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1. Na capela dessacralizada da secreta Quinta da Raposa tenho um quarto. Foram dias e noites e dias consagrados à paixão dos primeiros toques. O quarto era a sacristia. Com casa de banho. Esfiados paramentos já não vestiam a nudez inocente. Outra liturgia se manifestava.
2. No altar, entre velhos santos sepultados, a biblioteca. Os anjos ainda olhavam desconfiados. Tinham perdido setas. Tinham perdido pernas. Ausentes de função. Eu lia pleno de prazer. Muitas bíblias por conhecer. Entre elas, a tua, Carlos. Paterson.
3. A nave era um salão de fumo. A alucinação do lugar era um filme diferente em cada soirée. Ali tomaram lugar orquestras & coreografias. Ovos estrelados. Vinho do Porto. Pernas distendidas. Copos entornados na laje para a descoberta da arte abstracta. Um kilim roubado ao deserto. Congas para mantras opiáceos.
4. Na pia de baptismo a cozinha. Benzidas sopas sem améns e com pouco futuro. Pão de Mafra. Um fabuloso caril em cima de um alcorão sem horas de ramadão. Jesus fugira com Madalena para o jardim das Palmeiras. Cansados entre buxos verdes. A janela com cortinas de chiffon azul e estampados de foices e martelos. Lindas. Nada faltava às festas de lua cheia. Nem o meu amigo lobo que vinha aos restos, comia frango e descansava horas na sacristia. Partia ao entardecer para encontros furtivos com o eterno feminino. Os uivos eram a sua oração.
Luís Filipe Sarmento, «B.-C.», 2021
Foto: José Lorvão
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