NORBERTO ÁVILA FRENTE À CORTINA DE ENGANOS

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A LETRAS LAVADAS E A AICL ACABAM DE LANÇAR O LIVRO

 

FOLHETIM
NORBERTO ÁVILA
Romance
Capítulo 9
Nem três semanas sequer haviam decorrido sobre a inesquecível aventura veneziana dos jovens Galisteus e seu querido companheiro Santiago quando, certa vez, à boquinha da noite, Clara aplicava o terminante retoque num avultado, volumoso arranjo floral, a um canto da sala de estar. Era um gritante atropelo de hortênsias, cravos, gerberas e gladíolos emergentes da folhagem de verdes variados.
D. Laura e Fortunato, com Marco, Sandra e Andreia, formando cortejo de pompa e circunstância, regressavam entretanto do jardim.
“Bravo, Marco,” disse o pai. “A decoração ficou mesmo bonita. O único adjetivo que encontro… é: gostei.”
Sandra moderou um sorriso bem-humorado perante o costumeiro erro gramatical. E o irmão emitiu, acanhadamente, um “obrigado, papá”.
Na opinião de Laura, um decorador profissional não faria melhor.
“Acredito,” acrescentou o abastado comerciante.
“E esse não seria modesto no pedir…” lembrou o decorador-amador.
“Pois tudo isto são maneiras de economizar,” comentou Sandra. “Não é verdade, papá?”
Ouviu-se um toque sucinto na campainha da porta.
“Isto há-de ser o Bruno,” conjeturou a dona da casa.
Clara apressou-se a abrir. E ouviu-se a voz do jovem Santiago, fora, dando boa noite.
“Boa noite, menino Bruno,” correspondeu a criada.
Entrou o rapaz, também muito bem vestido e com dois ramos devidamente acondicionados por mãos sabedoras de florista, sendo um de rosas amarelas, outro de rosas brancas, ambos aromáticos até mais não.
“Cá estou eu. Venho demasiado cedo?”
“De modo nenhum,” contrapôs Fortunato. “É mesmo a hora de darmos início à nossa festa.”
O recém-chegado ofertou à dona da casa o ramo de rosas amarelas: “Este é para a Sr.ª D. Laura. Melhor dizendo: para o casal Galisteu, com as mais cordiais saudações.”
“Muito obrigada,” disse ela, sorridente. E trocaram discretos beijos na face.
Fortunato estendeu a mão ao rapaz, e agradeceu-lhe com um sorriso bonacheiro.
Empunhando o outro ramo, esclareceu Bruno: “E este é para a gentilíssima aniversariante. Onde está a Sr.ª D. Glória?” “Está lá em cima,” respondeu D. Laura, “mas já aí vem.” Voltou-se então para Sandra e pediu-lhe que fosse buscar a avó.
A rapariga, passando à ilharga de Bruno, trocou com ele um beijo, tchuc-tchuc, e dirigiu-se para a escada, que subiu apressada.
“Tudo isto está lindo,” observou o visitante. “A começar pelo jardim.”
“Graças ao Marco,” confidenciou Andreia.
A sala, nesse entretanto, fora-se compondo de convidados, alguns notáveis e outros nem por sombras: D. Teodósio, Bispo resignatário de…; gente da alta finança e do empresariado; pessoal de maior destaque nas funções directivas dos Supermercados Fortunato; algum fornecedor de mais calibre; representantes de certa imprensa divulgadora da fofoquice lisboeta; Claudite Marlene e Zebedeu Corujão; Mestre Libânio, D. Estefânia Pampulha e uns bem seleccionados colegas de estudos de Sandra e de Marco, e outras muitas figuras, figurões e figurinhas cujo nome talvez me ocorra no decurso da escrita deste capítulo, o 9.º (ai valha-me Deus, que o romance ainda só vai a meio! Ou deverei precisamente regozijar-me porque ele já vai a meio? Enfim, a consabida história do pessimista e do otimista perdidos no deserto, a quem faltava beber, na garrafa, um volume igual ao que já tinham bebido.)
A criadagem da casa também primava pela presença mais ou menos folgada, porquanto o serviço da recepção fora, muito acertadamente, confiado a um primoroso restaurante das redondezas. A cozinheira Belmira e o marido, o motorista Dionísio, foram os últimos a comparecer.
Em dado momento, Marco tomou Andreia pela mão e dirigiu-se com ela a Bruno Santiago: “Ainda não conheces a Andreia, pois não?”
“Não tinha esse prazer,” respondeu o outro.
