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Em tempo de cerco sanitário…
A vida é um carrocel. Gira, gira e nós vamos na roda, como cavalos à desfilada.
Para onde foi o tempo de se ter tempo?
As pessoas falavam e tinham quem as ouvisse. Visitava-se os amigos sem ter de telefonar primeiro, a combinar. Era tão simples. Findo o jantar, dizia-se: Vamos a casa de fulano. E íamos. Nós e os meus pais. Era assim, naqueles dias. Outras vezes vinham amigos à nossa casa. E era bom esse tempo de conversar, ou de brincar, conforme a idade.
Batia-se à porta e, se não estava ninguém, deixava-se um cartão de visita. Às vezes só com um abraço. Outras com uma quadra, ou um dizer amistoso, improvisado ali na hora e escrito contra a ombreira da porta.
Era também o tempo de se escrever cartas para os amigos distantes e de se tirar um momento do nosso dia para ir ao correio comprar o selo e enviá-las. Ficava-se, tranquilamente, a aguardar uma resposta que quase sempre vinha. Lenta, mas vinha. E havia a ânsia da espera, que alimentava o sonho.
Ouvia-se os mais velhos, porque sabíamos que eles, na sua sabedoria, tinham sempre coisas para partilhar, que nós partilharíamos com os mais novos, quando chegasse a nossa vez. Eles falavam e nós ouvíamos. Não havia barulho a distrair-nos, nem nada para fazer que não pudesse esperar.
Lembro-me com uma clareza enorme e uma saudade ainda maior dos serões antes de termos televisão. Meus pais contavam coisas do seu tempo. Tinham um jeito tão grande para contá-las, que acredito que o sentir deles nos invadia por uma espécie de osmose e entrávamos nesse tempo que fora o deles. Sei-o, porque as referências ficaram todas connosco, como pertença nossa.
E liam-nos muito. Foi pela leitura de meus pais que me foi apresentado o Eça de Queirós, no conto “O Suave Milagre” que ainda hoje guardo em mim, bem preso, com um laço colorido – “Ora entre Enganin e Cesareia, num casebre desgarrado, sumido na prega de um cerro, vivia a esse tempo uma viúva, mais desgraçada mulher que todas as mulheres de Israel. O seu filhinho único, todo aleijado, passara do magro peito a que ela o criara para os farrapos da enxerga apodrecida, onde jazera, sete anos passados, mirrando e gemendo.” Este menino queria ver Jesus e este, no final, depois de aquela criança tanto ter suplicado para vê-Lo, “abrindo devagar a porta e sorrindo, (…) disse à criança: – Aqui estou.” Achei tão incrivelmente belo esse conto, que me comovi na inocência dos meus oito ou nove anos. Lembro-me que havia palavras difíceis, cujo significado desconhecia. E ficavam-me como referência aqueles nomes de pessoas e lugares da Galileia. Tenho-os no ouvido, como uma música que não se esquece: Cesareia, Hébron, o país de Moab, o rico Obed. Também me ficaram frases que, na altura, me soavam a ritmos únicos: “No Estio, sem pasto, a cabra morrera. Depois, no quinteiro, secara a figueira.”
Agora é moda não se acreditar em quase nada. Alguém achará este conto ultrapassado e até mesmo uma imposição indevida da imagem de Jesus num tempo de descrença em que se proclama a Liberdade, mas, contraditoriamente, se critica quem ainda crê em alguma coisa e se atreve a declará-lo. Acharão ultrapassado este conto que fala de uma miséria tão dolorosa e da esperança de luz e de vida.
Tenho orgulho de ser do tempo em que havia tempo, ainda que isso implique eu ter mais anos do que os que desejaria.
Maria João , dois tesouros num só: as memorias vivas dos seus Pais e a Sua escrita .
Obrigada.