MEMÓRIA

 

PELAS 13.45 DE 2 OUT 1949 NO bAIRRO gARANTIA, VIVENDA eSTREMADURA NO aMIAL DO pORTO NASCIA UM JOVEM DO SEXO MASCULINO,

DOS QUE ESTAVAM VIVOS NESSA DATA APENAS RESTAM 6 DO LADO MATERNO E 3 DO LADO PATERNO. O ÚNICO QUE SE LEMBROU DE ASSINALAR A DATA FOI O ESCOLHIDO PARA ESTA PARTILHA 72 ANOS DEPOIS.

APROVEITO PARA ASSIM AGRADECER A TODOS OS QUE NAS VÁRIAS PLATAFORMAS SE ASSOCIARAM COM VOTOS NESTE DIA.

 

EXTRAIO DE CHRONICAÇORES A SAIR EM BREVE (

LIAMES E EPIFANIAS

(ChrónicAçores VOLUME V1949-2005

Uma Circum-navegação)

DO NASCIMENTO

 

As origens paternas pré-datavam o Condado Portucalense. Nasci no pós-guerra que abalara os alicerces da família. De abastada e com três carros na 1ª Grande Guerra, nada restava da fortuna da família com laivos de nobreza, além de memórias que a minha avó revivia. Passados os dias difíceis da Grande Depressão em que terrenos, casas e fábricas, foram perdidos na voragem da bancarrota ou roubados por membros da família, a família sobreviveu à 2ª Grande Guerra. Havia animosidade contra Franco, empatia com a Galiza, e orgulho na ajuda prestada a judeus fugidos do nazismo.

A Quinta do Cabeço em Afife foi uma das perdas mais sentidas pelo pai. A família reduzida a mera burguesia de pergaminhos mas sem “cheta,” como soía dizer-se. Da glória familiar vi (na juventude) os casarões na R. Visconde de Setúbal e R. da Regeneração (atual João das Regras, hoje um tribunal), e demolidas as da Foz e de Matosinhos onde os avós passavam o verão. Consta que um cunhado do avô, seu contabilista, fora dos que mais se aproveitara da falência. Com a derrocada viria a impossibilidade de o pai se resignar a acabar os estudos na Escola Comercial, começando a trabalhar nos escalões inferiores da Mobil Oil (Socony-Vaccum), multinacional norte-americana. Entretanto, o irmão mais velho, Adjuto (n. 1912- m 1982), emigrou para o Brasil com um tio-avô (Albino) que ali tinha fortuna e descendentes, sem nunca regressar.

O pai escandalizou a família e arcou com o ostracismo ao casar, segundo o culto católico romano, com uma mulher trabalhadora, noção herege aos olhos do conservadorismo familiar de pergaminhos e manias de aristocracia (falida) e sangue-azul diluído. Dir-se-ia que nasci no seio de atmosfera hostil. A mãe, era professora primária quando nenhuma mulher (na família do pai) trabalhava ou pensava na hipótese, pois, eram, respeitáveis donas de tradições, tocavam piano e falavam francês, segundo a norma.

Era às criadas que competia a tarefa de cuidar das crianças, educá-las, ensiná-las. As mais qualificadas encarregavam-se da limpeza e cozinha. Aos pais (nessa data, um de cada sexo) competia trabalhar, manter o bom nome da família, e prover às necessidades (expressas ou não). Em casa, viviam os pais, a avó paterna, uma irmã do pai solteira e uma tia-avó que faleceria dois anos depois. Ouvi dizer, que os pais se levantavam cedo, apanhando um elétrico e um autocarro para as deslocações, complementadas por longas caminhadas, dado que na época, os transportes coletivos eram reduzidos e o raio de ação limitado. Eu ficava a cargo da empregada e da avó, que sempre considerei adorável e terna, mas que nunca se convencera de que a família não era rica como dantes. A criada, um certo dia, casou com um trabalhador da construção civil, antes de emigrar para França. Quando regressou, tinha sete anos e servi de padrinho ao filho..

A casa tinha três quartos, sala de jantar e cozinha e guardo vaga recordação, mas interrogo-me onde ficava a mobília de escritório do avô, que o pai herdara, austera, imperial ou britânica, conforme os estados de espírito em que a lembrança acorria. A avó entretinha-se no quarto com a pianola com um sistema mecânico que permitia tocar pautas pré-impressas (tipo Braille). Sei que a avó manteve calado, dentro de si, o desgosto de nunca mais ter visto o filho que fora para o Brasil e lá ficara, sem nunca a ver nem dar a conhecer os netos mais velhos. Guardo dela a melhor das memórias.

