luis filipe sarmento, os nomes

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Um dos meus prazeres secretos é ficar deslumbrado perante um nome, que será sempre uma raiz de qualquer razão, intenção ou desejo. Não são os nomes vulgares que me inquietam por mais invulgares que se apresentem com gala e circunstância num apelo demorado à diferença. O nome identifica se for claro ou desidentifica se for um artifício para o engano comercial ou mesmo social. Por vezes, gostaria de me chamar Abstracto, mas seria um nome que apontaria necessariamente para o alheamento, talvez não fosse uma má ideia: uma alucinação buscada e consentida, arquitectada na recusa do desastre, em que o sujeito mergulhasse periodicamente em conteúdos metafísicos e se deixasse deslizar para o conforto de uma paisagem subtil e quando regressasse ao quotidiano o fizesse por distracção, não no sentido afronésico, mas numa alienação que permitisse a criação literária de espaços paralelos, únicos, inimitáveis, na mais profunda liberdade, um delírio pessoal e secreto que nunca chegasse ao domínio do outro, uma interrogação na plataforma do mistério que provocasse lapsos na observação alheia e fizesse vacilar a análise do observador, seria o contrário de esquecimento, mas a afirmação de uma existência que interrogasse a incerteza dos outros, um prazer íntimo e inexpugnável; talvez um pseudónimo, o que seria pouco credível, não pelo seu conteúdo, mas sobretudo pelo seu atrevimento cripto-ficcional; um heterónimo com esta dimensão encerraria tudo menos a verdade de um personagem que convivesse comigo ou não: desenvolver-se-ia do nascimento à sua morte uma abstracção artística falsa ou verdadeira de acordo com o desígnio do seu criador. O nome é um mistério e, por vezes, uma encruzilhada de enigmas, um labirinto onde se pode perder a ideia de ser, uma identificação que não nos pertence e muitas vezes um xeque-mate. Um nome pode ser a morte à nascença ou uma marca que poderá ou não escapar à falência e à extinção. Não controlamos o nome que nos dão e essa particularidade inevitável não é um detalhe no futuro, mas poderá ser a transmutação alquímica do ser bruto à nascença num outro ser que se reinventa e não no ser predestinado pelos progenitores através do nome que lhe foi dado num momento de total ausência de opinião. Se essa transferência se efectiva poderá ser uma assinatura anónima embora diferente da intenção original ou poderá ser uma marca que singulariza o seu portador. Neste caso, temos a reconstrução do nome, aquele que não se escolhe por impossibilidade técnica passa a ter a identificação que o seu portador lhe quis dar, ou seja, o mesmo nome é um outro nome. Quer dizer que escolhemos o nosso nome a partir do nome que não escolhemos. E só nesse momento o rosto tem uma assinatura que será marca ou estigma. Mas neste caso a decisão é colectiva.
Luís Filipe Sarmento

, «Rouge – Éclatant», 2020

Foto:

Isabel Nolasco
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