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À VOLTA DOS LIVROS
Na rua Mouzinho de Albuquerque, em Miranda do Douro moravam duas casas com tradições culturais. A Casa Francisco Andrade e a Casa Pimentel. Uma das ruas mais emblemática da cidade pelo seu comércio e pela arquitetura de quase todas as casas. Ali morava igualmente a casa da Alfândega datada do século XVI e remodelada no século XVIII. Mas toda a cidade merece uma visita demorada.
O edifício da Câmara do século XIX, o antigo Paço Episcopal, a Antiga Casa da Câmara Municipal, hoje Museu das Terras de Miranda, edifício seiscentista, as antigas Portas da Cidade, a Igreja do Convento dos Frades Trinos, hoje Biblioteca Municipal, a Sé e o Castelo.
O branco e o granito predominavam na cidade antiga.
Se houvesse tempo, uma volta pelo cimo da muralha permitia-nos deslumbrantes vistas sobre a albufeira da barragem de Miranda e até, com um pouco de sorte, assistir a um voo planado de qualquer grifo.
A Casa do Sr. Francisco Andrade era pequena para a diversidade dos produtos que ele comercializava. A montra tentava refletir o que ia na alma interior da Casa. A diligente empregada dava sempre a cara pelo Sr. Francisco era a sua fiel escudeira. Ela era a fonte de informação.
– O Sr. Francisco não está, o Sr. Francisco foi para Bragança, o Sr. Francisco não precisa de nada. Os espanhóis querem é atoalhados…
Muitas vezes, só o Sr. Francisco salvava a situação. A sua ausência permitia uma visita mais demorada pelas ruas estreitas da cidade. O Sol ia acompanhando a rotação da Terra. Á ida apanhávamos a sombra de um lado e quando regressávamos a sombra já estava do outro. A azáfama era muita. Muito linguajar espanhol acompanhado pelo silêncio dos produtos marcados em pesetas e escudos. Eles lá se entendiam apesar de preferirem o negócio em pesetas. Quem sabe, uma conta secreta do lado de lá da fronteira. Em terra de língua mirandesa era difícil encontrar alguém que a falasse em público. Sendo hoje em dia a segunda língua oficial só posteriormente se avançou para a publicação de livros em mirandês. A Campo das Letras talvez tenha sido a primeira editora a apostar em autores com obras de diversos temas. Mais tarde, também a Âncora Editora iniciou a publicação de obras em mirandês.
Um dia, o Pimentel ouviu uma conversa da esquina da sua Casa e não descansou enquanto não chegou à palavra com o senhor dos livros.
Percorria calmamente as tendas da Feira Quinzenal em Mogadouro quando surge a abordagem do Pimentel.
– O senhor desculpe, não me conhece, mas eu estive há dias para falar consigo em Miranda do Douro. Sabe, eu gosto muito de livros e falo todos os dias para o programa “Bom Dia Ti João”.
– E então, veio à Feira a Mogadouro?
– Vim. Venho sempre para comprar queijos, fumeiro e outros produtos para vender na minha Casa. Quando voltar a Miranda vá ter comigo para conversarmos.
– Mas se gosta de ler vá ao senhor Francisco Andrade, é seu vizinho e fica todo contente por vender mais alguns livros.
– Eu gostava era de vender livros. Agora com o Nobel os livros em português têm mais procura.
– Mas veja bem. Se vai fazer concorrência ao senhor Francisco ele ainda vai passar a vender queijo, azeite e outras bugigangas.
– Não se preocupe. Cada um vende o que pode e a clientela não é toda igual.
Contada a história ao senhor Francisco Andrade ele foi ameaçando:
– Veja lá, já nos conhecemos há muito tempo. Isto para dois não dá.
– É verdade.
– Mas olhe que o Pimentel já foi um grande passador de livros e imprensa clandestinas.
– Não sabia. Estamos sempre a aprender.
E lá fomos fugindo às investidas do Pimentel que continuou a vender os seus produtos regionais e dando e recebendo conforto do Francisco Andrade.
Apesar da excelente gastronomia que se servia na restauração da cidade, acabava-se por acampar quase sempre na Gabriela em Sendim.
Também íamos aprendendo alguma coisa com a Viagem a Portugal do Saramago.
Miranda, 15 de agosto
(restaurante Capa D’Honras)
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