mais um texto do LUIS FILIPE SARMENTO

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5.
Era ruivo como um foguetão, o Cabrita, e fora parido no túnel do metropolitano ali para os lados do acontecimento. Sempre gostei dele e ele de mim. Amigos sem estandartes mas com convicções em chamas e sem alertas. Fomos magotes nas praças e a polícia não dava mãos a medir às nossas ocorrências. Bandos como furacões de imagens. Tínhamos a intuição do tempo e do amor. O Levi proclamava-o: «para que tu me possas amar». Olhava-o com admiração sob o seu tapete capilar que lhe cobria as artérias do corpo e as transversais do movimento. O Raposão voava à espera de um corpo que lhe caísse em cima, garantindo que «brotavam tulipas prateadas da calçada». Como ele dizia, «esta é a nossa onda gigante». E ainda nem se falava em surf. O metódico Fritz pensava muito. O Madureira fora sempre um acidente sob nuvens acesas de revolta. O Abel procurava a última moda dos tique-taques. Hoje, creio que éramos anjos como palavras, mas com a vantagem poética da efabulação opiácea e foi só nessa dimensão que existimos na tormenta capciosa da literatura. Bem a enganámos. Quando alguém gritava arrasava a memória do instante, transformava-a numa abstracção. E intuímos que a linguagem como organismo é um mistério assustador, cativante e indecifrável. Galopámos o tempo no último lustro da década de setenta sem saber que os eventos artísticos transcendem os lugares.
6.
Estávamos para além da modernidade. Nem questionávamos musas. Elas deslizavam de jeans, bem justos à pele escultórica, pelos vapores da cerveja, e nós ficávamos de sorriso paralisado, por timidez, ao vê-las estacionar, com sumptuosidade, em frente do nosso nariz. Turbilhões de ideias encostavam nas boxes do tempo suspenso para mais tarde largarmos em corridas contra a demora, fervendo os motores de emoções onde a arte acontecia.
Luís Filipe Sarmento

, «B.-L.», 2021

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