norberto ávila

FOLHETIM
Norberto Ávila
FRENTE À CORTINA DE ENGANOS
Romance
Capítulo 5
Situava-se nas traseiras da casa o quarto de Belmira e
Dionísio, os quais, com o generoso propósito de não
deixarem Clara sozinha no seu aposento do andar
superior, frente às luzes e às sombras do Tejo nocturno,
a convidavam para “um serãozinho”. Sentavam-se os três
no sofá de cretone floreado de rosinhas silvestres e, para
não serem mais originais nem menos afortunados que os
patrões, sorviam doses maciças de televisão. Pois ele
haveria condição mais democrática? O programa que
enchia os olhos e os ouvidos dos senhores da vivenda, a
uns metros dali, na vasta sala de estar, era o mesmo que
regalava os olhos e os ouvidos dos modestos servidores:
Amor com Amor se Paga. E dizia a apresentadora Claudite
Marlene, com sua voz dengosa e requebrada, exibindo o
documento mais apetecível: “Aqui tem, Marco, o seu
cheque de 500 escudos, oferecido pelos famosos
produtos de beleza Afrodix. E outro de 500 escudos
recebe a apaixonada Sandra. / Palmas para ambos, por
favor!” Depois, esmorecida a manifestação
congratulatória, acrescentou: “E, desde já, boa estadia em
Veneza! Estou certa de que vão ser oito dias
maravilhosos!”
Um indicativo musical assinalava o fim do programa, com
aplausos da assistência à mistura.
“Incrível, não é?” comentou Belmira. E pediu ao marido
que desligasse o televisor.
Dionísio, ainda de telecomando em punho, disse: “Foi
uma surpresa de todo o tamanho!”
“Quem havia de dizer!” exclamou Clara. “Além do
dinheiro (que não é pouco), uma semana em Veneza!”
“Aquilo é que foi um segredo bem guardado!”
acrescentou a cozinheira.
E Clara: “Eles aí em casa, muito bem sentados à mesa de
jantar, preparados para este concurso… e nós sem
suspeitarmos de nada!”
“Desta peripécia…” tornou a outra, “nunca me hei-de
esquecer!, acreditem. Cem anos que eu viva!…”
“E é que representaram bem o seu papel!” considerou o
motorista. “Tanto ele como ela!”
A criada levantou-se: “Só é pena ser um amor de
fingimento… um amor impossível.”
“Sim…” suspirou Belmira.
Então Dionísio opinou que o mundo da Televisão (isso
bem podiam elas acreditar) era “um mundo de falsidade”.
Levantou-se também e particularizou: “Refiro-me
especialmente a programas deste tipo.
E a esses do género Perdoa-me se te Ofendi, O que lá Vai
lá Vai, É Tão Bom Fazer as Pazes…! Conheço o caso de
dois amigos, Manuel e António, mas amigos de verdade e
de há muitos anos, que foram uma vez a esse programa
Perdoa se te Ofendi. Certo dia batem à porta do Manuel.
Vai ele abrir. Era a apresentadora do programa, com um
magnífico ramo de flores. ‘Isto é da parte de alguém que
se quer reconciliar consigo!’ Quem será, quem não será?
Ela então, com um sorriso de açúcar, revela-lhe o nome
de António (que muito por acaso estava ali em casa a
jantar naquele dia, mas isso não foi referido,
naturalmente), um amigo com quem ele estaria
desavindo ‘há mais de vinte anos’… Manuel finge certa
relutância em aceitar a reconciliação. Depois de muita
conversa (e a câmara a filmar), porque vira e porque
torna, porque a ofensa tinha sido muito grave, e não sei
que mais, que perdoar era uma coisa muito bonita, acaba
por aceitar o farfalhudo ramo de flores. E promete
comparecer no programa, tal dia, às tantas horas. Retirase a apresentadora, e os dois amigos, por entre
gargalhadas, atacam de novo, e com mais prazer ainda, o
apetitoso arroz de marisco!”
Clara riu-se gostosamente.
“E depois?” perguntou Belmira, levantando-se.
“No dia do programa, frente à apresentadora e frente às
câmaras, Manuel e António caíram nos braços um do
outro, perdoando-se mutuamente de hipotéticas graves
ofensas!” Fez uma pausa, criando expectativa. “Um
pouco antes, mas em particular, cada um havia recebido
o seu cheque de 200 mil escudos!”
E riram-se os três.
“Ai, deixem-me ir embora, que já é muito tarde,” disse
Clara, preparando-se para sair. “Gostei muito deste
bocadinho.”
“E nós também,” respondeu Belmira.
