NO MEU TEMPO É QUE ERA MAU

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NO MEU TEMPO É QUE ERA MAU
«A televisão só tinha dois canais, éramos obrigados a ver o TV Rural e o 70×7; não havia computadores, nem Internet, não tínhamos acesso a quase nada; Portugal era ainda mais periférico, havia discos e livros que não chegavam cá, os artistas em geral também não passavam por aqui; perante um imprevisto ninguém conseguia avisar que afinal não poderia comparecer a um encontro, ao outro restava-lhe ficar especado à espera; os automóveis não tinham direção assistida e estacionavam-se em cima dos passeios; os condutores andavam com o autorrádio pela mão como se fosse um chapéu de chuva; os jogos do ZX Spectrum demoravam uma eternidade a entrar; as cassetes de vídeo eram de má qualidade e, no final, havia que as rebobinar; viajar era muito difícil, as passagens de avião caríssimas e a rede de autoestradas escassa, de Bragança a Lisboa eram nove horas de viagem; havia uma fila na fronteira para entrar em Espanha e outra para regressar; no desporto não ganhávamos nada a não ser no hóquei em patins; ficámos uma vez em terceiro lugar no Europeu e o Carlos Lopes ganhou a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos e festejámos como se não houvesse amanhã; as cidades estavam cheias de cães vadios e havia o hábito generalizado de cuspir para o chão; não se reciclava o lixo; toda a gente fumava, mesmo aqueles que não fumavam, porque não havia quaisquer restrições, fumava-se mesmo em espaços fechados com crianças por perto; a Medicina dava menos respostas; morria-se mais cedo.
Se olharmos mais para trás percebemos que as coisas ainda eram piores. Porque, nascido em 1974, já sou da geração que cresceu em democracia. Há outros que nem sequer isso. Assim, sempre que oiço alguém repetir a frase “no meu tempo é que era bom”, ponho-me a pensar. E chego à conclusão de que a chave para desvendar o verdadeiro significado da frase está no sujeito omisso. O que eu e todos eles realmente querem dizer é: “no meu tempo é que (eu) era bom”. Era bom porque era mais ágil, mais bonito, sem rugas, com menos preocupações, ia menos vezes ao médico, passava mais tempo na praia, o cabelo ainda estava todo lá, comia o que quisesse e não engordava, corria o dia inteiro e não me cansava, dormia mais de oito horas por dia, julgava-me imortal. E, além disso, todos os meus entes queridos ainda estavam vivos e todos os meus entes queridos eram mais novos. No meu tempo é que eu era bom, agora, enfim, cá se vai andando.
O que seria realmente bom era se tivesse acesso a tudo isto no tempo em que (eu) era bom. Como invejo os miúdos. Como gostaria de poder escolher, desfrutar, descobrir… E de ainda ter tempo. Só me faz confusão aqueles que, perante a enormidade da escolha, se fecham nos mesmos canais, nos mesmos temas, nos mesmos círculos. Apetece-me dizer-lhes: “Aproveitem, que no vosso tempo é que é bom”.»
Manuel Halpern, O Homem do Leme
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