MAIS UM TEXTO D ELUIS FILIPE SARMENTO

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1. Deitámo-nos e falámos. Já a liberdade andava por aqui. Não trocámos uma só palavra sobre preocupações finisseculares. Seriam indigestas quando apenas nos sugeríamos à subtileza das mãos, da pele dos lábios. Depois, viriam as ideias das partilhas. Tudo na mesma cama. Até o sono. Eu sei que não eram ilusões. Mas a turbulência do devir não se regista nos estados meteorológicos. Fomo-nos acontecendo até nos descontinuarmos.
2. Passeei à tarde nesses dias, sem ideias, com coisas, muitas coisas a adormecerem o pensamento. Não há beleza alguma num caixote de lixo. E ficava longos minutos à procura da estética. Desistia com a observação indiferente de um portão de madeira carcomida. Olhava, agora, a calçada de Lisboa e perdia-me nas suas fissuras com a miopia galopante a desfocar-me o caminho. Passeava na perdição das ruas como se esperasse um desmentido da desistência que me acompanhava ao pôr-do-sol. Não quis renunciar a nada. E tudo se perdia no desfoque ocasional do que não merece atenção. Atropelava imagens com a vã esperança de encontrar a primeira letra de uma palavra que me libertasse da ausência dos sentidos.
3. Procurei monólogos para me disfarçar de idiota enquanto na rua os autocarros.
4. Não me queiras ver. Estou subordinado ao que há-de ser a primeira palavra. Ainda que parcial, palavra. No chamamento onírico, a oração da frase reza ao título como senhor nascituro da obra. Lume.
Luís Filipe Sarmento, «B.-C.», 2021
Foto: José Lorvão
May be an image of Luís Filipe Sarmento, beard and glasses
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Sobre CHRYS CHRYSTELLO

Chrys Chrystello jornalista, tradutor e presidente da direção da AICL
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