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O observador tenta recordar-se de quem afirmou que é preciso acreditar em alguma coisa para se ser grande. Procurou e encontrou. Foi Almeida Garret. E transferiu a ideia para estes jovens espalhados por vastos territórios, isolados de conceitos passados, promovendo o corte radical com a geração anterior. Eles acreditam nas suas microcomunidades, creem no amor que nutrem entre si como um novo desenho de família, de relação, como uma nova estrutura que quer combater o que mais os aflige: a hipocrisia do mundo sobre a sua própria existência. Eles não querem ser réplicas dos erros passados. Eles estão a inventar uma nova linguagem que deixou de estar ao alcance dos pais que, aflitos na sua ignorância e incompetência, os agridem com enxovalhos, com imposições segundo os seus critérios – que os jovens repudiam –, com proibições anacrónicas, com ameaças escutadas pelos seus pais quando eram igualmente jovens e que agora replicam como se fossem leis inabaláveis da boa educação. Não são. Nem nunca foram. Não conseguem entender e não querem fazer o mínimo esforço para compreender que os seus filhos, no fim da adolescência ou jovens adultos já, não têm qualquer interesse nos padrões de vida proclamados pelos pais. Estão a criar um mundo novo, que lhes pertence no seio dos pequenos grupos que constituem como defesa dos ataques a que estão sujeitos por uma sociedade incapaz de interiorizar que o mundo mudou radicalmente nos últimos quinze anos. Eles são a nova sociedade que em poucos anos transformará a ideia de civilização que configurou as gerações dos últimos dois séculos. Esta foi a sua grande descoberta: não querem continuar com os modelos falidos de uma civilização que não soube sair da barbárie. Eles não querem guerras nem intrigas nem fome nem desigualdades entre os humanos nem fronteiras nem tudo o que está errado e que foi proclamado pelas gerações que os antecederam. Eles não querem que os incomodem. A sua organização ultrapassa em anos-luz tudo o que os progenitores calcinados no passado poderiam imaginar na sua melhor bonomia para entender filhos que nunca conheceram.
Num rápido olhar, estes jovens organizam-se em grupos de quatro ou de seis, talvez oito, nunca mais do que oito, o que é raro, e estabelecem protocolos entre si que, na sua visão de futuro, serão para sempre. Juntam-se por afinidades, gostos, amor, desejos, projectos, sonhos, corpo ideológico até, desde muito cedo, desde os quinze ou dezasseis anos, e cortam radicalmente com os pais que, para eles, são os representantes próximos de um mundo castrante, que nunca tiveram a coragem de confrontar. Admitem, contudo, que há algo que os aproxima mais aos avós do que aos pais. Os avós eram jovens na década de 1960 e 1970, alguns ainda testemunharam a revolução estudantil de Maio de 1968, em Paris, ou o gigantesco concerto rock em Woodstock, na América, que deixaram crescer os cabelos contra as normas impositivas da ditadura, que acreditaram e praticaram o amor livre, que gritaram «make love not war», que acreditaram no «flower power», na emancipação da mulher, que lutaram contra todos os senhores da guerra, fosse na África colonizada fosse no Vietnam, fosse onde fosse, mas que, perante circunstâncias tão adversas, se deixaram submeter às leis de sobrevivência promovidas pela grande finança mundial; e foram absorvidos por um ritmo de vida em cuja harmonia nunca se sentiram confortáveis. É por estas e por outras que os jovens sentem uma grande ternura e afecto pela loucura dos avós, acham graça às suas aventuras com drogas, às suas trips, aos anos loucos do rock’n rol, e desprezam profundamente aqueles que na geração seguinte traiu os seus ideais de libertação, ou seja, os seus pais perdidos na ignorância do dinheiro, do futebol, da frivolidade das televisões, alimentando este cânone desviante sem moverem uma palha para que as sociedades fossem mais solidárias, mais cultas, mais fraternais, mais inclusivas. Não, não mexeram uma palha, estão-se a cagar. E admiram-se que não conseguem comunicar com os filhos que estão nos antípodas do seu modus vivendi. E que estão a criar entre si um novo mundo, originado nas suas microcomunidades cuja linguagem é inacessível a todos os que estão fora dela. Eles acreditam em alguma coisa ao contrário dos pais que nunca acreditaram em nada para além do seu pequeno umbigo. Commedia.
Luís Filipe Sarmento, «Commedia», 2022
Foto: Jose Poiares
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- Isabel PereiraGostei muito e partilho.
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Fernanda PereiçalvesaSim…é isso…- Like
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Jose MoreiraBom dia, obrigado e ainda bem que tenho idade de avô.Um abraço- Like