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Visita ao Bairro de Santa Conceição em Banguecoque
Nossa Senhora das Mercês e o bisneto do embaixador
Quando se fala da comunidade luso-descendente na Tailândia vem de imediato à ideia a nossa presença secular na antiga capital do Sião, a cidade de Ayuthaya, onde chegámos no ido ano de 1511, de acordo com registos históricos. Mas quando se fala da nossa presença na actual capital do Reino da Tailândia, Banguecoque, muitos pensam que os portugueses se instalaram na área que hoje se conhece como Santa Cruz. No entanto, tal não é verdade pois o primeiro bairro português nasceu precisamente do lado oposto do rio Chaopraya, do lado onde iria nascer a cidade de Banguecoque. Santa Cruz fica em Thonburi, onde o primeiro – e único – rei (Taksin) de Thonburi se instalou quando saiu de Ayuthaya. Os descendentes de portugueses, na sua maioria militares, teriam ficado com um terreno cedido pelo Rei Taksin, fora da cidade real, onde seria mais fácil desempenharem a sua função militar, em caso de ataque das forças inimigas à cidade e à família real.
Por sua vez, o Bairro de Santa Conceição (com a igreja da Imaculada Conceição) nasceu em 1674 num terreno cedido pelo Rei Narai, o Grande, ainda durante o período de Ayuthaya, numa zona de Banguecoque conhecida como Samsen (perto de Dusit). Segundo um historiador de origem portuguesa, entretanto falecido, Pairote Posai, a maioria dos habitantes eram descendentes dos luso-siameses de Ayuthaya, sendo que a comunidade cresceu com a chegada de católicos exilados do Camboja – trouxeram com eles uma imagem de Nossa Senhora das Mercês, que ainda hoje se encontra na igreja. De acordo com as crónicas reais, o terreno foi cedido a um grupo de religiosos para ali construírem a primeira igreja da Imaculada Conceição, cuja capela ainda existe atrás do santuário. Os habitantes da zona eram, na sua maioria, de etnia Kuy e Kuai, assim explica uma placa existente no local. A igreja actual foi construída em 1836, já estando o Bairro povoado por católicos luso-descendes, cambojanos e vietnamitas.
O Bairro de Santa Cruz viria a nascer 95 anos depois (1769), diz Pairote Posai numa pesquisa que efectuou para as comemorações dos 300 anos da igreja da Imaculada Conceição, assinalados em Dezembro de 1974.
Para além de Santa Cruz, em terreno também cedido pelo Rei Taksin aquando da evacuação dos seus súbditos de Ayuthaya, juntamente com os luso-descendentes, há ainda outro bairro, já todo assimilado por outras etnias, em redor da igreja do Rosário, na zona onde fica a Embaixada de Portugal.
Em conversa com o único residente do Bairro de Santa Conceição que fala Português, Net JirawachWongngermyuang, um jovem, filho de um capitão da Marinha Real Tailandesa e bisneto de um antigo embaixador do Reino da Tailândia na Itália, confirmámos que o Bairro de Santa Conceição, o primeiro na nova capital, nasceu de um terreno cedido pelo Rei Narai, o Grande, em 1674, enquanto que o Bairro de Santa Cruz foi construído num terreno atribuído pelo Rei Taksin, em 1769, numa área conhecida como Wat Santa Cruz KudiChine, perto do Templo Kanlayanamit, em Thonburi, que ainda hoje representa a comunidade luso-descendente e onde foi instalado um museu sobre a presença portuguesa na Tailândia.
Ao narrar um pouco da história que explica o porquê dos portugueses serem favoritos na Corte de Ayuthaya, salienta o facto dos reis se sucederem em catadupa, devido a traições, usurpação do poder e assassinatos. Num desses episódios, que alguns historiadores situam entre 1615 e 1616, os militares portugueses ajudaram o Rei Songtham a derrotar um grupo de rebeldes liderados por japoneses, que tentaram matar o monarca. Como forma de gratidão, entre outras medidas, o Rei Songtham mudou a Lei Criminal Real que proibia o casamento de mulheres siamesas com estrangeiros que não fossem budistas. A lei foi abolida, abrindo caminho ao aparecimento da comunidade luso-tailandesa. Ao mesmo tempo, aos militares portugueses foi-lhes autorizado viverem em terra firme – antes habitavam em barcos – construir habitações e praticarem livremente a sua religião.