“É minha colega no Instituto Superior de Publicidade,” elucidou o jovem Galisteu.
“Ah,” fez Bruno.
“Olá,” disse Andreia. E beijaram-se na face.
Por outro lado, Marco esclareceu Andreia: que o Bruno era colega da Sandra, na Faculdade de Letras.
Ao alto da escada, acompanhada da neta, em cujo braço se apoiava, fez a sua aparição a velha Glória.
Vinha embaralhada num longo, branco e vaporoso vestido de noite, quase restabelecida de uma entorse num tornozelo, em consequência de pequeno acidente doméstico.
Passando junto de um seu empregado entendido em sonorizações de ambiente, disse-lhe Fortunato: “Prepara-te, rapaz. A música!” E o factotum, diligente e instantâneo, dirigiu-se a um recanto, debaixo da escada, onde se ocultava um gravador de som, que logo manipulou, com um esforço de atenção e desejo de eficácia. Desencadeou-se então uma música festiva, própria da entrada de grande personagem em espectáculo americano, com alguma exuberância de metais.
A luz concentrou-se mais intensa na zona da escada e da área em que se encontrava, alegremente florida, uma cadeira de baloiço. Para ser mais acabado na descrição: pelas voltas e contravoltas do espaldar e dos braços de pau-santo espreguiçavam-se, como em gradeamento de jardim, enramadas de jasmineiro e roseira-brava.
Descendo Glória os últimos degraus, para ali se dirigiu Fortunato e substituiu Sandra na condução da aniversariante até à referida cadeira, já quando a música festiva se desvanecera.
Disse então o dono da casa, em tom discursivo, depois de ter ajudado a mãe a sentar-se: “Mãe gloriosa: Vários são, esta noite, os motivos do nosso contentamento. O primeiro dos quais é, naturalmente, o simples facto de se cumprirem hoje 75 anos sobre o seu prodigioso nascimento.”
“Parabéns! Parabéns!” gritaram os convivas, rompendo em aplausos.
“O segundo motivo,” prosseguiu Fortunato, “está impreterivelmente ligado ao primeiro. Porque eu, que sempre adorei esta mãe que Deus me deu (mãe há só uma, não é verdade?) achei que deveria casar, isto há 25 anos, neste mesmo dia 13 de Junho, dia do seu aniversário e dia do milagroso Santo António. Assim, é este também o momento insofismável (insofismável?) em que Laura e eu celebramos as nossas bodas de prata!”
Aproximou-se então da mulher, que abraçou e beijou cinematograficamente, isto é: com expressiva fogosidade. Os convivas aplaudiram e gritaram uma vez mais “Parabéns! Parabéns!”
Retomando a palavra, disse Fortunato Galisteu: “O terceiro motivo, sendo o último da minha enumeração, é certamente o mais representativo, o mais intermitente. (Intermitente?) Eu explico.” Fez uma pausa breve, preparante de mais substanciais informações. “Como todos sabem, as autoridades competentes tornaram público, há já algum tempo, que, mediante concurso, um novo canal de televisão seria autorizado no nosso País. . Portanto, além das três estações já existentes (TV Lusa, com dois canais, TV Planeta e TV Orbe), uma 4.ª estação virá completar o leque televisivo nacional. Sabem todos do meu interesse em participar em semelhante empreendimento. Quase todos saberão, possivelmente, que entreguei a respectiva documentação, a qual vai ser apreciada por um júri competente, ao longo destes próximos meses. Isto, segundo julgo saber, em competição com outros três concorrentes. . Mas creio, (modéstia à parte), que o nosso projecto reúne todas as condições para vencer.”
“Muito bem! Muito bem!” exclamaram os convivas.
E tornou Fortunato: “O que eu não disse ainda, mas vou dizê-lo já, é o nome por que há-de ser conhecida a nossa querida estação de televisão.” De novo uma pausa, geradora de expectativa. “Pois a nossa estação, certamente com a concordância de todos vós, chamar-se-á… TV Glória!” E indicou, com um gesto teatral, a materna figura.
Rebentaram vibrantes aplausos. Glória mostrava-se comovida. Bruno Santiago aproveitou a maré de entusiasmo para entregar à homenageada o seu ramo de rosas brancas, valorizado com um beijo na face da velhota.
“A minha extremosa mãe,” acrescentou Fortunato, “desde que apareceu em nossa casa o primeiro televisor, ainda a preto e branco (já lá vão vinte e tal anos), sempre mostrou uma devoção fervorosa por essa endrómina que, com o rodar do tempo, também a mim me fascinou. Sem que possa seguir-lhe o exemplo,” e fez um gesto designando a mãe, “em tamanha fidelidade.” Depois, para ela, com um sorriso irónico: “Quantas telenovelas vê por dia, minha mãe?”
