LUIZ FAGUNDES DUARTE – AS FOGUEIRAS DO MAR

LUIZ FAGUNDES DUARTE – AS FOGUEIRAS DO MAR , Companhia das Ilhas, 2022.
A voz lírica de um enorme escritor, que muitos conhecem apenas como grande ensaísta, que também é. A mais bela escrita poética que algum dia encontrei num livro de crónicas. Um rasto luminoso de palavras-irmãs das Ilhas Desconhecidas, de Raul Brandão ou de Finisterra, de Carlos de Oliveira. Uma experiência de leitura ímpar!
VEJAM A PURA BELEZA DO INCIPIT :
«Trago em mim uma ilha por encontrar. Sei que ela existe. As correntes do mar falam-me dela – e dela me falam as aves que precisam de onde pousar. Oiço as ondas que rebentam em tormentas de basalto. Sinto no ar a humidade que só uma ilha pode atrair. Escuto vozes de pessoas que por séculos e séculos demandaram horizontes e acharam portos de abrigo. E há tremores convulsos que me dizem que o solo que habito é uma epifania da Terra.
Dentro de mim.»
AQUI FICA TAMBÉM ESTE MARAVILHOSO EXCIPIT:
«Doze notas do fim
Legendas para umas fotografias de Fernando Resendes
Primeira
SOU FILHO do mundo. Daqui o vejo. O meu corpo emerge da ilha onde nasci – que é rocha, rebentação e nuvem cristalizadas. Nas minhas mãos, guardião de memórias, o livro move-se. O meu olhar liberta-se em busca dos pássaros.
Segunda
PARTEM NO vento, os pássaros, levando memórias. As nuvens, mantilhas da ilha, turvam-me o olhar. Mas é nelas que melhor os vejo.
Terceira
QUE DIZER da ilha que respira na tormenta que paira no ar? E da luz das nuvens, que não são mar nem terra?
Quarta
E NO ENTANTO, a terra emerge do mar e alcança as nuvens. Vigilantes, as rochas sossegam-me.
Quinta
REGRESSO para a guarda delas: é lá que se encontra, serena, a ilha de onde não logro sair. Trago comigo a água e o olhar.
Sexta
AFINAL, uma ilha é metáfora de mar. Por ela caminho, por ele navego. Por uma e outro esvoaço.
Sétima
REGRESSARAM os pássaros, também. Roubo-lhes o olhar diferente e livre. Onde me hei-de pousar?
Oitava
DE MÃOS DADAS, as casas e os muros nascem da rocha e da mão do homem. Neles habito e me sossego. Mas é no mar que me penso.
Nona
SOBREVOAM-NAS as garças: de que porta, janela, muro ou torre as veria melhor do que as vejo do mar?
Décima
NOS SEUS ninhos de água, os cisnes frutificam. As nuvens deixaram o céu, é da terra que nascem. Mas hão-de lá voltar.
Décima-primeira
EU SOU FILHO do mundo. Já outro, aqui o sinto. O meu corpo emerge do chão. Guardião de memórias, o arado liberta-se-me das mãos para que possa limpar o suor do rosto.
Décima-segunda
DAQUI SAIO, aqui regresso. Tudo o que resta é sal: o mar e a ilha, princípio e fim. O suor do meu rosto é sombra de nuvem no mistério negro.
Finis. »
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    Luiz Fagundes Duarte

    Teresa, muito obrigado. Não serei eu pôr em dúvida a justeza das tuas palavras. Sabem-me tão bem, neste deserto de areias movediças que é o nosso meio literário…
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