, mas como costumavam dar uma oferta grande, nomeadamente um baú ou uma caixa de madeira com roupas de cama e outras coisas, ele mostrou-se preocupado porque não tinha dinheiro. Então, a solução encontrada foi que, a partir daquele dia, o dinheiro que eu ganhasse a trabalhar ficava para mim, pois antes entregava o dinheiro em casa.
Casámos a 21 de Fevereiro de 1963 e a 23 de Fevereiro de 1964, um ano e dois dias depois, nasceu o nosso primeiro filho, o António. O segundo filho viria a nascer 18 meses depois e demos o nome de Nuno, pois ele nasceu na altura da festa de São Nuno da Mirateca.
Em 1968, nasceu a nossa terceira filha, no hospital da Horta, porém com a denominada doença azul, em que o sangue arterial se misturava com o sangue venoso. Esta menina morreu ao quinto dia de vida. O médico aconselhou a minha mulher a engravidar novamente para tentar ultrapassar o trauma. Em 1971 fomos para Santa Maria por causa do meu trabalho na Alfândega e a minha mulher já ia grávida. O nosso filho Hélder nasceu em Santa Maria. Passado um ano, a minha mulher deu à luz a nossa filha Célia.
Como começou a trabalhar na Alfândega?
A minha avó paterna era da mesma idade que o Sr. Cardeal D. José da Costa Nunes, uma pessoa muito importante e a irmã dele, a D. Chica, era muito amiga do Director-geral das Alfândegas lá fora. Através deles, tive conhecimento que a Alfândega ia admitir três empregados.
Eles punham de Verão uma lancha na baía do Faial e, como tal, precisavam de remadores para tomar conta. A lancha era muito bonita, toda cromada em metal e, como era bem cuidada, estava sempre a brilhar. Curiosamente, a farda de remador era igual à da Marinha, só que era cinzenta em vez de branca. Já que não vesti a farda da Marinha, que muito gostava, vesti a da Alfândega.
No tempo que estive em Santa Maria, ganhava um terço a mais do vencimento. Recordo-me de pagar 62 escudos de renda de casa, incluindo água e luz. Tomávamos banho com uns baldes grandes que tinha uns furos. Quando saíamos, deixávamos um tacho grande com água a aquecer e quando chegávamos a casa já estava aquecida. Lembro-me que, muitas vezes, tinha que estar às 05h00 na Alfândega por causa dos aviões que vinham da América e Canadá. Trabalhei nove anos na Alfândega.
Foi nesta altura da minha vida que comecei a estudar à noite e fiz o quinto ano antigo, ao que chamávamos o curso geral dos liceus, ao mesmo tempo que trabalhava, que equivale ao 5º e 6º anos actuais. Fazíamos a inscrição como externos e íamos fazer exame com os internos, que era igual para todos. A título de curiosidade, no ano em que fiz o exame de Português, o liceu foi assaltado e roubaram as provas que tinham vindo de fora. Então, tiveram que fazer de novo e saiu Frei Luís de Sousa. Por acaso, tinha lido a obra há poucos dias e sabia tudo quase de cor.
Quando vem viver para São Miguel?
Em 1972, depois de ter completado o quinto ano antigo, disseram-me que tinham aberto vagas para o Banco Micaelense. Comecei a trabalhar no banco no dia 1 de Março de 1973. Em Junho do mesmo ano fui ajudar a abrir a agência da Ribeira Grande. Ganhava cinco contos e quinhentos, o dobro do que auferia um professor na altura, que rondava os dois contos e quinhentos.
Depois, com o 25 de Abril de 1974, os bancários nunca mais tiveram aumentos e os professores foram subindo.
Um ano mais tarde, em 1975, abriu a agência da Horta e eu voltei para o Faial. Seis anos depois, em 1981, mudei-me com a minha família novamente para São Miguel e ficámos cá até hoje.
Como foi a sua experiência no Banco Micaelense e como este evoluiu para Banco Comercial dos Açores?
Quando entrei para o Banco Micaelense, fui o empregado número 16. Na época, só existia o balcão da Matriz e a agência da Horta. A agência de Vila do Porto era o número 3. Só mais tarde é que se abriu na Terceira, em São Jorge, na Graciosa, etc.
Reformei-me em 1998. Apesar de ter 26 anos de banco, tinha 9 anos de Alfândega e juntando ao tempo de serviço militar, deu-me a reforma completa. Depois de já estar reformado, com a entrada do euro, chamaram-me para ir trabalhar. Ora, o euro entrou em Janeiro de 2002 e eles pediram-me para ir trabalhar em Outubro de 2001 para preparar a minha entrada. Trabalhei cinco meses a recibo verde. Se não fosse um funcionário sério, eles não me iam buscar. Costumo dizer que não quero ser o melhor em nada, mas quero ser bom no que faço.