“Seis ou sete. Depende.”
“E ainda há que juntar os concursos, os realitinha chós (ou lá como é que lhes chamam)…”
Sandra, que estava junto dele, segredou-lhe: “reality shows”.
“Ou isso. Outra coisa. Ou melhor: Na sequência do que acabo de expor, já todos se aperceberam certamente da honrosa presença de uma velha maquineta…” E apontou-a, ereta sobre um pedestal improvisado, no outro extremo da sala. “Trata-se de uma velha câmara de TV, das primeiras que houve entre nós, segundo me dizem, uma relíquia dos anos 50. Estava para ser vendida para um museu de Nova Iorque. Ou Katmandu? Não sei bem. Comprei-a eu, porque ofereci mais umas notas. Ali está ela, portanto, e a verdade é que até parece manobrada por aquele manequim de loja de confeções. A razão é simples: Nós, família Galisteu, (melhor ainda: Fortunato, que é nome de maior ressonância nacional), depois de nos tornarmos um sólido império de supermercados, preparamo-nos agora para enfrentar outro desafio ousado e incon… incongruente (incongruente?): o de virmos a ser um poderoso império no domínio televisivo. Nestes próximos meses, enquanto aguardamos a decisão do júri, forçosamente favorável às nossas pretensões, habituar-nos-emos à presença indiscreta mas simpática daquela jigajoga e do seu manipulador.” E fez um aceno cordial para aquelas bandas. “Olá, Mestre Câmara!”
Marco, mais com um movimento de lábios que com a própria emissão de voz, parecia transmitir a Fortunato uma palavra: pu-bli-ci-da-de.
O supermercadista (chamemos-lhe assim), tomando em consideração o discreto lembrete, avançou na parlenda: “Escusado será dizer que a nossa querida TV Glória vai ser, incontestavelmente, o natural suporte dos acreditados Supermercados Fortunato! Ainda que eles, com o incremento que ganharam nestes últimos anos, já possam suportar-se a si próprios. Mas enfim… a publicidade é a mola real do êxito comercial. E, dada a sua espess… espessi… especefeci…”
“Especificidade,” segredou-lhe Marco.
“…es-pe-ci-fi-ci-da-de (porra!), esses serviços, verdadeiramente vitais e ‘caris…temáticos’ numa estação de TV, serão entregues a Marco,” e designou-o, “estudioso dessas matérias.”
Regressaram os aplausos. Sandra, mais com um movimento de lábios que com a própria emissão de voz, parecia transmitir ao discursante uma palavra: te-le-no-ve-las.
“E por outro lado,” prosseguiu Fortunato, “obedecendo a uma tendência muito latina, e em todo o caso a um gosto muito português, a transmissão massiva de te-le-no-ve-las será também uma característica da TV Glória. Mas não ficaremos (ao contrário de outros concorrentes nossos) tão dependentes da produção brasileira, mexicana, argentina e venezuelana. Pelo menos 7 a 10 por cento das telenovelas que tencionamos apresentar serão de produção nacional, realizadas nos nossos estúdios. E, a propósito, quero revelar-lhes que um dos Supermercados Fortunato, o de Camarate, menos necessário neste momento, será oportunamente transformado num complexo de estúdios.” Fez uma pausa. E acrescentou: “Mas isto foi um parêntese.” E, para si próprio: “O que é que eu ia a dizer?”
Sandra voltou a prestar-lhe ajuda, com o mesmo movimento de lábios.
“Ah. Já sei. Dado que a Sandra,” e designou-a, “é a verdadeira literata da família, e esteve com um brasileiro durante uns bons meses… aprendendo essa arte certamente difícil e tão apreciada da telenovela… esse sector telenovelesco, digamos assim, ser-lhe-á confiado.”
Saudadas estas palavras com alguns aplausos, o rei dos Supermercados apressou-se a concluir: “É isto, de momento, o que tenho para dizer. A festa, a tripla festa terá o seu ponto alto com uma ceia servida debaixo da grande magnólia do jardim, para isso ornamentada de coloridas grinaldas de papel e balões acesos, em honra do milagroso Santo António de Lisboa…”
“…de Pádua,” opinou D. Teodósio.
