no dia da rádio relembro que aí comecei o meu jornalismo

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95.2. JORNALISMO, UM APRENDIZ DE FEITICEIRO 18 fevereiro 2011
95.2. JORNALISMO, UM APRENDIZ DE FEITICEIRO 18 fevereiro 2011

No fim de 1992 fui suspenso pela Lusa, agência noticiosa portuguesa, depois de inúmeras desavenças ao longo dos anos. O motivo foi ter publicado em inglês uma notícia sobre Ramos Horta, que transmiti e a Lusa publicou mais tarde. Meti a Associação de Jornalistas Australianos ao barulho e foi-me reconhecido que se tratava duma suspensão de serviço por motivos políticos. Jamais voltaria a trabalhar para eles. Conto este episódio em detalhe no meu segundo livro sobre Timor, lançado em 2005 em CD-livro, “Historiografia de um repórter (Timor Leste vol. 2, 1983-1992)”. Já anteriormente me haviam censurado notícias sobre Timor. Inicialmente não compreendia a razão desta censura. A notícia era inócua e decidira confrontar o Gonçalo César de Sá, diretor da agência LUSA (no sudeste asiático e Pacífico). No poder, como primeiro-ministro, Cavaco e Silva, para quem queira encontrar relevância no facto. O senhor diretor da Lusa no Pacífico explicou que o teor da notícia era demasiado sensível motivo pelo qual fora truncada e reduzida. Chamei-lhe uma data de nomes e desliguei. Ligou o senhor diretor, de novo, a pedir calma. Eu perdera-a para sempre. Assim iria terminar lentamente a minha carreira de jornalismo ativo como Correspondente Estrangeiro que ainda mantive até 1994 e que iria deixar e para trás ao sair definitivamente da Austrália em abril 1996.

 

Como atrás se disse, entrei em 1977 para a Rádio (ERM – Emissora de Radiodifusão de Macau) e isso ocupava-me mais algum do meu pouco tempo livre como adiante se verá. Durante os primeiros meses escrevia, lia os noticiários e traduzia telexes (alguém se lembra do que eram?), muitas vezes em direto para poder transmitir as notícias mais recentes. Também apresentava programas musicais após as horas de labuta na CEM. Depois, mais tarde, quando a RTP tomou conta da ERM e se passou a chamar Rádio 7 ou Rádio Macau ao que hoje é apenas a TDM, os diretores acharam ser um perigo ter um francoatirador nas notícias e meteram-me programas musicais na área de produção e em projetos especiais. Mal sonhavam que iria revolucionar a forma como se faziam programas de rádio. Os programas começaram a ser feitos para uma faixa etária até então esquecida, dos 15 aos 25 anos, importando discos de Lisboa e da Austrália. Depois, organizei concertos ao vivo e tardes de dança no hall de entrada da rádio, tendo conseguido que Rão Kyao estivesse lá a atuar durante uns meses. O sucesso era tanto que havia gritos histéricos ao passar pelo Liceu, como me recordaria (aquando do nosso reencontro no 15º colóquio em 2011) o meu jovem ajudante Ricardo Pinto que em 2011 era diretor do jornal Ponto Final e dono da Livraria Portuguesa de Macau. Os programas envolviam, pela primeira vez, a participação dos jovens ouvintes e satisfaziam os seus desejos musicais até então totalmente arredados da estação local que transmitia música pirosa (a música pimba ainda não fora inventada) própria de anciãos de uma qualquer aldeia do Portugal profundo.

