luiz fagundes duarte novo livro

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Parece que já anda pelas livrarias. Em Angra do Heroísmo, sei que está na Loja do Adriano. A apresentação pública será no dia 11 de Maio, pelas 20h00, na Câmara Municipal de Angra do Heroísmo.
Para quem quiser dar uma vista de olhos para saber do que se trata, aqui deixo uma amostra:
«DIZEM QUE as garças morrem no mar. Não sei: diz-se muitas coisas. Apenas sei que elas, como nós, vivem e morrem. Que enquanto jovens são alvas como a escuma das ondas em dias de mar bravo a rebentar nas rochas, e, quando já velhas, arrastam nas asas a cor da tristeza. Como nós, há um dia em que partem da rocha negra onde nasceram e se criaram, onde geraram as crias, e aonde, ao anoitecer, não chegam a regressar. Talvez tenham morrido num lugar sem nome, talvez tenham perdido as forças do voar e se fiquem a ondear solitárias e leves, talvez tenham seguido viagem – mas para onde?
As garças sabem que as ilhas são portos no mar. Agrestes às vezes, outras vezes suaves, doces e lânguidas, abertas como flores na distância do mar – como as descrevia, sentindo uma ilha por todas, o poeta Ruy Cinatti, coleccionador de ilhas e descobridor de ilhéus. Ele contava que as garças – ou as gaivotas – eram almas aladas de ilhéus despatriados. Desencorpados, como os deuses. Transparências súbitas de cristal. Era assim, ao menos, que eu lhe entendia o sentido das palavras que ele me contava nas noites estreladas, onde cada estrela, ou planeta brilhante, ou efémero meteorito, era metáfora de ilha perdida na imensidão do espaço.
Há um dia em que as garças são ilhéus que partem sem bilhete de volta. Pilotos de navios fantasma. Pescadores da costa que se fazem ao mar sem astrolábio nem vitualhas. Sem cartas de marear. Sem água doce. E não se sabe a que porto – ou ilha – conseguem arribar. Mas arribam, acho que arribam sempre, porque, nas minhas andanças de mar e terra, corpo de garça morta é coisa que raramente vi. Se morrem, ressuscitam. Volatilizam-se. E na vida que assim reganham, talvez sejam pescadores em New Bedford, leiteiros no Vale de São Joaquim, jardineiros na Bermuda, funcionários em Lisboa. Talvez sejam, como se diz que dissera Nemésio, piores do que Deus em matérias de andanças, porque também chegam aonde Deus jamais terá chegado: sabe-se lá onde.
As garças, como os outros ilhéus, são aves anilhadas. Onde quer que sejam encontradas, vivas ou mortas, almas penadas de um deus viático, trazem consigo o mapa dos caminhos que levam à Ilha – aonde, para regressar, basta que se lhes siga a rota contrária. De um ponto perdido no mar, de um ponto perdido em terra. Seja para Este ou para Oeste, para Norte ou para Sul, ou para cada um dos pontos colaterais, há sempre uma ilha no fim da caminhada. Seja uma dos Açores, no mar Atlântico, seja uma do Hawai, no mar Pacífico – ilhas que a tradição sempre entendeu como relacionadas a um continente longínquo: ilhas adjacentes, umas, conectas, as outras – as «ilhas canecas» no falar inglesado das nossas gentes da Califórnia –, lugares de fuga quando se entende que o Continente é um lugar que se acaba, fechado nas suas fronteiras, e as ilhas em frente são um lugar livre e aberto para onde, em caso de aperto, se pode partir, e onde as fronteiras são o mar. Abertas, ao menos para quem saiba navegar.
Ou para quem, como as garças, nunca perdem as graças do mar – no dizer de um outro escritor ilhéu, Mishima, referindo-se a um certo marinheiro que as tinha perdido. E o marinheiro é o pathos que cada ilha traz consigo. E é o ethos, e o logos, o começo de tudo e o fim aonde se não chega nunca. Alfa e ómega. Cartilha de leitura, tabuada de contas por onde discorrem os dedos titubeantes de uma criança que vai aprendendo as palavras e os números do mundo.
Dizem que as garças morrem no mar. Não sei: sempre que as vejo, elas estão vivas. E voam livremente por sobre as águas. Porque sabem que há sempre uma ilha onde podem pousar.
É numa delas que eu me encontro. Aonde, por muito que ande, acabo sempre por regressar. E de onde, sentado, como em miradouro solitário, observo os navios que passam. Vão sérios e lentos no silêncio. Preciso de uma rocha, uma testemunha de biscoito negro azulado que me fixe o olhar e me permita contar as milhas por eles derrotadas. Ainda agora ali estava, desfeita a onda que me parecia eterna, e agora já o vejo mais adiante, e mais longe ainda, e depois ainda mais, e eu com o meu olhar agarrado à fixidez da rocha que me diz que quem desvairado anda pelos mares são os navios, e quem quer que neles viaje, enquanto eu, na minha ilha que foi pegada de um deus e poiso de garças que não morrem, tenho a certeza de que são os continentes quem deriva no mar. Fundida pelo fogo neste azul que não consigo nomear, a ilha em que me sinto é âncora de continentes perdidos.
Doem-me as costas de tanto estar sentado. »
Pode ser uma imagem de texto que diz "Luiz Fagundes Duarte AS FOGUEIRAS DO MAR AÇORES CRONICA COMPANHIA D'AS ILHAS ANOS 2012-2022 12-2022"
You, Urbano Bettencourt, Ricardo Branco Cepeda and 18 others
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