Actualmente ainda residem no Bairro de Santa Conceição cinco famílias luso-tailandesas, mas a tendência é para cada vez mais mudarem para outros locais da cidade. Estando completamente assimilados pela sociedade tailandesa é difícil manterem as tradições. A existência de uma igreja não é suficiente para convencer as novas gerações da importância do seu legado cultural e religioso.
Visita guiada
Efectuámos uma visita ao Bairro de Santa Conceição com a ajuda de Net JirawachWongngermyuang, luso-descendente da família Dias, uma das cinco que ainda residem no Bairro Português da capital tailandesa. As outras quatro famílias têm por apelidos Ribeiro, De Horta, e Fonseca e Costa, podendo as suas campas ser visitadas no cemitério do Bairro de Santa Conceição. Net nunca estudou Português de forma sistemática, mas sentiu o apelo de aprender a língua dos antepassados. A família é tão antiga que não há registo do primeiro “Dias” que chegou de Portugal, ou muito provavelmente de Macau, dado que a maioria dos portugueses, designadamente, os mercadores, eram provenientes de famílias estabelecidas na antiga colónia portuguesa na China.
Chegar à igreja da Imaculada Conceição não é tarefa fácil, sem se saber falar Tailandês. E mesmo para quem fala a língua é complicado. Na viagem que efectuámos a partir de Thonburi só há terceira tentativa encontrámos um taxista que nos conduziu até ao local. Depois de chegarmos ao Bairro também não foi fácil encontrar a igreja. Primeiro deparámo-nos com a imponente igreja de São Francisco Xavier, com a sua escola privada – instituição somente para raparigas e uma das mais caras de Banguecoque.
Na “Igreja da Concepção” – assim denominada em Tailandês (WatConception) e Inglês (ConceptionChurch) – sentimos que estamos nas imediações do rio, outrora a via de comunicação mais utilizada na capital do Reino. Descobrir todos estes detalhes, assim como identificar as casas das famílias luso-descendentes e outros pequenos pormenores, só é possível com a ajuda de terceiros. Net é contacto quase obrigatório para quem queira visitar o Bairro. Em jeito de curiosidade, é casado com uma tailandesa de origem chinesa e vai ser pai muito brevemente. Com pouco mais de trinta anos e uma carreira no sector da logística de carga, sente um orgulho enorme no seu passado lusitano. Tal sentimento e o desejo de conhecer melhor os antepassados levou-o a concluir o 12º ano em Sintra, impulsionado pelo pai. «Foram dez meses em Portugal que nunca mais irei esquecer», confessou a’O CLARIM. Aprendeu a falar e a ler Português a partir do nada, e tudo o que sabe deve-o à família de acolhimento e aos amigos que fez em Algueirão. Hoje pratica com quem aparece, com os amigos em Portugal, via Skype e Facebook, e quando não existe mais ninguém fala sozinho.
Ainda que já tenham passado alguns anos desde a estadia em Portugal, Net procura sempre os eventos de cultura portuguesa que se vão realizando em Banguecoque e foi com a sua mulher em 2016 a Portugal para reavivar as emoções lá vividas.
Dessas férias regressou a casa como da primeira vez: apaixonado pela cultura dos seus antepassados e decidido a fazer algo mais. Por estar tão convencido de que vale a pena preservar algo que é único na Tailândia, pensa, num futuro próximo, abrir no Bairro que o viu nascer e crescer um espaço culinário ligado à boa comida portuguesa. Lamenta que «não haja muitos jovens luso-descendentes – como ele – com interesse na cultura dos antepassados de origem portuguesa», acentuou, sentado em torno de uma mesa de café, em que se falou Português, Tailandês e Inglês.
in https://www.oclarim.com.mo/todas/visita-ao-bairro-de-santa-conceicao-em-banguecoque/
Portugal e Tailândia aliados há 500 anos
Nacional 12 de Jun de 2009, 12:08
A réplica, cuja instalação defronte da Cordoaria Nacional está dependente da cedência de um terreno da Administração do Porto de Lisboa ao município da cidade, é uma das iniciativas com que a Tailândia pretende comemorar, em 2011, os 500 anos das relações diplomáticas com Portugal.