Mas logo a criada suspendeu o passo: “Uma curiosidade
minha, se me permitem: O Menino Marco disse ali… que
era estudante de Arquitectura…”
“Qual quê!” fez a cozinheira.
E logo Dionísio: “Ora… arquitectou essa patranha, e
outras mais. O que ele frequenta é o Instituto Superior de
Publicidade. E já lá o tenho ido levar dezenas de vezes.”
Mais divertidos que preocupados, recolheram-se os
servidores da casa a seus leitos em horas muito cristãs,
que o mesmo é dizer: cerca de uma menos um quarto.
-5-
Apoio: Direcção Regional das Comunidades, Presidência do Governo da RAA
Outro tanto não sucedeu (nem poderia suceder) com os
senhores, que ansiosamente aguardavam a chegada de
Marco e Sandra, heróis e anti-heróis daquela noite,
consoante o ponto de vista.
Glória, sentada no sofá de veludo cor de beringela, dava
evidentes sinais de irresistível sonolência. Fortunato e
Laura, mais ou menos espicaçados pelo nervosismo,
deambulavam de um lado ao outro, desencontrados.
Laura, que se apercebeu da dormência da sogra,
consultou o relógio de pulso. E disse: “Já passa da uma.”
Dirigiu-se a Glória e despertou-a, com suficiente
amabilidade. “Ó Glorinha, minha sogra, vamos mas é
deitar.”
“Hã? O que foi?”
“Já é muito tarde.”
“Eles já vieram?”
“Quem?”
“O Marco e a Sandra.”
“Não vieram. E sabe-se lá a que horas…?”
Fortunato deu uma achega: “Sim. Sabe-se lá a que horas…
Pode-lhes ter dado na cabeça ir a algum bar, a alguma
discoteca, festejar o grande acontecimento.”
Laura ajudou a sogra a levantar-se: “Ora vamos lá então.”
“Não vou dormir,” conjecturou a velhota. “Tenho a
certeza que não vou dormir.”
“Pelos sinais, bem visíveis…” respondeu o filho, eu diria
o contrário.”
A contragosto, Glória ergueu-se finalmente: “Quero
abraçar os meus queridos netos. Felicitá-los.”
“É mesmo o que eles merecem:” resmoneou Fortunato,
sarcástico: “abraços e felicitações!”
“Pois então!” acrescentou a mãe.
“Representaram um lindo papel, não haja dúvida!”
insistiu o comerciante.
“Homem, não sejas assim,” contemporizou a mulher. “Daí
não vem mal ao mundo. E… quinhentos mil escudos para
cada um… não é nada que se possa desprezar.”
“Preferia eu dar-lhes esse dinheiro, do meu bolso.”
“Sim,” dardejou D. Laura, “castigando-os como outro dia,
da maneira que sabemos.”
“Preferia, pois. E não ver-me agora neste enxovalho.”
A passo lento, Laura e Glória iam subindo a escada. A
velhota, amparada ao braço da nora: “Não vou dormir.”
“Assim dormisse eu todas as noites,” ambicionou Laura.
“Mal desliza entre os lençóis, já o ressonar se ouve na
casa toda.”
“Credo. Eu não ressono.”
“Quem é então? A Rainha de Inglaterra? / Vamos.”
Súbito, ouviu-se o ruído de um automóvel, aproximandose. Que logo parou.
“Finalmente,” disse Laura, voltando-se para baixo, com a
sogra.
Fortunato Galisteu precipitou-se para a poltrona.
Sentou-se e, pegando num jornal, fingiu-se mergulhado
na leitura.
“São eles?” perguntou Glória.
“Vamos,” respondeu a nora. Mas começou a conduzi-la
no sentido inverso.
Mal reatingiram ambas o piso do salão, eis que Marco e
Sandra faziam a sua entrada, muito eufóricos.
“Oi!” exclamaram eles, em uníssono.
Fortunato mantinha o olhar fixo no jornal.
“Viva!” saudou a mãe.
“Parabéns! Parabéns!” secundou a velha Glória,
precipitando-se para os netos, aos abraços e aos beijos.
Agradeceram os jovens, satisfeitos, perguntando, quase
desnecessariamente, se elas haviam visto o programa.
“Pois não havíamos de ver?” disse a mãe.
“Eu adorei!” acrescentou Glória. “Mas que sorte,
meninos! Fiquei tão contente!”
Fortunato, ainda sem erguer os olhos do jornal,
resmungou: “A mamã faria bem em deitar-se.”
“Homem, que despropósito!” protestou a mulher. “Não
vês que ela está a felicitar os netos?”
“A felicitá-los? E porquê? Posso saber?”
“Que disparate!” acrescentou Laura.
Entretanto, empijamados e movidos por uma súbita
curiosidade bisbilhoteira, Belmira e Dionísio
espreitavam num recanto do corredor.
