Macau por Ian Fleming (o do 007)

Macau por Ian Fleming
imagens da 1ª edição de Thrilling cities, de Ian Fleming

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imagens da 1ª edição de Thrilling cities de Ian Fleming
publicitadas em Viagem por Macau
de Cecília Jorge e Beltrão Coelho

Thrilling Cities cover artO ouro, de mãos dadas com o ópio, desempenha um papel excepcionalmente secreto em todo o extremo Oriente e Hong Kong e Macau, a minúscula possessão portuguesa a apenas cerca de quarenta milhas de distância, são o eixo deste tráfico clandestino. O rei do ouro do Oriente é o enigmático Dr Lobo, da «Vila Verde», em Macau. Irresistivelmente atraído, gravitei na sua direcção, com o contador Geiger de um escritor de thrillers a pulsar furiosamente.

O Richard Hughes e eu apanhámos o Takshing, um dos três famosos ferries que diariamente cobrem a distância até Macau. Estes ferries nada têm a ver com as decadentes, semi-destruídas e fumarentas embarcações, comandadas por um marinheiro escocês ensopado em whisky que, geralmente, vemos no cinema; são vapores de três cobertas, cómodos e dirigidos com uma precisão profissional. (…)

No extremo norte da Deep Bay está Macau, uma península com cerca de um décimo do tamanho da ilha de Whight, que é o mais antigo entreposto europeu da China. Foi fundada em 1557 e é famosa, principalmente pelo seu farol, o primeiro a ser construído em toda a costa da China. Orgulha-se, também, de ali estarem sepultados Robert Morrison, o missionário protestante que compilou o primeiro dicionário de Chinês-Inglês em 1820; George Chinnery, o grande pintor irlandês da paisagem oriental; e o tio de Sir Winston Churchill, lord John Spenser Churchill. É também conhecida pelas gigantescas ruínas da Catedral de S. Paulo, construída em 1602 e destruída pelo fogo em 1835 e finalmente – tomem bem nota! – pela «maior casa de má fama» do mundo.

No que diz respeito ao seu mais importante cidadão, o Dr Lobo, as características mais interessantes de Macau residem no facto de não haver imposto de rendimento nem qualquer controlo cambial, havendo uma total liberdade de importação e exportação de moeda estrangeira ou ouro e prata em barras. Considerando apenas o caso das barras de ouro, é extremamente fácil para qualquer pessoa chegar de ferry ou hidroavião, ou vir simplesmente da China Comunista, situada a uns 50 metros, do outro lado do rio, comprar qualquer quantidade de ouro, de uma tonelada a uma simples moeda, e sair totalmente às claras, de Macau, com o seu espólio. (…) Estes considerandos tornam Macau um dos locais do comércio mais interessantes do mundo e com muitos segredos.

Ao chegarmos à entrada da baía fomos confrontados com um esplendoroso cenário. O sol punha-se e, na sua esteira, ficava uma espectacular frota de muitas centenas de juncos e sampanas. (…)

A marginal era uma espantosa mescla de gudões apodrecidos publicitando em anúncios descoloridos pelo sol, que eram por exemplo, A FÁBRICA DE ÁGUAS GASOSAS ou a KWONG HUNG TAI FIRECRACKER MANUFACTURING COMPANY, intervaladas com fachadas degradadas de antigas mansões privadas, com os mais requintados, ainda que delapidados, estuques e cantaria barroca. Toda a vida é assim. Uma amálgama dos muito ornamentados estilos europeus do século XVIII, princípios do século XIX, com o mau gosto do moderno betão armado; e de pomposas mas horríveis vivendas. Metade das ruas são vielas empedradas e o outra metade modernas avenidas meio desertas, e onde nos pretensiosos cruzamentos o ocasional riquexó aguarda a desnecessária mudança do semáforo para o verde. Em suma, o local é tão pitoresco e mortiço como um lindíssimo cemitério.

