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Rosélio Reis is with Isabel Biscaia.
António Biscaia Antunes
Numa das minhas visitas a Lisboa estive com a Isabel Biscaia. Já a conhecia de longa data, através do Facebook e, anteriormente, pessoalmente. Recordo-me de a ter visto mas sem nunca a ter abordado. É uma mariense por acidente. Nasceu na Ilha porque o pai era funcionário do aeroporto de Santa Maria, um dos primeiros e mais antigos. E viveu por cá até aos 14 anos de idade, tendo depois ido viver para Lisboa. Nunca mais voltou. Mas nunca enjeitou o facto de ser cem por cento mariense. Continua com a ilha no coração e adora-a muito mais do que pessoas que por aqui vivem .
Já desisti de insistir para, um dia, nos vir visitar. Vontade tem ela. Mas a saúde, diz, já não o permite. Aliás, seria um erro. Melhor será manter a recordação que tem do lugar onde viveu do que atualizar esse conhecimento. Porque, na realidade, até a casa onde morou já desapareceu do mapa. O quintalinho onde o pai colhia os seus morangos virou mato. E o parque infantil onde passou momentos felizes da sua vida, que tinha a senhora Fernanda como vigilante e cuidadora, também virou mato, onde o silvado está a tomar conta de tudo.
Mas a Isabel mostrou-me umas folhas A4 com as memórias do pai, António Biscaia Antunes. Ele mesmo as escreveu e a Isabel complementou. Escreveu um livro que nunca chegou a ser publicado. Eu li e gostei. A intenção seria ficar como recordação para os seus descendentes. Mas um livro é um livro. E, neste caso, há aqui, nestas cento e oitenta e tal páginas A5, muita informação sobre a sua vida na ilha, onde viriam a nascer as suas duas filhas, que até poderia interessar aos estudiosos da nossa memória comum.
António Biscaia Antunes nasceu em 1925 no Alto Alentejo. Faltavam-lhe sete dias para os dois anos de idade quando a mãe lhe faleceu. Foi viver com o pai e irmãos para Lisboa na Rua do Telhal.
Depois de narrar como foi a sua infância em Lisboa, cheia de histórias engraçadas, fala do seu primeiro emprego na Emissora Nacional, onde conheceu alguns colegas que viria a encontrar em Santa Maria. Foi neste emprego que começou a desenvolver o gosto e o alto conhecimento da tecnologia em geral, que lhe viria a ser muito útil mais tarde.
Em fins de Julho de 1946 foi a uma entrevista de emprego com o Eng.º Victor Veres, que tinha sido colocado recentemente no Secretariado da Aeronáutica Civil, cujo Diretor era o General Humberto Delgado. Ele também tinha estado na Emissora Nacional e sabia que havia ali pessoal excelente para trabalhar num aeroporto, que estavam a tentar equipar com pessoal classificado. O emprego que lhe ofereceram era para trabalhar com “umas máquinas que escreviam à distância” que se chamavam teletipos.
De seguida, o Eng.º Victor Veres levou-o ao aeroporto de Lisboa para encontrar-se com um sargento americano que lhe deu algumas luzes sobre o que seriam aquelas máquinas. Ficou entusiasmado e mais ainda com o ordenado e condições de trabalho oferecidas à partida, que era cerca de 50% superior ao que tinha na Emissora Nacional.
Em 20 de Agosto de 1946, logo após a entrega do aeroporto de Santa Maria às autoridades portuguesas, sai de Lisboa rumo à ilha num Dakota do S.A.C.. Ia a bordo o pessoal que, segundo o jornal “Diário de Notícias” que transcrevo, fazia parte da “nova brigada de pessoal técnico para o apetrechamento do aeroporto, que era constituída por: José Pinto Peixoto, engenheiro meteorologista; Emídio Guerra e Silva, observador meteorologista; António Biscaia Antunes e Mário Nunes Resende, rádio-mecânicos; José Ferreira Gaspar, Ernesto Almeida Neto e José Morais Ribeiro Fonseca, radiotelegrafistas; e Horácio Vieira Januário, controlador de área.”
A primeira impressão que teve quando aterrou foi de ser tudo da cor verde militar. Eram as barracas do acampamento militar americano. O senhor Biscaia relata neste livro todas as peripécias por que passou, inclusivé a falta de farinha para fazer pão, o que o fez comer muitas “bolachas capitão”, rijas de trincar. Fala de várias situações mais perigosas por que passou, do furacão que impediu a inauguração na data prevista (5 de Outubro de 1946) do aeroporto de Santa Maria como Aeroporto Comercial. Os ventos superiores a 200 km/hora devastaram a aerogare, tendo até sido arrastado pela ventania o próprio anemómetro, o que impediu a leitura correta das rajadas do vento. Fala também do incêndio que lhe consumiu a habitação. Fala de serviços mais considerados de “proteção civil” que prestou, passando pelo encalhe do navio “Arnel”, dos apoios à navegação aérea que conseguiu prestar, tirando partido das tecnologias então disponíveis. Note-se que foi também um dos criadores da Estação Emissora CSB 81 do Clube Asas do Atlântico. E durante muitos anos foi um dos sócios mais eficientes daquela estação de radiodifusão. Fala dos amigos que fez e com quem passou muitos dos momentos livres em Santa Maria, da Praia, de S. Lourenço, da Maia, dos Anjos e da Cagarra, dos primeiros acampamentos à beira mar e do nascimento da pousada e das barracas na Praia, que podiam ser alugadas, a preços módicos, pelos funcionários do aeroporto. Tudo apresentado sem grande emproamento mas com a timidez que sobressai de toda a narrativa e sempre acompanhando o texto com as fotografias, já raras, dessa época. Mas também refere alguns acontecimentos mais engraçados que por cá assistiu, incluindo a apresentação da peça “Inês de Castro”, que misturava cenas de outro século com cenas e guarda-roupa mais apropriadas do século XX.
Mas, muito além de ter sido aqui um funcionário extremamente qualificado, e tirando partido do seu aspeto franzino, o que o adaptava para papéis de menino de escola, integrou uma revista de Lopes de Araújo que fez um enorme sucesso Estou a falar da revista “Estás-te consolando”. Mas também colaborou nas gincanas de automóveis e de burros, em que tudo servia para dar alegria à vida. Os carros eram velhas carroças. (Quem é que tinha dinheiro para carros novos?) Mas, em contraste, eximiam-se na contagem dos tempos com as mais modernas máquinas de calcular “Facit”… Fazia parte do espetáculo!
Foi um tempo muito diferente que se viveu nesta ilha. Está quase tudo retratado neste livro que escreveu mas que a família não pretende disponibilizar a quem se queira inteirar de como era a vida em Santa Maria naqueles tempos.
Pode ser que, com alguma insistência do pessoal que ler este artigo, se consiga alterar esta situação.
O senhor António Biscaia Antunes faleceu em 29 de Julho de 2006, com 81 anos de idade.
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