Marcelo, ou Dâmaso Salcede

Views: 0

« Começo por alguns esclarecimentos, para total transparência com quem me lê.
Primeiro: não percebo nada de futebol, não acompanho o campeonato e não dedico a semana a discutir as desventuras dos árbitros, dos cartões e do VAR do fim de semana transato.
Segundo: pese embora a minha ignorância, já passei horas muito divertidas a ver futebol, no estádio e em casa. Tenho amigos fãs e consigo beber do seu entusiasmo para aproveitar a festa. Quando Portugal chegou à final do Euro 2016, comprei um projetor para ver o jogo com honras de ecrã gigante.
Terceiro: compreendo que o Cristiano Ronaldo é um dos melhores jogadores da história do futebol. Se provas buscasse, o Financial Times fez, em junho, uma comparação entre CR7 e Messi, baseada em gráficos de golos, livres e troféus, à boa maneira do diário britânico. Mesmo se o Financial Times concluía pela superioridade de Messi, a cobertura do jornal não deixa dúvidas quanto à mistura explosiva de talento e trabalho de CR7, e muito menos quanto ao seu merecido estatuto de lenda do futebol. Se Ronaldo é pródigo em curriculum desportivo, o seu curriculum ético deixa muito a desejar.
Cristiano Ronaldo tem uma relação difícil com as suas obrigações tributárias. Foi condenado a uma pena suspensa de dois anos pela justiça espanhola e teve de pagar ao fisco 19 milhões de euros por um processo de fraude fiscal que envolvia empresas fachada para esconder os seus rendimentos de direitos de imagem. Em seu abono, reconheço que o mundo do futebol é abastecido em esquemas de fuga ao fisco, como o Footbal Leaks mostrou. O próprio Messi teve problemas com o fisco espanhol e foi condenado a uma pena de 21 meses de prisão, que também foi trocada por multa. Não sei qual dos dois foge mais aos impostos, porque a comparação da chico-espertice ficou de fora da análise do FT.
O ex-selecionador nacional Fernando Santos, o “Engenheiro do Penta” e do Euro 2016, foi condenado a pagar uma dívida ao fisco de 4,5 milhões de euros, depois de o tribunal ter confirmado que a Femacosa, empresa sua e da esposa que recebeu os pagamentos da FPF, era “desprovida de substância económica ou de razões comerciais válidas”. Como sempre em Portugal, o caso não está encerrado: Santos recorreu da decisão e, simultaneamente, o fisco estará a investigar a continuação da alegada fraude em anos mais recentes. Irónico, ou trágico, é o mesmo Fernando Santos ser embaixador da edição de 2023 dos prémios Tágide, que pretendem galardoar pessoas que se destacam na luta contra a corrupção. O manto de silêncio que cobre os podres do futebol e a conivência da classe política com os mesmos cria alçapões destes, pelos quais boas ideias escoam diretamente para o esgoto
Cristiano Ronaldo parece também ter uma relação difícil com o conceito de consentimento sexual. É público que Ronaldo pagou uma indemnização choruda a Kathryn Mayorga para comprar o seu silêncio, no contexto da alegada violação ocorrida em 2009. É público que Mayorga, na altura, foi examinada por uma equipa médica e fez queixa à polícia, pelo que houve comprovadamente agressão sexual, sem, no entanto, ter identificado o agressor. É público e foi noticiado pelo New York Times e pelo espanhol As que a Juventus, clube no qual CR7 jogava, optou por não participar numa competição que ocorreria nos EUA em 2019, para evitar a detenção do jogador. De resto, contrariamente a Messi, que rumou a Miami, Ronaldo optou por terminar a sua carreira ao serviço de um regime tirano (já aqui volto).
É público que, pela mão de Rui Pinto, foi conhecido o conteúdo dos emails trocados entre um reputado escritório de advogados de Lisboa e o alegado agressor de Mayorga. Segundo o “Der Spiegel”, que teve acesso aos emails, estes dão a entender que o indivíduo em questão admitiu perante os seus advogados ter tido sexo não consentido com Mayorga. É também público que a alegada vítima, nove anos depois de ter aceitado a indemnização em troca do seu silêncio, resolveu processar CR7. A queixa foi arquivada em 2022 devido à intenção dos advogados de Mayorga de usar os ditos emails (obtidos ilegalmente) como prova, não tendo por isso chegado a haver julgamento quanto aos factos de que Mayorga acusa Ronaldo.
Finalmente, Cristiano Ronaldo está a emprestar a sua reputação de estrela ao branqueamento de um regime tirano que tem no curriculum opositores políticos desmembrados em solo estrangeiro e onde as relações íntimas entre pessoas do mesmo sexo são crime, punível com chicotadas e prisão. Quanto aos direitos das mulheres, sob a capa da aparente abertura que lhes permite, desde 2021, conduzir e viajar sem permissão do “guardião” do sexo masculino, o regime condenou, em 2022, a estudante Salma al-Shehab a uma sentença de 34 anos por expressar no Twitter o seu apoio a outras mulheres ativistas. A estratégia de branqueamento do “outrora pária regime saudita” com base nas contratações futebolísticas milionárias foi bem descrita pela Teresa Violante no excelente texto “Arábia Saudita: o dinheiro tudo lava” há um mês, no “Expresso”, cuja leitura aconselho vivamente.
Como se não bastasse, Cristiano Ronaldo aterrou no Irão no aniversário do bárbaro assassinato de Mahsa Amini, recebeu um cartão SIM especial com o acesso livre à Internet que os milhares de pessoas em protesto contra o regime abjeto não têm, e aceitou candidamente a receção apoteótica dos fãs, sem uma palavra de apoio aos protestos ou um sinal qualquer de respeito pela memória de Mahsa.
Deixei, propositadamente, o meu quarto e último esclarecimento para o fim: sou contra cancelamentos. Parece-me ótimo que quem gosta de futebol queira ver o Cristiano a jogar, por muitos e bons anos. Eu própria, se fosse fã do desporto rei, o faria, tal como não deixo de ver filmes de Woody Allen por ele ter alegadamente abusado da enteada e defendido o infame beijo de Rubiales, ou de ler avidamente cada linha que Michel Houellebecq escreve, apesar das suas posições islamofóbicas e antifeministas.
O que já não compreendo, e ainda menos aceito, é que o Presidente da República invoque Cristiano Ronaldo num discurso inflamado sobre o que somos coletivamente. As suas duvidosas virtudes morais devem ser irrelevantes para os apreciadores de bola, mas constituem um óbvio impedimento à sua utilização como referência pelo Presidente. E não, isto não tem nada a ver com cancelamento. Pela minha parte, não sou nem quero ser CR7 e agradeço a Marcelo que escolha melhor os símbolos da pátria. »
[Suzana Peralta, “Público”, 22/09/2023]
Não sou CR7
PUBLICO.PT
Não sou CR7
Se Ronaldo é pródigo em curriculum desportivo, o seu curriculum ético deixa muito a desejar.
6 comments
3 shares
Like

Comment
Share
View more comments

Sobre CHRYS CHRYSTELLO

Chrys Chrystello jornalista, tradutor e presidente da direção da AICL
Esta entrada foi publicada em sociedade consumidor. ligação permanente.