“…de Pádua e de Lisboa,” contemporizou Fortunato. “Uma coisa não desvaloriza a outra. Porque há-de ser o berço natal menos importante que o leito mortuário? É que já admito que a festarola possa ser ‘quadrúpede’…”
“Quádrupla,” emendou Sandra.
“Ou isso,” E enumerou, tocando com a ponta do indicador direito as pontas de quatro dedos da mão esquerda:
“Os 75 anos de um nascimento; os 25 anos de um feliz matrimónio; o auspicioso projecto televisivo; a subida ao Céu do Santo universal! Pois seja ele favorável ao nosso desejo mais querido e preocupante, este que acabo de referir. Entretanto, com o acompanhamento de música popular própria da época, confortaremos o estômago com o perfumado caldo verde, a gorda sardinha assada, a famosa broa de Avintes, os ricos vinhos do Dão e do Alentejo, o precioso arroz-doce…”
Bruno interrompeu-o, delicadamente: “Falta-nos ouvir a gentil aniversariante.”
“Ah, sim!” reconheceu Fortunato. “O Bruno Santiago tem muita razão.”
“Apoiado!” exclamou D. Laura.
E Andreia concordou e reforçou a petição: “Queremos ouvir a Sr.ª D. Glória!”
O dono da casa voltou-se para a mãe, com um sorriso orgulhoso: “Então, Sr.ª D. Glória? Venham algumas palavras, simplórias que sejam.”
“Vá lá, minha querida,” encorajou a nora. “Mesmo sentada, que ninguém é de cerimónia.”
A aniversariante, finalmente, vencendo a timidez, aceitou o desafio: “Ora, que querem que eu lhes diga?” Fez uma pausa. Baixou os olhos por um momento. E então, erguendo-os de novo: “Sei muito bem que não nasci para estas grandezas. Sempre fui uma simples mulher, uma camponesa mal adaptada às etiquetas da Capital. Em todo o caso, quero agradecer a festa que me fazem, desta vez porque me atrevo a completar 75 anos. De qualquer modo, estou contente por continuar viva. Oh, sim. Porque tenho um filho e uma nora que são uns encantos de pessoas…”
Aplausos.
“…uns netos que são una amores…”
Aplausos.
“…e vivo numa casa maravilhosa, estimada por um pessoal que me trata como uma senhora fina.”
Aplausos.
Glória, surpreendida ela própria com o à-vontade das suas palavras, preparou-se para concluir: “Sinto uma grande alegria com a comemoração das bodas de prata de Laura e de Fortunato. Oxalá continuem assim felizes até às bodas de ouro. Por essa altura já eu cá não estarei, é quase certo. Mas mandarei um telegrama… e um raminho de margaridas… se o Senhor São Pedro mas deixar apanhar nos relvados celestes.”
Aplausos.
A este passo dir-se-ia que o ambiente se tornara um tanto onírico. D. Glória continuava na sua cadeira de baloiço, que era quase um trono florido, tendo nos braços o ramo de rosas brancas que Bruno lhe oferecera. Dir-se-ia também que uma luz poética, caindo do alto (verdade ou ilusão?), quase a isolava num círculo. E todas as outras figuras começaram a deslocar-se muito lentamente, com aquele movimento retardador, vagarosíssimo, que normalmente se acha próprio dos sonhos, até ficarem definidas as suas novas posições.
Fortunato Galisteu fora sentar-se num sofá da área de convívio principal.
Marco, na poltrona ao lado. Entenderam então os convidados que algo de invulgar estava iminente e logo foram tomando assento onde melhor lhes pareceu, noutros sofás, poltronas e cadeiras. D. Teodósio, por exemplo, flanqueou D. Laura com grande prazer e um sorrisinho por certo eclesial. Mas a Sandra, o Bruno e a Andreia, naturalmente, prescindiram de semelhante comodidade e mantiveram-se de pé.
Súbito, vibrante e sonoro, brotou do gravador japonês um indicativo musical.
Marco e Fortunato concertaram, nas golas dos casacos, os presumíveis, minúsculos microfones. Então, recuperando o ritmo habitual, Marco assumiu uns ares de apresentador de programa e entrevistador; Fortunato, os de entrevistado.
“Senhoras e Senhores Telespectadores,” disse o rapaz, “bem-vindos uma vez mais ao programa A Minha Vida Dava uma Telenovela, que tem o patrocínio da revista Fofocas. O nosso entrevistado de hoje é um homem que, como ele a cada passo faz questão de acentuar, saiu do nada e se fez a si próprio. E a sua presença aqui, como nosso convidado, deve-se ao facto de o Sr. Fortunato Galisteu, (e talvez muito em breve, segundo parece), ir ser nosso concorrente, criando uma nova estação de televisão. Digo bem?”