Este e outros projectos vão ser apresentados durante uma visita de cinco jornalistas portugueses, incluindo da agência Lusa, à Tailândia, a convite da embaixada em Lisboa.
A visita, que começa no domingo, insere-se no âmbito das comemorações do V centenário das relações diplomáticas e prevê deslocações a Banguecoque e a Ayutthaya, respectivamente actual e antiga capital da Tailândia, onde há vestígios de igrejas católicas e cemitérios portugueses e onde ainda vivem descendentes lusos, ambos fruto da passagem dos portugueses pelo reino ao longo de cinco séculos.
Portugal, por enquanto, não definiu um programa comemorativo.
Em declarações à Lusa, o embaixador português em Banguecoque, António de Faria e Maya, referiu que ainda não foi criada a Comissão Nacional Interministerial (ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Cultura) para as comemorações, aguardando-se que, “até ao final deste ano”, se realize a reunião da Comissão Mista (Portugal/Tailândia) para “aprovar um programa conjunto”.
Algumas das propostas portuguesas em estudo passam pela edição, em ambos os países, de um selo-postal e de documentos históricos inéditos sobre as relações luso-tailandesas, assim como pela realização de espectáculos de dança e música, exposições itinerantes de artes plásticas e um congresso.
Não é a primeira vez que a Tailândia oferece a reprodução de um Pavilhão, edifício disposto em colunas com pináculos dourados, a um país para assinalar as suas relações diplomáticas. Alemanha e Suíça já têm exemplares.
No caso português, a intenção foi manifestada há dois anos pela Embaixada da Tailândia em Lisboa ao assessor diplomático da autarquia, José Gouveia Melo, que foi embaixador em Banguecoque entre 1982 e 1989.
O local escolhido para receber a réplica – que “demora um ano a fazer” e cujas peças são encaixadas umas nas outras, sem pregos – é “um terreno junto ao rio, em frente à Cordoaria Nacional”, que pertence à Administração do Porto de Lisboa, entidade com a qual o município da cidade está a negociar a cedência da área, salientou José Gouveia Melo.
A Tailândia propõe-se também avançar com a segunda fase das escavações arqueológicas no Ban Portuget (Bairro Português) de Ayutthaya que, na década de 90, puseram a descoberto as fundações da Igreja de São Domingos e esqueletos quase intactos no cemitério, conservados num trabalho a cargo da Fundação Calouste Gulbenkian e do Departamento de Belas-Artes da Tailândia.
Além da Igreja de São Domingos, foram construídas em Ayutthaya, por parte dos missionários cristãos portugueses, mais duas igrejas: a de São Paulo e a de São Francisco.
No ano passado, a Tailândia efectuou escavações na zona onde se supunha ter existido a Igreja de São Paulo, mas apenas foram encontrados vestígios de um templo budista.
A directora-adjunta do Serviço Internacional da Fundação Calouste Gulbenkian, Maria Fernanda Matias, manifestou à Lusa o interesse da instituição em continuar a apoiar técnica e financeiramente os trabalhos de preservação das ruínas em Ayutthaya, desde que sejam descobertos efectivamente vestígios portugueses.
Portugal foi o primeiro país europeu a estabelecer relações com o antigo Sião, tendo os dois Estados assinado um tratado de comércio e amizade em 1516, cinco anos depois da chegada do enviado do governador da Índia Afonso de Albuquerque, Duarte Fernandes, à capital do reino, Ayutthaya.
Através deste tratado, os portugueses instalaram uma feitoria em Ayutthaya, que albergava missionários, comerciantes e mercenários e que subsistiu até à destruição da capital pelos exércitos birmaneses, em 1767.
Em sinal de agradecimento ao apoio prestado pelos portugueses nas guerras com o rei da Birmânia, o Sião concedeu-lhes terras numa zona mais afastada do reino, correspondente à actual Banguecoque, onde ainda hoje, em duas áreas distintas separadas pelo rio Chao Phraya, mantêm-se de pé as igrejas de Santa Cruz e do Rosário.
