MARIA JOAO RUIVO EM TEMPO DE CERCO SANITÁRIO

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Em tempo de cerco sanitário…

A vida é um carrocel. Gira, gira e nós vamos na roda, como cavalos à desfilada.
Para onde foi o tempo de se ter tempo?
As pessoas falavam e tinham quem as ouvisse. Visitava-se os amigos sem ter de telefonar primeiro, a combinar. Era tão simples. Findo o jantar, dizia-se: Vamos a casa de fulano. E íamos. Nós e os meus pais. Era assim, naqueles dias. Outras vezes vinham amigos à nossa casa. E era bom esse tempo de conversar, ou de brincar, conforme a idade.
Batia-se à porta e, se não estava ninguém, deixava-se um cartão de visita. Às vezes só com um abraço. Outras com uma quadra, ou um dizer amistoso, improvisado ali na hora e escrito contra a ombreira da porta.
Era também o tempo de se escrever cartas para os amigos distantes e de se tirar um momento do nosso dia para ir ao correio comprar o selo e enviá-las. Ficava-se, tranquilamente, a aguardar uma resposta que quase sempre vinha. Lenta, mas vinha. E havia a ânsia da espera, que alimentava o sonho.
Ouvia-se os mais velhos, porque sabíamos que eles, na sua sabedoria, tinham sempre coisas para partilhar, que nós partilharíamos com os mais novos, quando chegasse a nossa vez. Eles falavam e nós ouvíamos. Não havia barulho a distrair-nos, nem nada para fazer que não pudesse esperar.
Lembro-me com uma clareza enorme e uma saudade ainda maior dos serões antes de termos televisão. Meus pais contavam coisas do seu tempo. Tinham um jeito tão grande para contá-las, que acredito que o sentir deles nos invadia por uma espécie de osmose e entrávamos nesse tempo que fora o deles. Sei-o, porque as referências ficaram todas connosco, como pertença nossa.
E liam-nos muito. Foi pela leitura de meus pais que me foi apresentado o Eça de Queirós, no conto “O Suave Milagre” que ainda hoje guardo em mim, bem preso, com um laço colorido – “Ora entre Enganin e Cesareia, num casebre desgarrado, sumido na prega de um cerro, vivia a esse tempo uma viúva, mais desgraçada mulher que todas as mulheres de Israel. O seu filhinho único, todo aleijado, passara do magro peito a que ela o criara para os farrapos da enxerga apodrecida, onde jazera, sete anos passados, mirrando e gemendo.” Este menino queria ver Jesus e este, no final, depois de aquela criança tanto ter suplicado para vê-Lo, “abrindo devagar a porta e sorrindo, (…) disse à criança: – Aqui estou.” Achei tão incrivelmente belo esse conto, que me comovi na inocência dos meus oito ou nove anos. Lembro-me que havia palavras difíceis, cujo significado desconhecia. E ficavam-me como referência aqueles nomes de pessoas e lugares da Galileia. Tenho-os no ouvido, como uma música que não se esquece: Cesareia, Hébron, o país de Moab, o rico Obed. Também me ficaram frases que, na altura, me soavam a ritmos únicos: “No Estio, sem pasto, a cabra morrera. Depois, no quinteiro, secara a figueira.”
Agora é moda não se acreditar em quase nada. Alguém achará este conto ultrapassado e até mesmo uma imposição indevida da imagem de Jesus num tempo de descrença em que se proclama a Liberdade, mas, contraditoriamente, se critica quem ainda crê em alguma coisa e se atreve a declará-lo. Acharão ultrapassado este conto que fala de uma miséria tão dolorosa e da esperança de luz e de vida.
Tenho orgulho de ser do tempo em que havia tempo, ainda que isso implique eu ter mais anos do que os que desejaria.

Maria João Ruivo

One thought on “MARIA JOAO RUIVO EM TEMPO DE CERCO SANITÁRIO”

  1. Maria João , dois tesouros num só: as memorias vivas dos seus Pais e a Sua escrita .
    Obrigada.

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