Retemperámo-nos no Macau Inn (Pousada de Macau), no cruzamento da marginal com a Travesa do Padre Narciso. Ali contactámos com «o nosso homem em Macau» e bebemos tépidos gin tonics debaixo da figueira de Bengala, enquanto me esclareciam sobre os quatro «Grandes» que, com o Governo Português em pano de fundo, controlam muito bem tudo o que se passa neste enigmático território. (…) Eram, na altura, e por ordem de importância, o já mencionado Dr P. J. Lobo, que toma conta do ouro; o sr. Foo Tak Yam, que se encarrega do jogo e actividades associadas que poderemos descrever de forma mais lata por «diversões», e dono do Hotel Central (…), e o Sr. Ho Yin, intermediário-chefe nos negócios com a China Comunista. A fortuna dos quatro senhores cresceu durante, e depois da guerra – durante a Guerra, através do comércio com os japoneses, que então ocupavam o Continente chinês, e, depois da guerra, durante a época dourada em que o porto de Macau abarrotava de navios vindos da Europa, no contrabando de armas para a China Comunista. Esses tempos transformaram Macau numa cidade em ebulição, quando uma simples rua, que atravessa metade da cidade, a «Rua da Felicidade», era uma grande e continua vaga de prazer; e quando, mandado construir pelo Sr Foo, o edifício de nove andares do Hotel Central, o maior antro de jogo e vício do mundo, sugava «a nata» dos hedonistas. (…)

Fomos aconselhados a escolher entre o entre o Fat Siu Lau, «O Amantíssimo Buda», na Rua da Felicidade, célebre pelo pombo chinês, e o Long Kee, famoso pelo peixe. Escolhemos o «Amantíssimo Buda», jantámos excelentemente, e dirigimo-nos ao Hotel Central, cuja finalidade e desígnios recomendo vivamente àqueles que se preocupam com os princípios da moral inglesa.

Fui despertado, na manhã seguinte, pelo estrondoso som europeu dos sinos da catedral e o toque suave e distante de cornetins militares. Aperaltámo-nos para o almoço com o Dr. Lobo. Desde que a revista Life trouxe Macau para a ribalta, em 1949, o doutor tornou-se muito desconfiado em relação a escritores e jornalistas, mas o nome mágico de um amigo de Hong Kong até mesmo esta porta nos abriu e portanto, à hora combinada, um «secretário» de aspecto poderoso num maltratado Austin castanho veio buscar-nos. Tínhamos passado a manhã a observar o árduo trabalho de uma cooperativa comunista, no outro lado do rio, admirado a imponente fachada da catedral de São Paulo, sobre a qual os pedreiros japoneses cristãos semearam imensos dragões e esqueletos alados entre os anjos, e tomado nota do hospital fundado por Sun-Yat-sen em 1906.

Nem o Austin nem o desgastado Chevrolet que mais tarde nos transportou de regresso ao ferry, nem a «Vila Verde», que mais se assemelharia a um Wimbledon tropical, dariam a entender que o Dr. Lobo valesse os cinco ou dez milhões de libras que lhe atribuem. À primeira vista, o Doutor, no seu impecável fato azul, engomado colarinho branco e óculos sem aros, parecia mais um gerente bancário ou um dentista (na verdade ele começou a vida como oculista) que se pode encontrar na mais benigna Wimbledon. O Dr. Lobo é de pequena estatura, um chinês-malaio magro, de lábios cerrados e olhos sem expressão. Anda pelos setenta anos de idade. Recebeu-nos cerimoniosamente numa sala de visitas de gosto suburbano, parcimoniosamente mobilada, com um pequeno altar católico por cima da ombreira da porta, uma grande oleografia do séc. XIX representando o céu e o inferno (…). Embarcámos numa inócua conversa sobre os prós e os contras do álcool e do tabaco, nenhum dos quais, segundo nos disse, seduzia o Dr. Lobo.

Um lampejo de interesse brilhou-lhe nos olhos quando referi ter-me constado que ele era um notável compositor amador. O Doutor disse que tinha sido violinista e tinha mesmo dado concertos em Hong Kong. (…) Rapidamente, entregou-nos um disco intitulado «Gems of the Orient», em gravação particular da «His Master´s Voice». (…) O Doutor colocou no gramophone «Waves of the silent Seas» (…).