No antigo Bairro do Rosário, onde, a par de Santa Cruz, os portugueses procriaram com siamesas e espalharam a fé católica, “ainda vivem várias famílias de apelido português e, no cemitério, encontram-se até lápides com inscrições” na Língua de Camões, assinalou a historiadora Maria da Conceição Flores, autora de “Os Portugueses e o Sião no Século XVI” e que acompanhou as primeiras escavações arqueológicas em Ayutthaya.
Em 1820, num novo gesto de gratidão, o reino do Sião ofereceu à coroa portuguesa o terreno, em Banguecoque, onde se localiza a embaixada lusa, a mais antiga representação diplomática portuguesa no mundo e na Tailândia.
in https://www.acorianooriental.pt/noticia/portugal-e-tailandia-aliados-ha-500-anos-186400
Nova Portugalidade
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400 anos de resistência
Os luso-descendentes da Tailândia
O convite viera há dias: “queremos que cá venha no próximo domingo para falarmos sobre os portugueses que aqui vivem há mais de duzentos anos”. No trabalho de investigação que realizei em Bangkok entre 2007 e 2010, li e folheei muitos milhares de páginas de livros e jornais, muitos documentos manuscritos e mapas existente em bibliotecas e arquivos, mas raramente se proporciona a um investigador ter acesso às pessoas que hoje representam a comunidade luso-descendente que subsiste na Tailândia. Encontrava-os esporadicamente e com eles trocava impressões em iniciativas promovidas pela nossa embaixada ou pelas autoridades que naquele país respondem pela cultura. Em jantares, convívios e espectáculos por ocasião do 10 de Junho, em conferências ou até em visitas ao parque arqueológico de Ayutthaya (antiga capital) tive sempre o prazer de encontrar os líderes dessa comunidade resistente que obstinadamente se mantém naquele outro lado do mundo.
Percorri as vielas da aldeia – terreno inalienável da Igreja – e fui deparando a cada passo com marcas dessa afirmação de soberania católica. Em cada casa, orgulhosos e públicos, o nome da família que a habita e um crucifixo. Flores à janela, azulejos, um rosário pendendo na porta assinalam que ali há um eco do Portugal distante. É um velho mundo, um bandel em plena capital da Tailândia. Ali respira-se um catolicismo militante. Toda a comunidade, estimada em 3000 pessoas distribuídas por 130 famílias, vive para si, casa entre si, transmite memórias e mitos familiares.
É com incontida satisfação que dizem “bão dia, como está ?” e me mostram a escola dirigida pelos padres da paróquia. Ali estudam centenas de miúdos e, caso raro num país em que quase 90% da população é budista, na Escola da Conceição 70% dos alunos são católicos e são Fonsecas, Costas, Cruzes, filhos, netos, bisnetos e tetranetos de Rosas, Marias, Jesus, Antónios e Josés. No auge do fascismo tailandês, em finais da década de 30 e durante a guerra, foram particularmente visados pela repressão do governo de Phibun Songkram. Perderam o direito aos nomes de família, aos nomes cristãos, às procissões e festividades. Porém, se o bilhete de identidade lhes fixava nomes thais, continuavam a chamar-se entre portas pelos nomes de baptismo.
Estes são os luso-siameses de hoje. Ao contrário do que aconteceu nas restantes lusotopias do Sudeste-Asiático, onde as populações de ascendência portuguesa sofreram declínio acentuado, graças à acção convergente dos regimes coloniais britânico (Birmânia) e francês (Camboja), mas também – importa dizê-lo sem rebuço – de muita incompreensão e repetidas tentativas do clero francês e italiano para erradicar a lembrança das raízes portuguesas, na Tailândia os luso-descendentes mantêm dignidade social e profissional. Encontro um médico, um oficial da armada, um professor universitário e um botânico. Na sua maioria evitam os negócios, essa especialização em fazer dinheiro; logo, suspeita aos olhos de pessoas como estas. Gente servidora do Estado, trabalha maioritariamente nos ministérios, lembrando o tempo em que eram funcionários do Rei e especialistas no quadro do “feudalismo siamês” que dava pelo nome de Sakdina. Ontem como hoje falta-lhes a abastança, mas reconhece-lhes no tom, na educação e na atitude um longo historial familiar.