Houve funcionários que choraram quando o Banco Comercial dos Açores foi vendido ao Banif. Na altura, enquanto funcionário, foi favorável ou contra esta venda? Porquê?
Fui contra como quase todos os outros funcionários. Sabíamos que, enquanto o Sr. Horácio Roque fosse vivo, ia aguentar o banco, mas que as suas duas filhas, quando o pai falecesse, iam vender o banco. Por outro lado, não nos afectou directamente na medida em que não perdíamos os nossos postos de trabalho.
Vai lançar, no dia do 60º aniversário do seu casamento, o livro ‘Retratos D’Alma’. Este livro fala de quê?
Não podia deixar passar esta data. Este livro é composto por 94 sonetos. Para escrevê-los vim à Biblioteca Pública pelo menos duas vezes estudar os sonetos de Antero de Quental. Quando pensei fazer um livro de sonetos, todos com quem falei aconselharam-me a não me meter nisto, mas, como sou teimoso, decidi ir em frente. O mais difícil para mim foi escrever os tercetos, pois o primeiro verso tem de rimar com o terceiro, o segundo com o quinto e o quarto com o sexto. As quadras eu faço a brincar. Todos os sonetos têm um título.
A sua vida está também marcada pelo canto e a música? Quando surgiu esta aptidão? E como tem evoluído?
Como não havia praticamente mais nada no Pico na altura em que me criei, quando saí da escola, principiei logo a aprender música. A freguesia da Candelária não tinha filarmónicas, tinha era tunas e instrumentos de cordas. Quando comecei, dei o primeiro solfejo de Tomás Borba e depois aprendi a tocar bandolim. Aos 14 anos, já saía a tocar nos ranchos e eu cantava à frente, porque tinha boa voz e bom ouvido.
Além disso, sou dos sócios fundadores do Orfeão Edmundo Machado Oliveira e cheguei a ser ensaiador dos Tenores. Nos últimos três anos, estive no Conservatório em canto livre, onde aprendi a colocar a voz. Tem de se atirar a voz para o palato e usar o diafragma na respiração. Hoje, com 82 anos, digo que faço duas coisas melhor do que quando era novo, designadamente jogar ténis de mesa e cantar melhor.
É também considerado um bom jogador de ténis de mesa…
O Sindicato tem uma mesa sempre armada e eu costumo ir jogar dois dias por semana com alguns amigos. Sou sócio do Inatel há 38 anos e cheguei a ir a Lisboa três a quatro vezes. A última vez foi por equipas. Tínhamos cá, como professores, dois bons jogadores do continente e eu fui com eles disputar o campeonato. Fiquei em casa de um deles em Seia, subimos à Serra da Estrela duas vezes e, como fomos em Maio, ainda vimos neve nos cantinhos onde o sol não chegava. Funcionava da seguinte forma: o campeão de São Miguel jogava com o campeão de Angra e com o da Horta. Destes três, o que vencesse, ia a Lisboa. Recordo-me que esse foi o primeiro ano que São Miguel ganhou à Terceira. Como eu era o mais velho, eles ofereceram-me a taça, pelo que posso afirmar que eu é que tenho a taça de campeão por equipas açorianas. Além desta, tenho uma quantidade delas. No banco eu é que costumava preparar os torneios e ganhava quase sempre.
A sua forma de estar na vida fez com que granjeasse a estima de muitos amigos. Qual tem sido o segredo?
Julgo que é pelo meu feitio. Às vezes digo que as pessoas do Pico são diferentes das de São Miguel. Não me refiro às freguesias, pois no meio rural é diferente, mas em Ponta Delgada, por exemplo, na rua onde moro há pessoas que me vêem todos os dias e conhecem-me, assim como eu os conheço e não dizem nem bom dia, nem boa tarde. Todavia, como tudo na vida, não se pode generalizar, visto que há sempre aqueles que cumprimentam.
Depois de tudo o que tem feito ao longo da sua vida, que sonhos ainda tem por realizar? O que lhe falta ainda fazer?
Com esta idade já não posso fazer muito. O que eu posso fazer melhor agora e que me dá mais gozo é escrever. Neste momento, estou a escrever um livro em quadras para lançar daqui a dois anos. A dificuldade é vendê-los depois.
Carlota Pimentel
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