LUIS FILIPE SARMENTO

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48.
Escrevo estes concertos das memórias quarenta e seis anos depois como se um velho ácido tivesse reembarcado. Foram mistérios com sabor e enrolava-me ao teu corpo enquanto os cabelos casados iam adiantando as primeiras linhas do poema por acontecer na euforia futura da madrugada entre a eloquência do mar e a tranquilidade expectante das areias como matéria-prima da transparência do vidro literário. Olhar-te, meu amor de longe, era ver na sua grandiosidade a minha própria liberdade. E só ressaltava tudo o que tivesse intensidade indizível nas bocas plenas de cantos completos acabados de chegar ao tempo de outro tempo ainda sem horas que nos esperava há muito, de convite na mão, para a sua gala de improvisos. Éramos épicos, Allen, e tínhamos a noção perfeita do nosso tempo a cores.
49.
Não éramos espectadores de um novo espectáculo, éramos o espectáculo na suprema dimensão da liberdade. Lia com o João, iluminados como os deuses das montras de novidades, Walt Whitman e descobríamos o secreto néctar do dilúvio criador do mestre sem passaporte para a ilusão. Estávamos expostos ao aplauso que nos deitava à beira-estrada, sentindo a abóboda celeste nos nossos pulmões. Éramos o universo em andamento perpétuo.
50.
Sacristãos e padrecos apontavam-nos o dedo e escondiam o rosto imundo entre mãos abertas enquanto fazíamos amor nas pradarias vistas das estradas. Pecado. Pecado. Pecado. Ó deus. Sim, era um crime contra a moral cristã fascistoide. O nosso imenso prazer juvenil era a sua morte a prestações e sem cemitério. Pecado. Crimes. Gritavam os impotentes mascarados de gente. Estávamos a cometê-lo porque seríamos incapazes de trair a liberdade que nos oferendava o abraço, a boca, os cabelos, o sexo, o êxtase, o vértice divino da nossa existência. Era o nosso pecado, mas era sobretudo a nossa literatura, a nossa vida, a nossa apoteose.
51.
Com a cabeça cheia de néons, afastava-me do centro iniciático da loucura em construção e vinha falar contigo, Allen, e com o Corso. Eram uma espécie de central de abastecimentos de imagens e de fogo-de-artifício que me alimentavam a magia dos meus acidentes literários como acasos de palavras encontradas à entrada do poema. Os meus pêssegos de Verão a leste do teu paraíso a ocidente tinham o mesmo sumo vermelho nocturno dos teus com os quais acenavas com dentadas que pingavam ideias lá do outro lado do Atlântico. E nesses momentos eu sabia que era livre.
52.
Muito me ria quanto te via, Allen, entre o esconderijo dos melões embevecido até ao fracasso do poema com o jovem que te servia um whisky apertado entre mãos trémulas da noite passada na claridade insuportável da mescalina. Bem te via como tu viste Walt Whitman no engate aos putos da mercearia. E logo a noite me cai no centro da gargalhada e explode sem munições previstas o escândalo automático da máquina enfeitiçada com teclas que me brutaliza os dedos vermelhos e me hipnotiza com o seu matraquear metálico até me sacar do sopé do vómito as palavras como punções gritantes de um novo poema de uma nova literatura iniciática no ritual do impossível como me sugere a cada segundo esta fulgurante liberdade.
53.
E à entrada do intransponível salão, a tua nudez, Xana, com o sorriso vertical coberto de estrelas escarlates e de um secreto convite para a exaltação do teu planeta, para que eu deixasse as faíscas das minhas frases mineiras e brutais na organização caótica daquele linguado de papel e cedesse à tua língua, ao idioma do esquecimento, à rebelião dos poros, e me soltasse ao teu desejo de me matar tantas vezes quanto eu resistisse às mortes nesse lusco-fusco e ressuscitasse dentro do poema interrompido com os flashes serpentinos de palavras casadas sem cansaço para que a obra explodisse nas entranhas com a mesma autenticidade com que me comeste no prefácio do diamante como uma estrela perdida sem céu e embarcasse no ácido eterno da criação inabalável e ininterrupta da minha literatura única.
Luís Filipe Sarmento, «B.», 2021
Foto: Isabel Nolasco
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