Tinham-me pedido uma curta palestra. Mas o que dizer a pessoas que sabem mais que eu ? Estas pedras vivas falam com naturalidade de um bisavô diplomata, de um tetravô general, de um remoto antepassado que fora servidor no palácio. Por eles passou, durante muitas décadas, a intermediação entre os europeus que aqui chegavam e as autoridades. Foram intérpretes, responsáveis portuários, comandantes da marinha, remadores das barcas reais, secretários do Rei e do Uparat (o segundo Rei), serviram o Phraklang (equivalente a ministro do comércio) e, depois, com o advento do Estado Moderno e burocrático, sobreviveram graças à inteligência, lealdade à coroa e reputação impoluta. Limitei-me uma palestra de uma hora sobre generalidades que com simpatia foi escutada. Depois, uma longa conversa sobre coisas comuns. À cabeça, naturalmente, Portugal.
A aldeia católica encontra-se dividida em duas paróquias: a de S. Francisco Xavier, habitada por “vietnamitas” aqui chegados durante as duras perseguições anti-católicas da dinastia Nguyen contra os hoalang e a paróquia de Nossa Senhora da Conceição. Na paróquia, a fachada fluvial é habitada por luso-siameses e nas traseiras da igreja vivem os luso-cambojanos. O bairro foi, durante muito tempo conhecido por Ban Khamen (Aldeia Khmér), mas os dois grupos miscigenaram-se e hoje dessa separação étnica subsiste apenas na diferenciação dos espaços – estar perto do rio, estar longe do rio – e no tom de pele mais escuro próprio de alguns “luso-cambojanos”.
Passamos pela igreja. A missa das quatro da tarde terminara e os padres preparavam-se para rezar a missa das cinco. O pároco ofereceu-me uma medalha com uma Nossa Senhora da Conceição. No interior da igreja, uma trintena de fiéis aguardava o início do serviço litúrgico. Um idoso sentado numa cadeira de rodas disse-me ter oitenta e seis anos. Desfiava as contas de um rosário de vidro verde e ostentava uma dignidade senhorial que me impressionou. Lembrei-me de um velho amigo dos meus pais, o Senhor Fonseca, goês que abandonou Goa por Lourenço Marques em 1961, pois queria morrer português em terra portuguesa. Ontem como hoje, o espírito de resistência do velho Oriente tornado português.
Seguimos para o cemitério. Está superlotado e, agora, com um sorriso os meus anfitriões dizem-me só ser possível ali conseguir a última morada nos “condomínios”, ou seja, nos gavetões. Desfiam o parentesco de todos os que ali repousam o sono eterno.
Seis da tarde. Não dera pela passagem do tempo. Um café, bolinhos e a marcante gentileza do líder da comunidade em acompanhar-me até ao limite da aldeia. Para este passeio levei comigo um amigo francês, que compreendia bem o que aquilo significava, pois é francês nascido na Argélia, como eu sou português nascido em Moçambique. No autocarro que me trouxe ao centro disse-me: “que gente tão amável. Note-se: vivem no seu mundo e não noutro mundo”. Não pude dizer mais nada. Eles vivem no seu pedaço de Portugal. Se eu mandasse, dava-lhes de imediato a cidadania portuguesa.
Miguel Castelo-Branco
Birmânia e Tailândia inesquecíveis
Todos os anos, o Centro Nacional de Cultura organiza uma viagem enquadrada no ciclo “Os portugueses ao encontro da sua história”. A de 2015 levou os participantes ao Sião e Sirião, que atraíram os lusitanos ao longo de vários séculos. Maria Calado e Guilherme d”Oliveira Martins
Falamos de Sião e de Sirião, da Tailândia e da Birmânia, que atraíram os portugueses ao longo dos séculos. Fernão Mendes Pinto, sobre Sião, disse haver neste reino “muita pimenta, gengibre, canela, canfora, pedra-ume, canisfistula, tamarinho e cardamomo em muita grande quantidade de maneira que se pode dizer e afirmar com verdade (…) que é este um dos melhores reinos que há em todo o mundo”… No ciclo “Os Portugueses ao Encontro da Sua História” do Centro Nacional de Cultura, fomos ao encontro dessas paragens.
