nós e nós António Bulcão

Nós e nós
Na minha geração, fomos treinados para sermos nós e os outros. Sendo que nós éramos os bons e os outros eram os maus.
Tudo estava programado para nos inculcar no cérebro esta divisão. Os cóbois eram os bons, os índios eram os maus. Os americanos eram os bons, os russos eram os maus. Os livros de banda desenhada e os filmes eram agentes desta doutrinação.
As brincadeiras de rapazes reflectiam, depois, esta deformação do espírito. Ninguém queria ser escolhido para índio, porque os cóbois estavam sempre em enorme vantagem. Bastava um pum com a boca para o índio morrer, mesmo que a pistola fosse de pau. O índio tinha de correr muito mais, até apanhar o cóboi, sendo que, se não lhe tocasse no corpo, o cóboi não morria.
Claro que achava estranha, tão grande diferença. Nos filmes, os índios passavam a cavalo, em gritos de estremecer, e raramente conseguiam acertar com uma flecha num cóboi. Um cóboi atirava-se de cima de um telhado para cima do índio que passava em cima de um cavalo, e caía sempre em cima dele. Isto se lhe faltassem as balas, porque se as tivesse, só com um tiro matava três ou quatro índios.
Passaram ainda alguns anos, até ler umas coisinhas sobre a história da América e perceber que os americanos eram os índios. E passaram ainda mais anos até ver “Danças com Lobos”, e perceber quem eram, afinal, os maus…
Mas foi esta geração, que estava prestes a tornar-se homens e mulheres, a começar a democracia em Portugal. Transportando para a política o vício dos nós e os outros.
Nós os bons, que somos do partido tal. Os outros maus, porque de outro partido. Mesmo dentro do mesmo partido, havia também os bons, que estavam com os líderes, e os maus, que contestavam as decisões da liderança. Os bons, que queriam estar ao pé de quem mandava, para terem passaporte para a Assembleia, e os maus, invejosos que só diziam mal porque não iam para a Assembleia.
Passadas as eleições, as coisas acalmam-se no interior dos partidos, até daí a quatro anos. Mas os nós e os outros continuam na Assembleia. O que vier da oposição é sempre mau, para quem está no poder. E o que vier do governo é sempre mau, para a oposição.
Exemplo: propostas que o PS tinha enquanto oposição, não as implementou quando chegou ao poder. Serviam apenas enquanto era oposição. Para chatear o governo do PSD. Sem preocupações orçamentais. Sim porque sim. Só que, já no governo, nem pensar em ir para a frente com as medidas. Custariam muito. Pesariam muito no orçamento. Aconteceu com a equiparação dos trabalhadores das IPSS. Deviam ser equiparados aos seus congéneres do público. Mais que justo. A trabalho igual, salário igual. Mas depois, em 2000, toca de votar contra uma proposta da oposição que replicava uma proposta do próprio PS anos atrás…
Outro exemplo: nos dias que correm, o PS defende que o Governo deve aplicar os milhões de euros “ganhos” com o aumento de receitas de IVA em ajudas directas para famílias e empresas. Mas, há menos de ano, votaram contra o orçamento proposto pelo governo actual , alegando que o aumento do diferencial fiscal iria causar um rombo nas contas da Região…
Quando somos nós a propor, é lindo. Quando são os outros, que coisa horrorosa. Mesmo que os outros proponham o que já tínhamos proposto.
Este clima de guerrilha não favorece a Região. Menos ajuda a democracia a firmar-se enquanto regime. Que venha o dia em que sejamos nós e nós, sempre que em causa estiver o futuro dos Açores e do seu povo.
António Bulcão
(publicada hoje no Diário Insular)
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