O entrevistado concertou-se na poltrona e respondeu: “Portanto. Insofismavelmente, trata-se da TV Glória. Glória é o sagrado nome de minha querida mãe. Deus lhe dê vida e saúde, ainda por muitos anos.”
Tutora simbólica desta sonhadora aventura televisiva, Glória abriu-se num sorriso enternecido e balançou-se ligeiramente, por um instante.
“Homenagem merecida, digamos,” comentou o apresentador Marco.
“Oh, e de que maneira!”
“O Sr. Fortunato, hoje detentor desse fabuloso empório comercial, a cadeia de supermercados que tem o seu nome, teve uma infância atribulada, não é assim?”
“Portanto,” respondeu o magnate.
“Quer evocar, – ou recordar –, para os nossos telespectadores, alguns passos dessa infância?”
“O meu pai (puta que o pariu) abandonou minha mãe quando eu ainda gatinhava. Era isto, diz ela, numa terra modesta da Beira Alta, mesmo nos entrefolhos da Serra da Estrela.”
“Bons ares, pelo menos. Bom leite e bom queijo.”
“Mas a minha pobre mãe, coitadinha, tanto que se viu desamparada, tratou logo de arranjar maneira de ganhar algum. Meteu-se então a lavadeira. Foi o que lhe pareceu mais apropriado no momento. De modo que, muito de manhã cedo, passava por casa dos fregueses. Com enormes trouxas de roupa à cabeça, (aquilo foi mesmo uma mártir!, uma mártir e uma heroína!), seguia depois para a ribeira, saltitando de pedra em pedra, até encontrar o sítio da água mais clara. E, como não havia detergentes (qual quê, só apareceram muito depois), era um tal ferver águas, com cinzas, ao jeito de barrela, para branquear os lençóis do Pírulas Boticário e as ceroulas do Sr. Prior.” “Isso é que eram tempos difíceis! E o Fortunatinho, entretanto…?”
“Eu ia ficando aos cuidados de uns vizinhos. Até que fui para a escola, onde aprendi umas letras gordas e uns números atrapalhados.”
“Então e a sua vinda para Lisboa…?”
“Pois foi assim. Uma vez, andava eu pelos meus 11 anos, apareceu lá pela terra, a passar uns dias, um senhor dali mesmo natural, mas que vivia há uns anos em Lisboa, onde tinha uma mercearia. Era isto pelo Natal. E o dito senhor encontrou-me várias vezes na Sociedade de Recreio, onde eu gostava de assistir ao ensaio da banda. Falou-me ele dias a fio, meio falinhas-mansas, meio parlapatão. Achou-me espertalhote. E pediu a minha mãe que me deixasse acompanhá-lo até Lisboa, para entrar de marçano na tal mercearia. Passado dia de Reis, já nós vínhamos por aí abaixo, de comboio, bum-barlabum, bum-barlabum, com muitas cestas de presuntos, queijos e não sei que mais.”
“Aí começou o seu tirocínio merceeiro.”
“O meu quê?”
“A sua aprendizagem na arte de medir o azeite e o feijão.”
“Pois. Esperto como era, aprendi num amém o que o Sr. Inocêncio me quis ensinar. De modo que, para lhe mostrar a minha gratidão, pela hospedagem e pelo ensinamento, habituei-me a medir ligeiramente a favor dele quantos artigos me passavam pelas mãos, no momento de servir o cliente descuidado. E o bom Inocêncio, por sua vez reconhecido com estas minhas habilidades, acabou por atribuir-me um ordenado muito razoável. Melhor ainda, lá mais para diante. De simples merceeiro fez-se armazenista de secos e molhados, e deu-me sociedade na nova firma.”
“Estupendo! Mas, segundo me disse há bocado, ao jantar, esse Sr. Inocêncio tinha uma filha…”
“Portanto. Era aí que eu queria chegar. Laurita, que veio a ser minha esposa. Ela deve estar a ver-me, lá em casa. Posso mandar-lhe um abraço?”
“Oh Sr. Fortunato! Faça favor…”
“Pois aí vai, Laurita.” Ergueu os braços, simulando o amplexo. “Um abraço e um beijinho.” E imitou com os lábios um beijo repenicado.