Rangum foi o início. É a maior urbe da Birmânia, a ancestral “cidade sem inimigos” (yan, inimigo; e koub, fugir de). Foi fundada provavelmente no século VI, sendo uma aldeia de pescadores em torno do pagode de Schwedagon. Lembramos António Correia, que chegou a Pegu em 1519 e Filipe de Brito e Nicote (c. 1566-1613), que chegou a ser proclamado rei do Pegu ou de Sirião (Thanlyin). Filipe de Brito foi comerciante de sal na ilha de Sundiva e depois ao serviço do rei de Arracão (hoje Rackine, cuja capital é Mrauk-u). No complexo xadrez político de Sirião, aconselhou o rei a construir uma casa de alfândega para aumentar as rendas do comércio no Pegu. Não foi fácil ao português obter a influência que desejava, tendo conseguido chegar ao seu intento, depois de muitas vicissitudes e combates, que lhe permitiram tomar Pegu, com forte apoio dos naturais, que lhe chamaram Changá ou “Homem Bom”, proclamando-o Rei… No entanto, em 1613, os birmaneses tomariam a praça e Brito seria morto ingloriamente.
A primeira impressão de Rangum é dada pelo Strand Hotel, um dos míticos hotéis do Império Britânico, onde se encontra a nostalgia vitoriana. A construção foi recuperada, as madeiras antigas, as vergas requintadas, os móveis foram fielmente respeitados… Como afirmou Somerset Maugham em The Gentlemen in the Parlour (1930), o que é mais impressionante, “o mais inspirador monumento da antiguidade, não é aqui um templo, nem uma cidadela, nem um muro, mas o homem”. No centro de Rangum ainda se faz sentir a herança britânica. O tema da protecção do património imperial tem sido muito controverso. Há um confronto entre os que desejam esquecer o domínio colonial e os que salientam o valor patrimonial.
Em Thanlyin (Sirião) estabeleceu-se a antiga feitoria portuguesa por iniciativa de Brito e Nicote. Pelas bem-humoradas explicações de Luís Filipe Thomaz, compreendemos as três faces da presença portuguesa na Ásia – o império, os mercadores e os mercenários. Afonso de Albuquerque desejou aliar-se aos gentios budistas, em nome do intenso comércio que se estabelece a partir de Malaca… O Forte e a Igreja de Santiago marcam a presença portuguesa. O que resta da igreja ainda pode ser visto, sendo de construção italiana em tijolo, e data de meados do século XVIII. Corresponde não a uma iniciativa portuguesa do padroado, mas à acção romana da Propaganda Fide e dos missionários barbanitas. A Igreja de Santiago serviu os luso-descendentes de Sirião – e o que resta corresponde a parte da abside e das paredes laterais, estrutura que abriga antigas pedras tumulares alusivas a luso-descendentes. A placa no que resta do templo diz: “Antiga Igreja portuguesa / Era cristã (1749-1750)”.
O mais espectacular de Rangum é o célebre pagode, em torno do qual os pescadores criaram a cidade, segundo a lenda dos dois irmãos mercadores que trouxeram até aqui os oito cabelos que tinham pedido ao Buda Siddartha Gantama, num cofre de esmeraldas. No pagode recolhem-se as relíquias do Buda, as cinzas de outros três veneráveis Budas e os monumentos funerários de Supayalat, última Rainha da Birmânia (1859-1925), de Daw Khin Kyi, mulher do herói da independência Aung San e mãe da Aung San Suu Kyi, Prémio Nobel da Paz, bem como de U Thant, antigo Secretário-Geral das Nações Unidas. O zedi ou stupa, imponente cone dourado, atinge 98 metros de altura e a base é feita de tijolos cobertos com placas de ouro, sendo rodeado de 64 pagodes pequenos. Na flecha principal estão penduradas 1500 sinetas de ouro e prata… É o budismo theravada que domina em Birmânia, cujos monges têm tido um papel muito importante da defesa da cultura e da abertura.