Antes do programa Pão com Manteiga que Carlos Cruz celebrizaria no continente português, inventei o meu programa, altamente controverso, “O Whisky e a Cola” com um a introdução de Bette Midler no filme “The Rose” e o separador musical do louco Alice Cooper “We are all crazy”. Era um programa de rock, reggae e de sátira. Pela primeira vez o reggae chegava ao Oriente. Um dia descobrimos que uma estação de Hong Kong nos gravava a música que passava pela idêntica ordem, pelo que nunca mais deixaríamos terminar nenhuma composição sem que a adulterássemos com falas a fim de evitar o plágio de reprodução. A sátira dirigia-se a assuntos de governação e de corrupção, sendo dados cognomes a personagens do governo e fazendo – sobre eles e elas – histórias interessantes. Os mais velhos e mais críticos da governação ouviam o programa às escondidas e enviavam mensagens escritas (ainda não havia SMS nem telemóveis) sobre o mesmo para que ninguém soubesse que eles ouviam.

 

Um certo dia, fui a Hong Kong. Ao regressar nessa noite ao programa, improvisei sobre o nacionalismo das gentes de Macau que encontrei a fazer compras na vizinha colónia, falei dos passeios largos e de outras coisas, quando o então Secretário do Governador (Gonçalo César de Sá que mais tarde, seria meu chefe e diretor da Lusa no Pacífico com sede no Japão) me telefona aflito por suspeitar que eu descobrira uma das maroscas das Obras Públicas. Ele entendera assim, na minha sátira que eu tinha descoberto que os projetos aprovados pelas Obras Públicas aceitavam os prédios com uma determinada cércea, mas depois os donos das obras e os fiscais ganhavam milhões quando prolongavam essa cércea, a partir do primeiro andar até ao limite exterior do passeio…ora bem, isto em prédios de 15 andares ou mais, ao preço do metro cúbico em Macau, era uma verdadeira mina de ouro que iriam cobrar a mais aos potenciais compradores. Esta a história inventada que – afinal – era real…

 

Muitas foram as “charges” e piadas feitas à custa da governação contornando a difícil área da sobrevivência. Para notícias mais importantes tive de me servir de outro subterfúgio. Com efeito, desde que chegara, fizera amizade com os jornalistas Nick Griffin da HK TVB e do Ian Whiteley da ATV e usava-os sempre que precisava de mandar notícias sensíveis para fora de Macau. Ainda hoje guardo religiosamente uma declaração de trabalho como correspondente da televisão de Hong Kong no período em que vivi em Macau. Todos suspeitavam e insinuavam que eu estava por detrás das notícias, mas ninguém podia provar nada, era óbvio que depois de aqueles dois estarem em Macau surgiam logo reportagens escaldantes, e como eles ficavam em minha casa, dois e dois facilmente somados eram quatro. Claro que sempre sustentei que ambos eram meus amigos e jornalistas e, claro que ficavam em minha casa, mas tinham as suas fontes locais até porque o Nick era fluente em cantonense pois vivia em Hong Kong desde bastante jovem. Assim se transmitiram muitas notícias que a censura local e o poder discricionário do governador de Macau tentavam silenciar.

Tempos loucos de pouco dormir e muito trabalhar e folgar (Nota do Autor: folgar não significa fazer folgas, mas sim comprazer-se, divertir-se, tomar parte em folguedos). Levantar pelas sete e pouco, vir almoçar ao Clube Militar ou Clube de Macau, ir dormir uma sesta de meia hora ou pouco mais, trabalhar até às cinco e meia da tarde, vir a casa tomar um duche, seguir para a rádio quando os programas eram às 19.00 ou depois do jantar quando iam das 22 às 24 ou até às duas da manhã. Depois, ia-se cear a um dos restaurantes ainda abertos no Hotel Lisboa ou qualquer outra loja ainda aberta que nessa época havia alternativas além das sopas de fitas, ao ar livre numa qualquer rua com tendinhas e bancos no meio da rua. Numa dessas vezes, num pequeno restaurante, quase em frente ao Hotel Estoril, assisti a uma cena de pancadaria entre seitas…ainda mal começara, bem antes de as cadeiras voarem já eu estava sentado ao volante do meu Cellica com o motor a funcionar antes que o perigo se tivesse sequer aproximado. O meu instinto de sobrevivência era proporcional ao sentido do dever de informar sem medo nem censuras.