Ouviram-se aplausos. Depois, tendo ele baixado os braços, ficou um instante imóvel, o olhar abstrato, em todo o caso dirigido à velha câmara de televisão. E foi então que Laura se levantou, com aquele mesmo movimento vagarosíssimo anteriormente descrito, e acabou por sentar-se no mesmo sofá, ao lado do marido. Simultaneamente, e de idêntico modo, Sandra substituiu Marco na função entrevistadora.
Agora soava o indicativo de outro programa televisivo, em que se evidenciavam românticos violinos langorosos.
Sandra e Laura concertaram, nas golas, os presumíveis, minúsculos microfones. E a primeira, terminado que foi o indicativo musical, deu início ao seguinte entretenimento: “Senhoras e Senhores Telespectadores, bem-vindos ao programa Felizes para Sempre, patrocinado pelos preservativos Capuchinho… e dedicado aos casais de vida exemplar.
Temos hoje o prazer de ter connosco o Sr. Fortunato Galisteu, florescente proprietário dos famigerados Supermercados…” (e ele fez vénia) “e de sua encantadora consorte, Sr.ª D. Laura.” (E ela fez vénia.) “Casados, então, há 25 anos, não é verdade?!”
“É verdade,” confirmou D. Laura.
“Graças a Deus,” acrescentou Fortunato.
Sandra, congeminando os passos da entrevista, disse: “Mas, segundo nos confessou a Sr.ª D. Laura, há pouco, ao jantar, as relações entre ambos já vinham de longa data…”
“Exacto,” comprovou a entrevistada. “O meu pai (que Deus haja!) era grossista, melhor dizendo: armazenista de secos e molhados.”
Mas Sandra, parecendo-lhe que tais pormenores já haviam sido tratados no programa A Minha Vida Dava uma Telenovela, e como os espectadores eram sempre os mesmos… no que respeitava a reality shows… ateve-se à informação da própria D. Laura, sobre aquelas relações, “que já vinham de muito antes…”
“É isso. Bem vê… O meu pai (Deus lhe dê Céu!) recebeu o Fortunato lá em casa… era ele pequeno…”
“Tinha 11 anos,” informou Fortunato.
“E eu… apenas 8,” acrescentou D. Laura. “De modo que, bastante mais tarde… andava eu pelos 17 anos…”
Então o marido, depois de contar pelos dedos: “E eu… aí pelos 20…”
“Ora, enquanto eu trabalhava no escritório,” recordou a entrevistada, “(tinha a meu cargo toda a facturação), o Fortunato trabalhava no armazém. Mas certo dia, tendo eu ido ao armazém, precisamente, aconteceu-me ajudar o Fortunato na embalagem de qualquer mercadoria…”
“Especiarias várias,” recordou ele, “lembro-me bem…”
“O certo é que o novelo de sisal se me escapa das mãos, rola pelo sobrado e desenrola-se por ali abaixo, pela escada que ia dar à cave. E eu, toda lépida, corro atrás do novelo, onde está ele, onde não está, e grito cá para cima ao Fortunato: ‘Ó Fortunato, acode aqui, por favor!’ ”
“E eu, desejoso de prestar bom serviço à patroazita (que era linda como os amores), precipito-me imediatamente, em busca do bendito novelo. Que estava atrás duma parede de caixas de marmelada.”
Laura ajeitou o cabelo. “De modo que foi assim.”
“E foi muito bem,” disse ele.
“Ora, com o andar do tempo,” explicou ela, “o nosso bom entendimento tornou-se ainda melhor…”
“Como o vinho do Porto…” comentou o grosso comerciante.
Sandra interveio: “E tudo isso acabou em casamento, para 25 anos de felicidade.”
“Pelo menos,” suspirou o anafado Fortunato. “Ah, mas por essa altura (aquilo é que foi uma desgraça!) andávamos nós com as guerras do Ultramar. De modo que a Tropa (aquela gentil senhora!) deita-me o gadanho, e lá vou eu para Angola. Por acaso, e graças a Deus, fiquei como impedido dum capitão, que me facilitou a vida. A tal ponto que eu, utilizando os transportes militares, andava pelas roças a comprar café (a preços muito vantajosos, diga-se a verdade), que mandava depois a meu sogro.”
“Quase sempre em aviões militares,” revelou D. Laura. “Tivemos essa sorte.”
A entrevistadora perguntou: “E filhos, entretanto, não havia?”
Nervosamente, Laura pôs-se a escarafunchar nas unhas. E foi Fortunato quem respondeu: “Quer dizer… o primeiro rebento estava encomendado.”
“Pois estava,” confirmou a mulher. “Mas a quem te referes concretamente, Fortunato?”