O que persiste na distante reminiscência, a que o tempo, as ficções e os aspetos místicos da imaginação acrescentaram algo, é o enorme fogão a lenha na cozinha. A avó tomava sempre chá com leite, o chá inglês como lhe chamava e para o qual, por vezes, me convidava. Na altura, sentia-me impante de orgulho.

 

Os primeiros quatro anos de vida foram preenchidos (aos fins de semana, suponho) por passeios a pé, com pais, avó e tia na Estrada da Circunvalação Interna, Amial, junto à antiga barreira fiscal que controlava a entrada e saída do burgo. A moradia existe e aparte a pintura exterior não parece ter mudado desde que saí. Abstive-me de bater à porta e revisitar o sítio onde passei os primeiros anos, como quem parte em busca de lembranças, mais decorrentes de fotos do que de eventos.

Como poucos se interessavam pela genealogia no lado materno e com a política de silêncio, os dados fui-os arranjando na fase de deslumbramento monárquico da juventude nas férias na aldeia em busca de histórias e lendas. Não restavam dúvidas das ligações a judeus novos. Havia nomes típicos de Cristãos-novos como Ester, hebraico: e Stela, estrela, que não deixavam dúvidas, a menos que se ignorasse a etimologia.

Acarreto essas heranças genealógicas, ajustei a identidade à persona como alter ego, que comigo coabita. A minha mulher jocosamente comenta que o meu problema existencial era saber qual dos dois venceria, eu ou o alter-ego. Fora importante a dicotomia para definir a personalidade, independentemente das heranças genéticas. Sempre quis construir o rumo sem transportar o peso morto das expetativas, e a albarda de nomes. Nos apelidos paternos tinha orgulho em Barbosa[1] e Meira[2], de origem muito antiga. Do materno os apelidos dos bisavós Menezes, Madureira, Rodrigues, Magalhães na Eucísia (Alfandega da Fé e vizinhança), alegadamente ligada a D. Nuno Álvares Pereira[3] e pelo avô materno Moraes e Alves de Vimioso.

  1. D. Sancho Nunes de Barboza, II de Celanova. Casou com Tareja Afonso, filha de Afonso Henriques e Elvira Gualter. O segundo casamento com Teresa Mendes, filha de Mem Nunes de Riba Douro, e de Urraca Mendes, senhora da Casa de Barbosa no termo do Porto, freguesia de S. Miguel de Rãs (Paço de Sousa, Penafiel) de quem tomou apelido. Importantes nobres no séc. XII. D. Sancho descendia de D. Nuno Guterres, filho do Conde de Cela Nova D. Teobaudo Nunes, cavaleiro do rei D. Bermudo II de Leão e irmão de S. Rosendo, bispo de Dume em 925.

[2] Vila de Meira, Lugo, bispado de Tui, família e solar junto à lagoa e Serra de Meira, onde nasce o rio Minho. Passou a Portugal, Paio de Meira, no tempo de D. Diniz, faleceu em 1325. Rodrigo Afonso de Meira, 1º senhor do solar. Brasão em 1451 a Afonso Nunes de Meira da corte do rei D. Duarte.

[3] Descende de Mendo, irmão de Desidério, rei lombardo, que tentou invadir a Galiza em 740, estabelecido em Trastâmara antes dos mouros, senhores do Castelo de Lanhoso. D Nuno, o Condestável (1360-1431) aos 13 anos foi escudeiro da rainha D. Leonor Teles e armado cavaleiro. Aos 16 anos casou com D. Leonor de Alvim. D. Duarte deu o título de Duque de Bragança. Retirou-se para o claustro carmelita do Carmo, onde se fez religioso e morreu, janº 1443, beatificado em 1918 pelo Papa Bento XV. O título de Condestável foi criado por D. Fernando em 1382, para as funções de Alferes-mor, a segunda personagem da hierarquia militar, depois do Rei, tendo como responsabilidades comandar a campanha militar na ausência do rei e manter a disciplina do exército, funções que hoje tem o chefe do estado-maior. Nunca vi a clarificação genealógica à família da mãe, sou cético, não havia dúvidas quanto ao resto embora me intrigassem relatos do bisavô materno ser cónego, casado, pai de filhos. Nunca se descobriu registo matrimonial.