Tudo começou em 1967. Iniciei a minha longa carreira de jornalista da forma mais casual possível ao fazer uma reportagem (a brincar, para treinar-me) do Circuito Internacional de Vila Real e da Fórmula 3. Vendi um exclusivo à Rádio Renascença e graças a isso, haveria de trabalhar para eles até sair de Portugal em 1973. A história começa duma forma bem mais prosaica. Estava convidado em Vila Real pelo meu tio Nóbrega Pizarro, que era à data Diretor Clínico do Hospital e responsável médico pela prova. Calmamente assistíamos na bancada principal às provas quando se deu um grande acidente com um corredor chamado Tim Cash, segundo a reminiscência que guardo do incidente. Como falava bem inglês, fui chamado por ele para lhe servir de intérprete. Acabei a entrevistar o acidentado, gravando tudo no meu gravador portátil que já me acompanhava sempre nesses dias para toda a parte. Quando saí do hospital era lógico que todos queriam saber o que se passava (o homem salvou-se sem grandes mazelas) e limitei-me a ver quem me oferecia mais pela fita (naqueles tempos ainda não havia cassetes). Ganhei a alta soma de 500$00 pelo feito.

Mais tarde, escrevi para a Rádio Renascença numa clara demonstração de saber aproveitar as oportunidades. Ofereci-me para colaborar com eles em futuras provas. A RR achou que aquele jovem empreendedor tinha pinta e dignaram-se aceitar-me como colaborador de automobilismo para a Zona Norte. Fui trabalhar com o célebre e popular programa Página 1 de José Manuel Nunes, com colaboradores como Joaquim Amaral Marques, Adelino Gomes, Pedro Castelo. Era o programa de rádio mais ouvido e logo à primeira tentativa, eu tinha entrado. Viriam a ser notáveis as coberturas que faríamos dos eventos desportivos a norte do país.

Curiosamente, uma das notícias mais importantes que transmiti foi, por mero acaso, a da morte de Otis Redding, num desastre de aviação em 10 de dezembro de 1967. Isto porque não se usavam frequentemente telexes (quem se lembra deles hoje?) e eu passava a vida a ouvir estações piratas como a Rádio Caroline, Rádio Luxemburg, onde tinham acabado de dar a notícia. Nessa altura as notícias do mundo demoravam dias a chegar às redações dos jornais e das rádios. Não só nessa época. Mais tarde, em plena década de 1990, ainda enviava os meus despachos para a agência Lusa, para a Rádio Macau (TDM, RTP) e, mais tarde, para o jornal Público através de telex. Tinha de os enviar da baixa de Sidney. Chegava a Lisboa e ao jornal, provavelmente, com mais de um dia e meio de atraso.

O sistema de reportagem fui-o desenvolvendo e melhorando ao longo dos tempos, sem lições de ninguém porque nunca fora feito antes. Inicialmente não me pagavam nada, depois começaram a pagar as despesas, gasolina, telefones e alimentação. Por fim, já tinha uma avença e pagava aos meus colaboradores em cada prova. Era um dos dois maiores sonhos da minha juventude: ser advogado e seguir a carreira diplomática ou ser jornalista. Desde os 12 ou 13 anos que sonhava com essas profissões. Esta já cá cantava, da outra desistiria. Viria a não diplomaticamente acabar por dar muitas voltas ao mundo sem ser advogado nem diplomata.

Numa primeira fase fazia a cobertura de eventos motorizados com o meu melhor amigo e piloto de competição em ralis, o Taka e ocasionalmente um primo ou um amigo juntava-se a nós. Íamos ver as classificativas cronometradas mais importantes e seguíamos em busca dum telefone para dar os tempos desse troço cronometrado. A seguir começamos a ter mais de um carro para fazer a cobertura e podíamos ter várias equipas a transmitir os dados à medida que os concorrentes iam percorrendo os vários troços. Era a verdadeira cobertura em direto e ao vivo. Já nessa época se vivia com muita intensidade a febre dos Ralis em Portugal. Havia gente em todos os montes e serras, fosse a que hora fosse. Por mais ermo e deserto que fosse o local havia lá gente.