Mudei de posição, adoptando a postura inclinada, com os olhos fechados, que habitualmente adopto em concertos e ópera. Nada mais podia fazer a não ser pensar noutras coisas até que terminassem os dois lados do disco mais longo que até hoje ouvi. (…) eu comentei algo sobre «espantoso virtuosismo» e «talento multi-facetado». E então, graças aos céus, serviram o almoço.

A sala de jantar do Dr. Lobo está forrada a toda a altura da parede com cristaleiras de vidro lapidado que cintilavam a ponto de incomodar, dando-nos a impressão de estar sentados no meio de um gigantesco candelabro. A sopa morna de macarrão e legumes era prenúncio de uma refeição para esquecer, e portanto, delicadamente, abordei o assunto do ouro. (…)

Permiti-me também ser informal. O Dr. Lobo tinha a reputação de ser um homem muito rico. Não receava ser raptado? (…) Tornou-se mais animado. «Eu tomo precauções» – disse. «Tenho cuidado. Temos uma excelente polícia Macau». (…)

As Tongs ou a Tríades, irmandades criminosas que operam em todas as cidades do Oriente? (…) Tinha ouvido dizer que essas pessoas eram muito poderosas, especialmente no tráfico do ópio. O ópio era um assunto muito triste! O Dr. Lobo tornou-se eloquente. «É um coisa terrível, Sr. Fleming. Essa gente troca todo o seu dinheiro por ópio. Cedo perdem o interesse pela comida e depois pelas mulheres. Tornam-se assexuados, castrados, e desgastam-se (…)».

«Mas que acha do meu café? É mesmo meu, das minhas propriedades em Timor». A conversa derivou para nulidades polidas e era quase chegada a hora de o Dick e eu apanharmos o ferry. Mas primeiro, disse o Dr Lobo, teríamos de ir ver a sua estação de rádio. Saímos para o jardim e, realmente, ali estava um edifício em betão, do tamanho de um campo de squash, a «Rádio Vila Verde», fornecendo, entre outras coisas, entretenimento aos habitantes de Macau. (…) Uma estação de rádio pareceu-me ser um acessório maravilhoso para um homem que negoceia em todos os mercados de ouro em barra do mundo. Boas comunicações são a espinha dorsal do negócio. E foi o que eu disse.

O Dr. Lobo mostrou-se magoado. «Esta estação serve apenas para distrair, Sr. Fleming». «Claro, com certeza» – disse eu, e saímos, voltando as costas ao inocente edifício, para sermos fotografados com o Dr Lobo, pelo secretário, após o que fomos presenteados com um exemplar do «Gems of the Orient», com a devida dedicatória. (…)

Ele é o que parece ser: um operador cuidadoso, astuto, que escolheu um ramo de negócio exótico, que pode ter originado muitos problemas e dissabores nas cadeias de distribuição, para desgosto, sem dúvida, dos grossistas. Cabe-lhe agora a respeitabilidade de todos os milionários que envelhecem, juntamente com os louros da boa cidadania – um doutoramento em ciências indeterminadas e, duas semanas depois de eu ter estado com ele, a nomeação para o cargo de Presidente do Concelho Municipal de Macau, um posto equivalente a Presidente de Câmara.

hotel Boa Vista
imagem da publicidade do Hotel Bela Vista
(Boa Vista, na época) de 1900, e menu de 1989

in http://oriente-adicta.blogspot.pt/2014/08/macau-por-ian-fleming.html

Informação útil
O Bela Vista é o hotel onde se deve ficar. Peça um quarto duplo com a varanda com vista sobre os braços de mar, na foz do rio das Pérolas, povoados de dia e de noite de juncos de pesca viajando de e para Cantão. (…)

Melhor local para comer: Macau Inn (Pousada de Macau), na Avenida da República, não muito longe do Consulado Britânico, e a residência do Sr. Foo tak Yam, o rei do jogo da colónia. Peça o pombo aassado ou grelhado à Macau, ou escolha de uma ampla lista de pratos Portugueses apimentados, incluindo o frango à Africana (cozinhado em coco). vinhos portugueses excelentes, baratos, leves e secos.

Thrilling cities de Ian Fleming, 1963 – tradução de Cecília Jorge e Beltrão Coelho em Viagem por Macau, 2014
Publicada por Oriente Adicta Etiquetas: curiosidades e episódios históricos, p´los olhos dos outros