“Ao Marco. Ao nosso Marco, Laurita.”
“Ao nosso Marco? Pobre criança, que não chegou a ter nome, a bem dizer.”
“Ó mulher, tu hoje pareces abstrusa.”
“O nosso Marco.” E voltou-se para Sandra, a entrevistadora. “A inocência com que ele diz aquilo!”
“Como?” perguntou Fortunato Galisteu, levantando-se. “Dar-se-á o caso…? Explica-te, por favor. Inferno dos infernos!” E agarrou a mulher pelos gorgomilhos. “Foste-me infiel?! Diz lá, puta fingida! Desrespeitaste-me alguma vez? Antes, depois da minha ausência? Durante as nobres guerras do Ultramar?!”
“Não! Larga-me, bruto!”
“Andava eu a defender o território nacional, lá pelas Áfricas, e tu, marafona de pacotilha, metida com outro?!”
“Ai!” E a voz ficou-lhe estrangulada, nas mãos fortes do marido.
(O Bispo D. Teodósio estava varado, direi mesmo atónito!)
E Sandra, a entrevistadora, aproveitou este extraordinário momento de tensão dramática para lembrar aos telespectadores que o programa Felizes para Sempre tinha o patrocínio dos seguríssimos preservativos Capuchinho.
Laura libertou-se, finalmente: “Ai, que eu morro!” Levantou-se e procurou na malinha um lenço, para enxugar o suor da testa. (Era um lencinho de cambraia, com morangos bordados. Porventura aquele que perdeu Desdémona?)
Fortunato, de punhos cerrados, espumava de raiva: “Diz-me a verdade, Laura! Diz-me a verdade… ou dou-te cabo do canastro!”
E ela, titubeante: “A verdade… Queres que eu diga a verdade… quando, afinal, só poderei dizer-te… meia verdade.”
“Meia verdade? E o resto?”
“Pois não sei.”
“Mas sente-se, Sr.ª D. Laura,” solicitou a apresentadora. “E acalme-se, por favor.” E fez a mesma recomendação ao exaltado Fortunato.
Voltaram a sentar-se os cônjuges desavindos. Mas ele insistiu: “Repito, Laura: Diz-me a verdade.”
“Meia verdade, Fortunato, é quanto te posso dizer.”
“Pois venha ela. Com meia verdade…” (E exibia os punhos cerrados) “…quem sabe se não chegarei à verdade toda?!” Depois, mais calmo: “Atraiçoaste-me?”
“Nunca te atraiçoei. Nunca! Respeitei a tua ausência, nesse tempo da guerra de Angola, e sempre, sempre, antes e depois, onde quer que estivesses, onde quer que eu estivesse.”
Fortunato enxugava, também, o suor da fronte: “Então, a que vem esse despropósito de mau gosto?, o de insinuares que o nosso Marco… não é o nosso Marco?”
“Pois dir-te-ei… tudo o que sei… sobre o caso.”
Sandra, a entrevistadora, achou que deveria chamar a atenção dos Sr.s Telespectadores para o momento da grande revelação. Que teve o seguinte desenvolvimento:
“Quando partiste para Angola, Fortunato, deixaste-me realmente grávida. De quatro meses, o que era bem visível.”
“E era eu… o promotor dessa gravidez?”
“Homem, que dúvida! Juro! Sou uma mulher honesta!”
“A que vem então essa história mirabolante… de o nosso Marco não ser o nosso Marco? Explica-te de uma vez por todas.”
E ela, depois de breve hesitação: “O nosso Marco… não chegou a ser baptizado.”
“Como assim? O nosso Marco… não chegou a ser baptizado?”
“Pois não.”
“Ó mulher duma figa, do mal o menos. Ainda estamos a tempo… Não se esgotou por estas bandas, creio eu, a água benta nas pias batismais.” Levantou-se num ímpeto: “Mas espera aí…! Então que fantochada foi aquela, hã? Fotografias do baptizado… bem me recordo eu de as ter recebido.”
“Só que… meu querido Fortunato… o nosso Marco morreu… poucos dias depois de nascer.”
“Como assim? E é essa a meia verdade que tinhas para me contar?!”
“Ainda não chega a meia verdade. Apenas um quarto, digamos assim. Mas senta-te e sossega. De outro modo, não terei coragem de continuar.”
“O nosso Marco morreu? E como foi isso de eu nunca ter sido informado? Mas então… inferno dos infernos!… e quem é o nosso Marco?”