Nos primeiros anos o que nos identificava perante os polícias era um cartão (cartolina grossa) retangular prensado (feito por nós) com a palavra PRESS a branco sobre fundo vermelho. Depois mandamos imprimir autocolantes com a identificação da estação emissora e do programa. Havia um gravador portátil de cassetes e um par de auscultadores de estúdio para as entrevistas, à partida e à chegada, com uns fios esquisitos que serviam para transmitir o som através do telefone. Reportagem na hora com meios improvisados e inventados por jovens como eu. Uma vida excitante para um adolescente que me permitia não só contactar com todos os pilotos, como com os organizadores, equipas de assistência, e com as jovens atraídas para estes eventos. Que mais podia desejar? e ainda me pagavam para ter a voz na rádio.

Foram, anos e anos sempre a correr, vividos intensamente entre ralis e treinos num velho Opel Kapitän 1958 ou num Volvo “Marreca” PV 544 de 1959, percorrendo tudo o que era estrada municipal ou caminhos de cabras. Uma vez numa florestal, perto de Gondarém (à saída de Viana do Castelo), saíra uma manada de vacas à nossa frente e quase que embatíamos num pelourinho. Raramente saímos da estrada. Exceção feita ao primeiro rali de iniciados que fizemos em que depois de partirmos de Santa Luzia (Viana do Castelo, de novo) embatemos fortemente contra um penedo. O motor ficou no lugar do pendura e a roda sobressalente veio para o seu lugar. O carro ficou com a frente desfeita. Eu tive umas leves equimoses e hematomas nas costas, os quais depois de devidamente tratados no hospital de Viana nunca viriam a ser do conhecimento de ninguém. Tão abalado fiquei com o acidente que imaginei que vínhamos em sentido contrário aquele em que íamos, saí do carro a correr a cantarolar, sem razão aparente, “Corre Nina” do Paulo de Carvalho, para logo a seguir voltar ao carro para tentar desligar o corta-corrente com medo de que deflagrasse um incêndio.

 

 

Opel Kapitan P II p Volvo “Marreca” PV544 No velho Estádio do Académico do Porto, numa das primeiras provas do campeonato nacional de iniciados 1971 creio que organizado pelo Vigorosa

 

O meu pai desesperava quando eu ia sair de carro com o Taka, e recusava deitar-se até eu chegar. Pois bem, se na maior parte das vezes, a noitada não excedia as duas da manhã, muitas vezes houve em que quase chegávamos ao amanhecer. O meu pai ficava na salinha da televisão, a ler, ou a dormitar, fumando cigarro atrás de cigarro, incapaz de adormecer sem ter a certeza de que o filho chegava são e salvo. Bem deve ter passado as passas do Algarve enquanto eu estava nesta fase difícil. Muitas vezes quando tentava meter a chave na fechadura já lá estava o pai vindo do escuro a abrir a porta e a ralhar-me. Foram anos e anos, só me dedicava a carros e a namoricos.

 

Ao longo dos cinco anos seguintes percorremos Portugal (mais de um milhão de quilómetros era a estimativa da época) por estradas que nunca nenhum cristão visitara. Numa das vezes entramos numa aldeia cujo nome foi esquecido (algures entre Bragança ou Vimioso e Miranda, talvez Outeiro) onde nunca viatura motorizada alguma entrara até então pela porta do seu castelo. A população veio toda à rua aplaudir e fazer perguntas. Muitos nunca tinham visto um carro em toda a sua vida pois jamais haviam saído de lá. Estava-se nos anos 60 e era como se estivessem em plena Idade Média.