Foi sempre difícil chegar a Mrauk-U, no antigo reino de Arracão (Rackine) e continua a sê-lo. Apesar dos efeitos da monção deste ano, foi feita a subida marítima desde o golfo de Bengala até Mrauk-U. Mas, depois da chuvada, veio a bonança, e à chegada os viajantes foram presenteados com um esplendoroso pôr do sol – e com um belo e retemperador acolhimento. E relemos Camões: “Olha o reino Arracão; olha o assento / De Pegu, que já monstros povoaram” (Canto X). Arracão é o exemplo do lugar que atraiu os mercenários. António Bocarro diz que os portugueses “vendiam por grandes preços recebendo tudo em ouro de que muitos ficaram ricos e se vendia de sorte que se pesava de uma parte arroz e da outra ouro”. A importante comunidade de luso-descendentes estabeleceu-se no bairro de Daingrih-pet e a grande referência portuguesa é Sebastião Manrique (1590-1669), autor do célebre Itinerário das Missões da Índia Oriental (1649), monge agostinho português que partiu para Goa e Cochim, donde saiu para Ugulim (Bengala) e para este mítico reino. Aqui pediu ao rei Sirisudhammaraja terreno para construir um templo cristão para estabelecer uma comunidade portuguesa.
Desenvolvendo a sua actividade em Bengala, apenas voltaria a Mrauk-U em 1633, onde ajudou as autoridades portuguesas do Estado da Índia na tentativa de celebração, não conseguida, de uma aliança com o rei de Arracão. Em Daingrih-pet habitavam portugueses e indianos católicos e as edificações eram de pedra; só depois, como faziam os autóctones, as casas se tornaram de bambu. Na margem esquerda do rio, o bairro situava-se numa posição privilegiada, como se vê nas gravuras que chegaram até nós.
À comunidade portuguesa era permitido o culto religioso católico e o chefe era designado como capitão, ainda que não dependesse de Goa. No bairro integraram-se em 1616 os cativos de Sundiva, após a derrota do mercenário Sebastião Gonçalves Tibau. Este assenhoreara-se da ilha de Sundiva no estreito de Bengala, numa vida aventurosa de corsário. Natural de Loures, foi feitor das embarcações do sal, o grande negócio da região. Estabeleceu-se em Djanga, em Arracão, mas foi apanhado pelo massacre que atingiu a povoação, depois da tentativa gorada de conquista por Brito e Nicote. Tibau escapou com vida e procurou reconquistar Sundiva, o que conseguiu por pouco tempo, graças ao apoio de forças de Goa. Com a retirada destas, foi vencido, vendo chegar ao fim o seu sonho de ser rei de uma ilha fértil. Na cidade, hoje, o Museu Arqueológico de Mrauk-U alberga artefactos, armas e canhões catalogados como portugueses. Nos subúrbios há uma ruína do que se diz ser a feitoria dos portugueses.
Depois de Arracão, que tanto diz aos portugueses, o grupo seguiu até Bagan, a sudoeste de Mandalay, antiga capital de um importante império. A maioria dos edifícios são muito marcados pela arquitectura religiosa, e correspondem ao período entre os séculos XI e XIII (d.C.). Em 1287, o reino cairia sob o domínio dos mongóis de Kublai Khan. Bagan tem cerca de três mil pagodes, dos treze mil que existiram nos tempos de glória. A urbe é de uma beleza estonteante, e pode-se adivinhar o que foi a magnífica cidade, de ouro, de pedras preciosas e de uma decoração plena de fulgor, saída de cornucópias cheias de preciosidades. A célebre Porta Tharabar é a única construção que resta do século IX e, segundo a lenda, é guardada pelo “Senhor da Grande Montanha” e pela sua irmã “Face Dourada”.