Sandra foi até ele, pedindo-lhe que se sentasse. E, tornado cada qual ao seu assento, D. Laura, lamuriosa, prosseguiu o seu relato: “O nosso Marco era um chorão, coitadinho. Não tinha culpa disso. E uma noite, num grande berreiro, acordou-me. Mas, como estávamos mais ou menos na hora da mamada, não me zanguei. Dei-lhe a mamada e, receando que ele me acordasse novamente durante a noite, não o deitei no berço. Meti-o na minha cama, mesmo ao meu lado, muito agasalhadinho. De manhã, quando despertei, achei-o debaixo de todos aqueles cobertores…” (E choramingava, recordando a situação.)
“Sempre tiveste um dormir muito agitado… Não me digas que…”
“Estava… pobre criancinha… mortinho de todo.” Enxugou os olhos com o lenço. “Sufoquei-o, asfixiei-o sem querer, foi o que foi.”
“Oh, sorte malvada! Morto? De uma vez para sempre?”
Laura fez um gesto afirmativo com a cabeça.
“Mas então… e o nosso Marco?”
“Qual deles?”
“Ó mulher, esse que anda por aí.”
“Eu conto tudo em pormenor. Eu conto tudo o que sei.”
Fortunato Galisteu, enxugando uma lágrima com o lenço de algodão monogramado, pedinchou:
“Eu quero toda a verdade, Laurita. Toda a verdade.”
“Eu já disse que só saberia dizer… meia verdade…” Ele então exasperou-se: “Mas venha ela, carago!”
“Sendo assim, bem contra a minha vontade, terei de entrar um pouco na vida alheia.” Fez uma pausa. “A Belmira…” E explicou, voltando-se para Sandra, a entrevistadora: “Refiro-me a uma pobre rapariga que era moça de cozinha numa taberna, lá em frente da nossa primeira casa… na Rua dos Cavaleiros.”
“E que aliás, dali a uns anos,” rematou Fortunato para Sandra, “veio a tornar-se nossa cozinheira.”
D. Laura continuou: “A Belmira, dizia eu, por essa mesma altura… Não sei se tu, antes de partires para Angola, chegaste a notar-lhe o levedar da barriguinha…”
“Sim? Não tenho ideia.”
“Ora, Fortunato… Tu ias lá à taberna jogar às cartas…”
“Ó mulher, preocupado com as perspectivas da viagem, com a tristeza de deixar-te e o receio daquelas guerras… ia lá reparar nesses pormenores…”
“A Belmira, dizia eu, por essa altura em que aconteceu a grande desgraça… Refiro-me à desastrosa morte do nosso Marco… Belmira deu à luz um belo rapazinho. E então, por um lado… porque ela se afligia com a chegada daquele filho ilegítimo, que ela até nem teria grandes possibilidades de sustentar e educar convenientemente… Por outro lado, porque ela me viu assim destruída no meio de tamanho infortúnio… (Refiro-me ao meu infanticídio involuntário…) Concordou em deixar-me nos braços o vergonhoso fruto das suas entranhas… Pobre criancinha. Isto, no maior segredo, de parte a parte.”
“Resumindo e concluindo…” disse ele, levantando-se, “o nosso Marco… não é o nosso Marco.”
Ela ergueu-se também: “Pois não. Não era. Mas passou a ser.”
“Oh, Laura, que tristeza!” E abraçou-se à mulher, lastimoso. “Não há nada como um filho verdadeiro, um filho do nosso sangue!”
“Podia ser pior, Fortunato. De qualquer modo, não temos uma filha?, a nossa querida Sandra?”
E ele, depois de ter dado uns passos em volta: “Mas quanto ao nosso Marco (digamos assim): alguma vez a Belmira se descaiu, dizendo quem era o pai de tão inesperado rebento?”
“Não. Isso queria eu saber. Por simples curiosidade feminina, claro está. Mas nunca ela me deu o mínimo sinal… Tem sido um segredo bem guardado.”
Nisto, apareceu Belmira, transtornada, ao cimo das escadas. Cambaleante, levando uma mão ao peito, apoiou-se com a outra no corrimão, e veio descendo, na maior angústia.
Chegando a cozinheira aos degraus inferiores, Marco correu para ela, de braços estendidos: “Mãezinha!”
“Ó filho, deixa-me, por agora,” respondeu a aflita mulher. “Ai, que eu rebento!”
Marco refugiou-se nos braços de Sandra.
Fortunato atabalhoou uns passos na direcção de Belmira: “Mas o que foi? Que aconteceu?”
“A Clara, aquela galdéria, está fechada no quarto! Com o meu homem!”
Continua…
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