A morte, hoje, da escritora Isabel da Nóbrega (pseudónimo de Maria Isabel Guerra Bastos Gonçalves), aos 96 anos, leva-me a repescar aqui a seguinte passagem da minha biografia de José Saramago, alusiva à dolorosa separação conjugal ocorrida entre ambos em meados da década de 1980:
«Ao contrário de todos os livros que publicara na década e meia
anterior, A “Jangada de Pedra” não levava dedicatória a Isabel da
Nóbrega (nem a qualquer outra pessoa), sinal, por parte do autor,
do anúncio subliminar de uma separação. Na verdade, desde “Provavelmente Alegria”, “Deste Mundo e do Outro” (os dois ainda sob anonimato) e “A Bagagem do Viajante” (já assumindo a relação) que nesse introito estava sempre testemunhada a constância do amor de Saramago pela mulher que – inútil negá -lo – lhe dera uma segunda vida, fosse “As Opiniões que o DL Teve (‘Para a Isabel e os meus amigos.’), “O Ano de 1993” (‘Para a Isabel. Este livro, o antes e o depois dele, todos os passos e todos os gestos, todas as palavras ditas e as que estão por dizer. Assim. Mesmo que o tempo não entenda já de coisas como esta.’), “Os Apontamentos” (‘À Isabel, este livro e todos. […].’), “Objeto Quase (‘Para a Isabel, porque me disse de que lado está a vida.’), “Manual de Pintura e Caligrafia” (‘Para a Isabel, tão inseparável deste livro como da minha vida.’), “A Noite” (‘À Luzia Maria Martins, que me achou capaz de escrever uma peça. À Isabel.’), “Que Farei com Este Livro?” (‘À Isabel, cada vez mais.’), “Levantado do Chão” (‘À Isabel, sempre. […].’), “Viagem a Portugal” (‘A quem me abriu portas e mostrou caminhos, à companheira constante que tantas vezes disse: “Repara.” […]’), “Memorial do Convento” (‘À Isabel, porque nada perde ou repete, porque tudo cria e renova.’) ou “O Ano da Morte de Ricardo Reis” (‘À Isabel, outro livro, o mesmo sinal.’). A mulher preterida recusava-se, contudo, a aceitar as evidências, acreditando que a sua ligação com Saramago se mantinha de pé e assim continuaria. Disse-o a José Manuel Mendes: “Ouvi os lamentos da Isabel. Ela entendia que era uma coisa muito passageira e que ele estava a destruir a sua própria capacidade literária, porque nunca mais iria escrever como escrevera até ali: acabaria por não continuar a obra que até aí tinha construído. A Isabel tinha um conjunto de perceções que nunca vieram a confirmar-se. Pelo contrário.” De algum modo, o escritor também alimentaria essa ambiguidade, como se deduz de um episódio evocado por António Oliveira: “O Saramago adoeceu e esteve no Hospital da CUF [à Rua Infante Santo] bastante tempo, numa altura em que estava já numa de se separar. Ele e a Pilar [del Río] ainda não tinham casa em Lisboa, e ele acabou por chamar a Isabel, e a Isabel é que lhe fez companhia no hospital. Ainda esteve lá uma semana ou duas. Foi qualquer coisa de natureza pulmonar.” Acrescenta Zeferino Coelho [editor de Saramago] que, a propósito da edição de “A Jangada de Pedra”, Isabel da Nóbrega, como sempre, comportava -se como a agente literária, não oficial, do escritor: “Eles já estavam de relações cortadas – ainda na mesma casa mas já não se falavam –, e ela telefonou -me a dizer: ‘Preciso muito de falar consigo, porque agora, para o livro do José, eu tenho uma ideia para a capa, que é uma coisa fabulosa, e queria falar consigo, mas quero mais, quero que você aceite a minha ideia, a assuma como sendo sua e não lhe diga nunca que a ideia foi minha, porque se ele sabe que a ideia foi minha já não quer.” […] Apercebendo-se da ameaça da jornalista espanhola na sua vida afetiva, Isabel da Nóbrega desencadeara uma barragem de fogo junto dos amigos da parelha desavinda, na tentativa desesperada de fazer recuar a marcha do tempo. Dessa ofensiva fazia parte um rosário de lamentos, como António Oliveira ouviu […]: “A Isabel chegou -me aqui uma manhã e eu não pude ir trabalhar, estive aqui com ela todo o dia. E ela martelou, martelou, com o Saramago isto, o Saramago aquilo. […] Pedi ao Saramago que fosse jantar comigo, que eu queria falar com ele, e disse-lhe: ‘Ó Zé, não vale a pena, nesta altura do campeonato, vocês já estão há tantos anos, também mais um bocado ou menos um bocado… A única coisa que posso fazer é o seguinte: tem aqui a chave da minha casa, você faça como entender. Faça os encontros que quiser, eu não vou lá, façam de conta que a casa é vossa, mas não deixe a Isabel pendurada, porque realmente nesta altura ela vai morrer, da maneira como ela está pegada a si.’ E ele: ‘Não pode ser, não pode ser, não pode ser…’ Eu ainda tentei que ele não se separasse. […] Pilar reagirá entre gargalhadas a esta história, cujo protagonismo recusa: ‘Isso foi com outra, de certeza, não, nunca comigo. É verdade que o António Oliveira tinha aí uma casa [em Azeitão], mas nunca lá fui.’ […] Correspondendo à sua intransigência amorosa, Isabel da Nóbrega resolveu cortar relações com todos os amigos que suspeitava de terem tomado partido por Saramago na sua opção por Pilar del Río. Um dos atingidos foi António Oliveira: “Que estupidez ela ter-me feito isto. Nós tratávamo-nos como irmãos. Até fui a Paris com ela.” José Jorge Letria também foi visado: «Quando o Saramago a deixa e a Pilar aparece, a Isabel da Nóbrega radicaliza o corte com toda a gente que ela sabia que era amiga dele e afasta-se dessas pessoas, e a mim deixou de me falar. Achou que todas aquelas pessoas que eram amigas do Saramago por razões políticas ou outras, e com as quais ela também tinha uma amizade, a tinham traído a ela, se entendesse que tinham ficado coladas a ele.” Assim como Sérgio Ribeiro e a sua nova mulher, Maria José: “Eu faço parte desse tabu para a Isabel. Tenho muita pena. Tenho saudades dela. […]” A ideia dominante entre os amigos do casal era de respeito pelas escolhas sentimentais de Saramago. Mas pelo menos uma pessoa, Maria Teresa Horta, sentiu as coisas de forma diferente: “Ele tratou muito mal a Isabel da Nóbrega. Tratou-a abaixo de tudo.” A escritora não poupará nas palavras para exprimir quanto o antigo colega de A Capital a terá desiludido: “É perfeitamente execrável, a ponto de estar a fazer autógrafos na Festa do Avante! e eu aparecer com a Maria Velho da Costa, vinda de Londres, sentarmo-nos na outra mesa e ele levantar-se e aproximar -se de nós: ‘Então Maria [Velho da Costa], já sabe que me separei da Isabel da Nóbrega? Ela está uma velha horrorosa.’ Uma mulher que fez tudo por ele, ensinou-o a comer e beber, e diz isto à frente de dezenas de pessoas. Ele era o quê? Um Adónis? As mulheres são umas bruxas horrorosas? Ele foi o amor da vida dela. É tão desagradável falar dele… [..] É um homem horrível, uma aventesma.” Também o médico Carlos Leça da Veiga acompanhou a dor da separação do casal: “Ela fez dele, que era um labrego, um senhor. Se não fosse a Isabel, quem seria o Saramago, que nem sabia comer à mesa? A espanhola [Pilar del Río] é uma equivalente à Inês de Castro.” Mas José Manuel Mendes não compartilha a tese do sofrimento infligido pelo amigo a Isabel da Nóbrega, embora compreenda o lamento dela: “Não tenho essa visão. E acompanhei o caso, até com a Isabel. Ela sabia que eu e o José tínhamos uma amizade muito íntima. A Isabel e eu conversávamos, e mantive sempre uma relação de grande isenção e proximidade afetiva em relação a ela. Sobretudo, ela tinha uma grande dor humana pela perda do homem que tinha escolhido. A Isabel era uma mulher muito bela, e a escolha do José Saramago é uma escolha muito profunda da parte dela também. Tudo aquilo foi para a Isabel muito doloroso.” Sem nunca ter abdicado da amizade com José Saramago, Correia Jesuíno será forçado a reconhecer, acerca de Isabel da Nóbrega: “É uma mulher que eu admiro, porque ela lutou por aquele homem. E depois, realmente, foi assim chutada de uma forma um bocado machista, como um par de sapatos.” […] No que respeita à hipótese de Isabel da Nóbrega ter abdicado de uma promissora carreira literária para impulsionar a de José Saramago, o editor da Caminho [Zeferino] responde positivamente: “Eu acho que sim. Em boa medida, ela devia ter-se dedicado à literatura, mas a verdade é que não se dedicou. Podemos considerar que não devia ter aceitado ser a mulher do Saramago e ter o seu próprio projeto – mas isto é fácil de dizer, porque se as pessoas não se realizam do ponto de vista literário é porque não podem, não é assim uma coisa que dependa da vontade delas. Portanto, ela não estava destinada a ser uma grande escritora, embora as coisas que ela escreveu fossem coisas com mérito, como ‘Viver com os Outros’.”»