Nas estradas mais recônditas de Trás-os-Montes raramente se encontrava movimento, para além de uma ou outra viatura pachorrenta com a sua carga ou um pequeno trator dos que começaram a surgir em Portugal por essa década. Muitas vezes íamos para sítios onde nem um café existia. Noutros, não havia telefones públicos. Ainda se não tinham inventado os telemóveis e a rede dos TLP, futura Telecom, era ainda incipiente nas zonas mais remotas de Portugal.

 

O perigo maior nessas estradas transmontanas, beirãs ou minhotas, eram os burros, as carroças ou os carros de bois e pouco mais. Ainda havia simpáticos cantoneiros a acenarem nas estradas e a cortarem as ervas das bermas. Até hoje muitas dessas estradas jamais viram outro cantoneiro e as casas dos cantoneiros estão infelizmente destruídas, desabitadas e em ruínas. Podiam até ter sido aproveitadas para pequenas unidades de turismo se alguém quisesse ou tivesse visão, mas isso era pedir muito aos portugueses. É um verdadeiro sacrilégio ver o abandono a que foram votados tantos ícones numa era em que o que existia e funcionava bem foi substituído por outras estruturas mais modernas, mas que não funcionam. O desbaratar de riquezas sempre foi apanágio deste país que viveu sempre à custa dos outros, primeiro das especiarias, dos escravos, do ouro do Brasil e mais recentemente dos subsídios de Bruxelas. É uma dor de alma viajar em pleno começo do século XXI e ver pombais abandonados, casas de cantoneiros, estações da velha CP destruídas, com um valioso espólio, incluindo azulejos maravilhosos ao abandono, com as velhas pontes (algumas delas notáveis obras de arquitetura) e os ramais do caminho-de-ferro servindo para criar mato. É criminoso perderem-se as vias de pequena bitola onde dantes circulavam ronceiros, os comboios que estabeleciam o contacto entre o Portugal profundo e os centros de poder. Ignóbil Estado este que assim delapida património da Humanidade!

Hoje as estradas, municipais e secundárias, estão em pior estado do que estavam naquela época. Eu fiz centenas de milhares de quilómetros, entre 1996 e 2005, por estradas secundárias que já percorrera na década de sessenta. Vira-as definharem sem melhoramentos de espécie alguma, com um ou outro remendo de alcatrão, a maior parte delas esburacada e sem manutenção de qualquer espécie, enquanto as juntas de freguesia locais e o novo IEP (Instituto de Estradas de Portugal) se digladiam a ver de quem é a incompetência de não-limpeza das mesmas.

 

Voltando à Rádio Renascença e ao automobilismo, eu e os amigos íamos acompanhando ralis e outras provas de velocidade. As últimas, em cuja cobertura estive, foram nos Circuitos de Vila Real e de Vila do Conde 1972, onde, com o Pedro Roriz, ajudara o já falecido José Fialho Gouveia na reportagem para a RTP. Ali tivéramos o, também já falecido, Adriano Cerqueira a ajudar a contar as voltas ao circuito. Sim, porque naquele tempo ainda não se usavam computadores para contar as voltas. Havia cronómetros para calcular os tempos pois a organização ainda não dispunha de meios para facultar tais dados durante a prova. O Adriano havia acabado de regressar de África onde fizera o serviço militar e estava desejoso de se meter no automobilismo. Mais tarde seria ele, durante décadas, a face do automobilismo na RTP e eu teria a oportunidade de voltar a trabalhar com ele no Circuito de Macau em 1981 e 1982.

