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Os truques da imprensa portuguesa
Se não ouviu falar do Nónio, anda distraído.
O Nónio entra-nos pelos olhos, em mais de 70 sites portugueses detidos pelos seis maiores grupos de media portugueses, na forma de um pop-up que nos pede um registo. Sem esse registo é impossível continuar a navegar, pelo que o utilizador que se quiser manter informado através da leitura de vários jornais tem necessariamente de o fazer, ou de pagar a subscrição de múltiplos jornais – o que, para muita gente, não é uma possibilidade.
É um esforço conjunto da quase totalidade dos media portugueses para recolher os dados dos seus utilizadores e juntá-los num saco suficientemente grande para ter interesse para o mercado publicitário. É uma reação ao modelo de negócio decadente, dependente de publicidade, que pendura redações e jornalistas pelo pescoço com o garrote da atenção.
Antes de chegarmos às críticas, importa por isso deixar esta ressalva: a comunicação social precisa efetivamente de reabilitar o seu modelo de negócio, nomeadamente através de estruturas de financiamento inovadoras necessariamente acompanhadas de um aumento da qualidade do jornalismo. O Nónio, contudo, não é uma solução adequada.
O Nónio é uma ferramenta de segmentação de audiências. Quer isto dizer que a plataforma recolhe dados sobre os utilizadores, cria internamente um perfil de interesses de cada utilizador e depois comunica-o ao mercado publicitário, de modo a que cada utilizador veja conteúdos que lhe são “mais relevantes”.
Se isto lhe parece altamente inovador, é porque não vive neste mundo: Facebook e Google já o fazem há muito tempo.
Os problemas são vários e o maior dos quais é que a internet se torna mais personalizada ao gosto de cada um. “Que bom!”. Não. Não é nada bom. Porque é na internet que lemos notícias, artigos científicos, conhecemos pessoas, compramos produtos. Uma internet personalizada empurra-nos para notícias de que gostamos, artigos científicos que confirmam as nossas teses, pessoas que concordam connosco e produtos que já conhecemos. E afasta-nos de tudo o resto, das notícias que mudam as nossas perceções, dos artigos científicos que desmentem os nossos credos, das pessoas que discordam de nós e de todas as coisas que, por serem diferentes, nos aumentam, nos fazem mudar. A internet faz parte da realidade e a realidade não é, nunca é, apenas aquilo que nós gostamos que ela seja.
Não estamos a exagerar. O Nónio, como outros nónios que por aí andam, não serve apenas para personalizar a nossa publicidade. Diz-nos o Nónio que essa segmentação permite “oferecer conteúdos personalizados, como por exemplo, notícias, anúncios e resultados da pesquisa que entendemos que possam ser do seu agrado”. Ou seja: você vai passar a ver o que um nónio qualquer entender que você gosta de ver. Entregámos o nosso comando da televisão aos outros: aos anunciantes, aos partidos políticos, a quem pagar mais.
Uma internet personalizada cria câmaras de eco, em que temos mais do mesmo e menos do que é diferente. Cria bolhas, reforça convicções em vez de as testar e coloca-nos a todos em alto risco de sermos enganados, pelos outros e por nós próprios – sim, porque a maior parte da desinformação começa com a nossa vontade de acreditar no que nos agrada.
Foi, entre outros factores, a segmentação de audiências, a possibilidade de identificar perfis individuais associados a gostos, inclinações políticas, causas relevantes, que permitiu e empresas como a Cambridge Analytica terem um impacto relevante nos resultados do Brexit ou das eleições americanas (entre tantas outras eleições). Foi, sobretudo, a segmentação de audiências que permitiu a consolidação de factos alternativos e de essa realidade, antiga mas outrora pouco eficiente, das fake news.
A publicidade faz parte do mundo da comunicação há muito tempo, e há muito tempo que o sustenta. A tecnologia evoluiu, permitindo um conhecimento cada vez mais invasivo de cada um de nós. Do ponto de vista económico, fez e faz todo o sentido. Do ponto de vista social, está demonstrado o perigo de alimentar este monstro. Do ponto de vista moral, a falência é evidente.
A comunicação social precisa de um novo modelo: é hoje claro para todos. Este poderá até funcionar do ponto de vista financeiro, mas o seu custo é enorme: para o jornalismo, que se torna hipocritamente cúmplice de uma das maiores causas de desinformação e alheamento da realidade; para os leitores, que passam a viver cada vez mais no seu próprio mundo de ideias feitas e semelhantes; e para a sociedade, que se torna, também ela e por consequência praticamente direta, definitivamente segmentada.
Nónio não. Tem de haver alternativa.
PS: O Nónio é um projeto financiado em 900 mil euros pela Google Digital News Initiative.