A viagem para Mandalay tem paragem em Amarapura (“Cidade da Imortalidade”) e no lago Taungthaman, onde se encontra a maior ponte de teca do mundo, a celebérrima U Bein – com 1,2 quilómetros, construída cerca de 1850, que hoje dá preocupações pelo estado de alguns dos 1086 pilares, que tiveram de ser reforçados. Recorde-se que a teca é nativa das florestas tropicais de monção. Amarapura teve o seu auge entre os anos de 1783 e 1857, momento em que Mandalay se tornou a capital da Birmânia. Ainda há reminiscências da actividade artesanal em algodão e seda. O Mosteiro Mahagandhayon atrai a curiosidade, quando os monges vêm, a meio da manhã, buscar os seus alimentos, formando uma impressionante fila de hábitos amarelo-alaranjados…
A despedida de Birmânia faz-se na antiga capital do último reino independente birmanês (1860-1885). Mandalay fica nas margens do rio Irrawaiddy e com a conquista britânica de Burma tornou-se, no essencial, centro da espiritualidade budista. Em 1942, a cidade foi invadida e arrasada pelos japoneses e só em 1990 se reconstruiu o imponente palácio, que voltou a ser uma das referências da cidade. A imponente Catedral do Sagrado Coração (de 1898) é sede do arcebispado, de que é titular Monsenhor Nicholas Mang Thang, defensor do diálogo inter-religioso de cristãos, budistas e muçulmanos. O padre João Baptista não esconde a emoção ao lembrar que descende de portugueses.
Na Tailândia
Na Tailândia a peregrinação inicia-se em Aiútia (Ayuthia). O antiquíssimo reino de Sião é um dos marcos das relações de Portugal com o Oriente. Depois da conquista de Malaca em 1511, Afonso de Albuquerque cedo estabeleceu relações com o prestigioso reino, através de Duarte Fernandes, enviando depois um embaixador a Aiútia, António Miranda de Azevedo, que foi recebido pelo próprio rei de Sião. Sabemos, segundo Martim Afonso de Melo e Castro, que havia dois mil portugueses a viverem no Oriente, na China, Pegu, Bengala, Orissa e Sião. Um século depois, encontramos uma comunidade portuguesa estabilizada no “bandel” (Bang Portuguet) de Aiútia de cerca de duas mil almas, que desenvolveu um processo de miscigenação com siameses, chineses, peguanos e japoneses.
A presença religiosa católica iniciou-se em 1565, com a chegada de dois frades dominicanos, seguindo-se em 1584 os franciscanos e em 1606 os jesuítas. No final do século XX, houve importantes pesquisas arqueológicas, apoiadas pela Fundação Calouste Gulbenkian, sobre os vestígios da igreja de São Domingos – de estilo europeu, com tijolos e argamassa de cal, possuindo três naves. A entrada principal abria-se em direcção ao átrio, enquanto as entradas laterais possuíam escadas flanqueadas por balaustradas, de cada lado. Nas traseiras havia um claustro, onde estavam os aposentos dos missionários, a cozinha e o refeitório.
A actual Banguecoque nasceu sob a influência de Aiútia, reunindo duas cidades que foram crescendo em importância – Thonburi e Rattanakosin. Para os portugueses, o bairro e a Igreja do Rosário lembram a vinda de Aiútia. Tratou-se de uma concessão do rei Rama I, como preito de “gratidão à rainha D. Maria I, pela sua amável generosidade, símbolo de boa vontade que não poderá ser esquecido até ao fim do mundo” (1787). Os primeiros edifícios religiosos eram frágeis, só mais tarde foi usado o tijolo, a pedra e a cal. Através de Macau, houve apoio decisivo para a sustentabilidade da comunidade luso-siamesa, o que permitiu que os mercadores portugueses mantivessem influência económica e política em Sião. A feitoria portuguesa e as igrejas do Rosário, da Conceição e de Santa Cruz (Thoburi) são reminiscências da velha amizade.
Na capital tailandesa, a hospitalidade dos embaixadores Luís e Maria da Conceição Barreira de Sousa foi inexcedível, com um pôr do sol muito especial nas margens do rio Chao Phraya, depois do magnífico jantar. O edifício da embaixada é neoclássico, tendo o terreno sido atribuído a Portugal, pelo Tratado de 1820, durante o reinado de Rama II, para a “Feitoria” e residência do cônsul, Carlos Manuel da Silveira. Tratou-se de “um chão que lhe pareceu próprio e conveniente com 72 braças de Sião ao longo do Rio, 50 de fundo com dois gudes para fazer navios com privilégio que todos os Portugueses poderão vir aqui negociar como antigamente, por quanto S. Majestade é Inclinado à Nação Portuguesa que a nenhuma outra». Foi a verdadeira hospitalidade portuguesa capaz de deixar profundas saudades.