Cenas a registar deste período de automobilismo para além das provas em que entrei com o meu amigo “Takatakata” (Ludgero Carvalho de Abreu) quer no seu BMC Mini 1000, num Cooper S 1300, ou no seu Ford Escort Cosworth Lotus 1600, existem muitas das quais irei apenas deixar aqui algumas. Uma vez no Minho, na Serra da Cabreira tentei pedir a alguém que me deixasse utilizar o telefone fixo (ainda não havia telemóveis naqueles dias), a resposta foi a de ser recebido com uma carga de tiros de caçadeira que mal nos deu tempo de correr para o carro em fuga apressada. Isso viria a dar-me a luminosa ideia de passarmos a ter telefones de campanha (telefones como os da tropa) instalados nas provas cronometradas (no início e fim dos troços) o que foi feito, pela primeira vez, nos ralis e provas de velocidade. Passamos a ter um ascendente enorme sobre os restantes repórteres com o envio em tempo real dos resultados dos troços cronometrados. Foi a primeira vez, no mundo, que se procedeu assim. Ainda neste período (talvez em 1970 ou 1971) no velho Estádio das Antas pusemos, pela primeira vez, um microfone sem fios dentro de um carro, enquanto o então campeão nacional (Francisco “Xico” Santos) dava as suas voltas à oval do estádio. Foi também a primeira vez no mundo que se utilizou um meio de transmissão radiofónica dum carro em prova, coisa que hoje é banal com as câmaras de vídeo e imagem a serem colocadas em todos os pontos das pistas e nos carros. Talvez tenha sido a coisa mais inovadora que fiz em toda a vida.

 

Era comum faltar às aulas na universidade e ir acordar o Taka para tomarmos café a Guimarães, almoçarmos em Valença e dar um salto ao Gerês.

Convém lembrar que nessa altura era nas velhinhas estradas nacionais, estreitas e cheias de curvas, passando por tudo que era aldeia e lugarejo, que se faziam as viagens.

Uma média superior a 30 km/h não era nada má. Uma viagem do Porto a Vila Real fazia-se num tempo recorde de duas horas (nós fizemos em tempo recorde de 92 minutos) para pouco mais de cem quilómetros. Uma ida do Porto a Lisboa, antes da autoestrada, era uma proeza para mais de três horas e meia (fizemos uma vez em duas horas e dez minutos). Os condutores “normais” chegavam a demorar cinco horas ou mais. Arrepio-me ainda hoje de pensar nessas viagens.

 

Outras vezes aproveitávamos os feriados como o do 1º de dezembro (princípio dos nevões de inverno) para irmos dar uma volta maior. Normalmente era até ao Gerês para vermos o espetáculo das primeiras neves do ano, ou até ao Alvão e Marão. Outras vezes íamos mais longe. Assim aconteceu em 1970 quando levei o Taka e um primo (Paulo Almeida D’Eça) a Trás-os-Montes passando por Vila Real, Bragança, Vimioso, Azinhoso, seguindo depois até à Serra da Estrela. Dessa vez ficamos a dormir a primeira noite no Azinhoso (em casa das primas e tia), depois de termos passado a reta de Vale da Madre (antes de chegar a Mogadouro) a mais de 120 km/h no Austin Cooper S já debaixo dum forte nevão. Na Serra da Estrela, sem termos correntes para os pneus, a tarefa de chegar às Penhas foi difícil e envolveu um autoatropelamento ao meu primo Paulo Almeida D’Eça. Um de nós ficava na curva seguinte a dizer se o Taka podia tentar subir. Como o gelo era muito, o meu primo foi escorregando e foi apanhado pelo capô do Mini indo, depois, a deslizar estrada abaixo durante vários metros por entre aplausos dos mirones…. Lá chegamos ao cume perante o ar incrédulo de todos os outros automobilistas melhor equipados para aquele clima. O pior foi que não conseguimos dormir em sítio nenhum pois não havia vagas. Nem a minha canção do bandido a uma empregada de mesa serviu para me dar direito a um teto num quarto de pensão. Fomos para o alto da gélida cidade da Covilhã junto ao cemitério, e tentamos dormir alguma coisa sem morrer de frio. De duas em duas horas tínhamos de ligar a chauffage do carro para nos aquecermos minimamente pois não tínhamos levado roupa especial para o frio. Uma noite inesquecível da qual me lembrava sempre que passava pela Covilhã. Ali estivera – antes – em maio 1969 com o Teatro Universitário na estreia da peça de Lope de Vega “Fuenteovejuna”.