Fortunato atirou com o jornal e levantou-se
bruscamente. Depois, dirigindo-se aos filhos: “Será que
também eu devo felicitá-los?”
Marco achou que “não seria caso para espanto”; Sandra,
“até a coisa mais natural deste mundo”.
“E seria isso mesmo se eu não tivesse vergonha na cara!”
vociferou o pai.
“Vergonha?!” perguntou o filho. “Porquê?”
“Olha: os telefonemas, manifestando estranheza e
indignação… foram aos montes!”
A mãe achava que tudo aquilo era exagero.
“O pai ficou aborrecido?” quis saber a rapariga. Mas logo
foi dizendo que não havia razão para semelhante
escarcéu…
“Sandra!” esbravejou Fortunato. Não te faças anjinha!”
Glória parecia obcecada: “500 mil escudos cada um…”
“Onde foi que se viu semelhante chorrilho de
asneiradas?!” bradejou ainda o empresário. “Um irmão e
uma irmã apaixonados? A beijarem-se na boca, daquela
maneira, cinematograficamente?!”
“Então?” perguntou Marco. “Foi ou não foi espectacular?”
Em cima, na varanda da escada, presença discreta,
espreitava a criada nova.
“Mais:” insistia o pai furibundo: “com o casamento
marcado para o dia do aniversário da avó!…”
“Ai, achei tão engraçado!” exclamou Glória.
“…dia que, ainda por cima, para mim e tua mãe, tem um
significado tão grande!, por ser o das nossas bodas de
prata!…”
“Adorei esse pormenor,” confessou Laura.
“ E sabe a grande novidade, papá?” perguntou o rapaz. E,
dizendo isto, tirou do bolso um papel dobrado.
Fortunato ficou na expectativa, remascando o rancor
provisório.
“A TV Planeta vai organizar cursos de formação,” revelou neta vai organizar cursos de formação,” revelou Marco.
“A saber: Assistência de Realização…”
Logo a irmã, tirando igualmente um papel do bolso:
“…Noções de Teledramaturgia…”
“Estava lá o cartaz, mesmo à entrada do estúdio,”
acrescentou Marco. “Vai daí, pensei eu: Nos nossos dias,
Publicidade e Televisão são comadres que passeiam de
braço dado. Ora, como temos combinado que, mais ano
menos ano, conseguindo eu o meu diploma de técnico
publicitário, tomarei à minha conta toda a publicidade
dos Supermercados Fortunato…”
“Sim…” murmurou o pai, reflexivo.
“…possuir alguns conhecimentos de realização
televisiva…”
“Sim…”
“…representa uma vantagem considerável.”
“Sim!” exclamou Fortunato, convencido.
“Portanto…” continuou o rapaz, “como este curso é
apenas à noite, três vezes por semana, às segundas,
quartas e sextas-feiras…”
“E o meu é às terças, quintas e sábados,” informou
Sandra.
“… é perfeitamente possível fazê-lo, com uma perna às
costas.”
Fortunato passeava na sala, polegares nos bolsos do
colete: “Esse curso é… gratuito? É pago?”
“É pago,” disse o rapaz.
“Eu pago,” concordou Fortunato.
Sandra, seguindo o pai, perguntou: “E o meu curso
também, papá?”
“Como? Terei de custear dois cursos extra, ao mesmo
tempo? Porque é que a minha filha não se dedica, por
agora, bem a fundo, ao seu curso de Letras?”
“Ora, meu pai,” justificou a rapariga, “Teledramaturgia e
Literatura são aparentadas… e comem no mesmo prato.”
“É verdade,” confirmou o irmão.
“Pronto, Sandra,” condescendeu o pai. “Terás o teu curso
de Tele-não-sei-quê. (Que não sei para que serve, mas
enfim…)”
“Obrigada, paizinho.” E aplicou-lhe na face um beijo
repenicado.
Laura retomou a sogra pelo braço: “Vamos, Glorinha.
Finalmente amainou a tempestade.”
“Parece que sim. Já vou dormir sossegada. Boa noite.”
Sandra e Marco retribuíram os votos da velhota.
Fortunato também, com ligeiros, repentinos prenúncios
de melhor disposição. Pelo que, em tão favorável
circunstância, Laura e Glória recomeçaram a subir as
escadas.
E disse o anafado empresário: “Ora, meus filhos: vamos
então conversar…” Com um gesto amável indicou-lhes o
sofá de veludo beringela. E os adventícios premiados
daquela noite, num alvoroço interior, prepararam-se
para um diálogo elucidativo e salutar.
(Continua)
No photo description available.
3 shares
Like

Comment
Share